Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
04/02/2016 | 25/12/2015 | 4 / 5 | 4 / 5 |
Distribuidora | |||
Fox | |||
Duração do filme | |||
156 minuto(s) |
Dirigido por Alejandro González Iñárritu. Roteiro de Iñárritu e Mark L. Smith. Com: Leonardo DiCaprio, Tom Hardy, Domhnall Gleeson, Will Poulter, Forrest Goodluck, Paul Anderson, Kristoffer Joner, Duane Howard, Melaw Nakehk’o.
Em 1823, um caçador de peles chamado Hugh Glass foi atacado por um urso enquanto participava de uma expedição na região que hoje forma o estado de Dakota do Sul, nos Estados Unidos. Gravemente ferido e agonizante, ele foi deixado para trás pelo grupo, que, no entanto, encarregou dois de seus integrantes de permanecerem ao lado do sujeito até que ele morresse, enterrando-o antes de se reunirem com os demais. A dupla, porém, desistiu da tarefa depois de dois dias, partindo enquanto Glass ainda se encontrava vivo – e, assim, foi um imenso choque quando este apareceu em um forte localizado a 400 quilômetros de distância de onde havia sido deixado depois de rastejar por quase dois meses. Passando a fazer parte do imaginário da história do país, a jornada de Glass ganha, aqui, sua segunda adaptação para o Cinema, já tendo originado, em 1973, o bom Fúria Selvagem, no qual o herói era interpretado por Richard Harris.
No entanto, como construir um filme inteiro em torno de um homem rastejando não é a mais interessante das possibilidades, tanto a versão anterior quanto esta acrescentam detalhes ficcionais ao roteiro: se antes Glass queria apenas voltar para casa a fim de conhecer o filho que nascera após sua partida, agora o tal filho acompanha o protagonista na expedição, transformando-se em impulso dramático ao inspirar o desejo de vingança do pai ao ser vitimado pelos mesmos homens que o abandonam à beira da morte. (Tudo isso está no trailer; não me acusem de spoilers. Por outro lado, os três parágrafos finais deste texto devem ser evitados por quem não viu o filme.) Com isso, o roteiro de Mark L. Smith e do próprio diretor Alejandro González Iñárritu aparentemente encontra um elemento motivador para a jornada de Glass (DiCaprio) – o que representa um falso sucesso, já que demonstra como a dupla não percebeu que o próprio instinto de sobrevivência do personagem seria suficiente.
Mas falarei dos problemas desta abordagem em breve; antes, é preciso reconhecer que, sob qualquer ótica, O Regresso é tecnicamente impressionante. Voltando a demonstrar o interesse de Iñárritu por longos planos, o filme já tem início com uma cena que, retratando o ataque de índios à expedição, acompanha os combatentes em um plano fluido, sem cortes, durante o qual a câmera salta de um para outro à medida que são abatidos, registrando a ferocidade da luta e o caos experimentado pelos envolvidos sem que, com isso, o espectador fique perdido na mise-en-scène. Já em outros momentos, Iñárritu e o genial diretor de fotografia Emmanuel Lubezki empregam contra-plongées (leia-se: planos nos quais a câmera aponta de baixo para cima) que, associados às lentes grandes angulares, transformam as árvores que cercam aqueles homens em gigantes que ressaltam a pequenez dos exploradores diante da Natureza. Além disso, o cineasta sabe se equilibrar bem entre a necessidade de revelar o ambiente e as locações imponentes através de planos gerais e a de se concentrar em closes fechadíssimos que expõem os sentimentos dos personagens – e, assim, quando Hawk (Goodluck) se deixa afetar por um incidente, basta uma pequena lágrima para que percebamos seu sofrimento.
No entanto, para Iñárritu, não basta criar uma lógica visual orgânica e eficiente: é preciso mostrar para o espectador que há um diretor por trás da câmera. Às vezes, isso ajuda o projeto (Birdman, 21 Gramas); às vezes, prejudica consideravelmente (Biutiful, Babel) – e aqui é difícil não ficar incomodado com certas decisões que chegam a sacrificar o mergulho do espectador no universo diegético apenas para que possamos nos lembrar de que Iñárritu está ali: como, por exemplo, quando a câmera se aproxima tanto de DiCaprio que a condensação da respiração deste acaba embaçando a lente (uma condensação criada digitalmente, diga-se de passagem). Já em outro momento, vemos um personagem apontando uma arma para outro e a câmera percorre várias vezes a extensão do cano da espingarda enquanto salta entre os dois homens, subordinando o drama do conflito à opção estética do cineasta. Para completar, no auge de uma briga que aguardamos durante todo o longa, o diretor mais uma vez parece temer que esqueçamos de sua existência e logo traz borrifos de sangue sujando a lente e desviando nossa atenção do evento principal.
Não que este seja o único problema de Iñárritu, que fica ainda pior quando tenta conferir alguma profundidade existencial ou filosófica ao filme: os flashbacks envolvendo a vida familiar de Glass, por exemplo, não só destroem o ritmo da narrativa como se mostram completamente dispensáveis, ao passo que os interlúdios nos quais o cineasta tenta brincar de Terrence Malick são embaraçosos ao exibirem uma abordagem new age superficial e tola – o que só se torna mais vergonhoso quando o realizador inclui imagens de uma igreja em ruínas (mais óbvio, impossível) e emprega uma trilha inspirada em cantos indígenas para atribuir ao protagonista uma dimensão espiritual que este não possui. Como se não fosse o suficiente, o filme, julgando que sua mensagem acerca da brutalidade dos homens supostamente civilizados não estava clara o bastante, ainda inclui um instante constrangedor ao trazer o cadáver de um índio exibindo uma placa que diz “Somos todos selvagens” – e quase pude ouvir Iñárritu berrando ao fundo “Entenderam? Entenderam? Estou dizendo que os brancos são os selvagens, não os nativos!”. Ok, amigo, compreendido; não precisa gritar.
Por outro lado, se há algo que sempre podemos esperar de um filme do mexicano são atuações excelentes – e isto não é diferente em O Regresso. Encarregado de interpretar o principal antagonista de Glass, Tom Hardy encarna Fitzgerald como um homem cujo passado violento (ele foi parcialmente escalpelado) pode ser visto em seus olhos arregalados que sugerem alguém à beira da insanidade. Com a dicção embolada de um sujeito pouco afeito a conversas, Hardy consegue levar o espectador a compreender por que seu personagem encara as próprias (e repreensíveis) ações como algo aceitável e mesmo inevitável. Enquanto isso, Domhnall Gleeson traz dignidade ao seu Capitão Henry, mesmo que a pincele com um pouco de covardia e comodismo diante da saída mais fácil.
Mas é claro que O Regresso pertence mesmo a Leonardo DiCaprio: acompanhado de perto pela câmera de Iñárritu (às vezes, exageradamente, como apontei acima), o ator não se preocupa em modular sua interpretação de acordo com a distância da qual se encontra da lente, resultando em momentos de intensidade absurda que, ao contrário do que o senso comum poderia ditar, surgem adequadas às situações que vive. Preso a um personagem silencioso que, durante boa parte do tempo, se comunica apenas através de gemidos, grunhidos ou da respiração pesada, DiCaprio confere uma fisicalidade descomunal a Glass, saindo-se bem também nos instantes que exigem maior discrição (como na cena em que relaxa brevemente ao sentir os primeiros flocos de neve caindo sobre seu rosto). Impressionante até mesmo para um intérprete já conhecido por sua energia em cena, o trabalho do ator neste longa é, sem dúvida, de entrega absoluta e instrumental para que a obra funcione.
Intrigante ao criar uma ótima rima visual entre duas cenas envolvendo confrontos físicos, O Regresso é um filme de reflexos: a busca do chefe indígena pela filha se reflete na jornada de vingança de Glass; o passado de Fitzgerald retorna em seu futuro (dois escalpelamentos); e, claro, a luta entre Glass e o urso (um feito técnico impressionante e que se torna ainda mais fabuloso por ser retratado em um único plano) é complementada por aquela entre Glass e Fitzgerald (reparem como, em ambas, há um tiro inicial seguido por confronto no solo e golpes de faca).
Da mesma forma, a própria trajetória do herói traz um simbolismo bem mais interessante do que aquele que Iñárritu busca em seus breves interlúdios malickianos, já que envolve diversos renascimentos simbolizados de forma quase literal: em pontos diferentes da projeção, Glass sai da própria cova, de uma barraca coberta por neve e de dentro de um cavalo, sendo igualmente curioso perceber como a pele de urso que passa a vestir parece convertê-lo em um animal durante a maior parte de sua viagem.
Pena que, então, o cineasta retorna à sua necessidade de chamar a atenção para si mesmo e decide concluir a narrativa com uma quebra de quarta parede não só carente de qualquer peso dramático, mas também completamente vazia de significado. Ah, Iñárritu.
05 de Fevereiro de 2016