Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
17/05/2016 | 17/05/2016 | 5 / 5 | 5 / 5 |
Distribuidora | |||
Duração do filme | |||
142 minuto(s) |
Dirigido e roteirizado por Kleber Mendonça Filho. Com: Sônia Braga, Maeve Jinkings, Irandhir Santos, Julia Bernat, Humberto Carrão, Carla Ribas, Paula De Renor, Thaia Perez.
Duvido que haja no Festival de Cannes deste ano um filme mais repleto de afeto que Aquarius, segundo longa de ficção escrito e dirigido pelo pernambucano Kleber Mendonça Filho, responsável pelo maravilhoso O Som ao Redor. Povoado por personagens que (em sua maioria) se amam como parentes, amigos ou mesmo conhecidos da vizinhança, o filme visita festas de família, bailes para a “melhor idade” e conversas na sala de estar, extraindo doçura das relações entre indivíduos ligados pelas memórias em comum.
Logo nos primeiros minutos de projeção, aliás, somos levados à celebração do aniversário de 70 anos de tia Lúcia (Thaia Perez), cuja trajetória notável é relembrada nos discursos infantis de seus sobrinhos-netos, filhos de Clara. Cercada pelos parentes, tia Lúcia de repente se distrai ao olhar para uma cômoda no canto da sala – e, num desses presentes que só um bom cineasta consegue dar ao espectador, subitamente vemos as lembranças que o móvel desperta na doce velhinha e percebemos, surpresos, que ela está se recordando de intensas sessões de sexo que experimentou há décadas sobre aquele objeto. E, então, somos nós quem saltamos décadas no tempo, reencontrando Clara (Sônia Braga) já próxima da idade de sua agora falecida tia e morando sozinha no mesmo apartamento que abrigara a festa e que permanece como o único habitado de todo o edifício que dá título à obra, já que uma construtora local comprou os demais e agora insiste para que a protagonista venda também o seu.
Interpretada por Braga naquela que talvez seja a melhor performance de sua carreira, Clara é uma senhora ainda bela e de temperamento calmo que, madura (ainda que impulsiva), leva uma existência tranquila cercada por seus discos e livros e que envolve a rotina de ir à praia todas as manhãs e cochilar na rede de quando em quando. Ainda exibindo a mesma presença magnética que a transformou em estrela internacional, a atriz carrega o filme com firmeza absoluta, já que está presente em praticamente todas as cenas, compondo uma figura multifacetada e fascinante cuja calma, quando testada, pode ceder lugar a uma explosão que a deixa com a voz falha e trêmula diante do jovem engenheiro (Humberto Carrão, excelente) que adota estratégias nada éticas para convencê-la a deixar o prédio. Fechando o núcleo principal de um elenco homogêneo em sua qualidade, Irandhir Santos vive um salva-vidas local com quem Clara ocasionalmente parece flertar, enquanto Maeve Jinkings (Boi Neon) constrói um dinâmica complexa com Braga, preocupando-se com esta, mas também interessando-se na venda do imóvel por estar enfrentando dificuldades financeiras agora que cuida sozinha do filho pequeno – e as duas protagonizam uma discussão dolorosa na qual mágoas antigas vêm à tona mesmo sob suas vozes tranquilas.
É admirável, diga-se de passagem, como o cineasta e seus atores evocam o passado daqueles personagens mesmo sem qualquer necessidade de diálogos expositivos; basta um “como vocês se lembram” para que, ainda que não saibamos exatamente do que estão falando, percebamos o que significa e o peso que tem. Neste aspecto, Aquarius é um filme enriquecido por compreender e buscar a humanidade não só da protagonista, mas até de quase figurantes – e um dos momentos mais tocantes da projeção é aquele no qual vemos a comemoração do aniversário da diarista de Clara e que, durante os “parabéns pra você”, beija a foto do filho que morreu jovem num acidente.
Interessado também nos elementos políticos e sociais que oferecem contexto à trajetória daqueles indivíduos, o diretor aponta o autêntico corporativismo de uma elite que se protege através de ligações obviamente promíscuas (o jovem engenheiro é afilhado do irmão de um editor de jornal que, por isso, o mantém presente nas colunas sociais, inflando sua reputação), remetendo também ao preconceito velado que se mantém imutável ainda hoje (“Sei que a senhora veio de origens humilde...”, presume alguém sobre Clara apenas por estar ter “a pele mais escura”).
Ainda assim, mesmo com todas as suas ambições temáticas, é mesmo o talento de Aquarius para construir simbolismos que não cansa de surpreender o público – começando já pelos cabelos da protagonista, que, curtos na cena inicial em função da quimioterapia para curar um câncer, surgem longos e frequentemente soltos no restante da narrativa, tornando-se uma representação da extensão de sua jornada ao se livrar da doença. Além disso, Kleber demonstra o poder da ressignificação através da cômoda citada anteriormente, pois se é visto apenas como um móvel para todos que visitam o apartamento, para o espectador passa a ser um símbolo de desejo e sexualidade.
Esta, afinal, é a natureza de nossas memórias, que conferem peso e significado diferentes para tudo que nos cerca: um piano, por exemplo, não é só um instrumento, mas traz consigo um pedaço de todos que já o tocaram e as ocasiões em que o fizeram (e, mais uma vez, quando vemos Clara diante do piano em seu apartamento, nos lembramos de tia Lúcia e de seu aniversário). É por esta razão que a personagem de Braga valoriza tanto a fisicalidade de um disco: não é que seja avessa às novas tecnologias e se recuse a ouvir canções em mp3 (ela não se recusa); o problema é que não é possível tocar um arquivo digital com as mãos e pensar em todos que já o carregaram ou então comprá-lo em um sebo e adquirir, com ele, sua história e tudo o que traz de abstrato, como lembranças, sentimentos e signos.
É isto que aqueles que querem derrubar o prédio-título não compreendem: embora acreditem estar fazendo uma oferta “generosa” para comprar o apartamento de Clara, não computam – e nem teriam como computar – o valor das memórias que este abriga. E a simples proposta de batizar o novo edifício com o nome de “Novo Aquarius” demonstra uma cegueira sintomática para o fato de que não poderiam reconstruir também o aniversário de tia Lúcia que aconteceu naquela sala, os primeiros passos dados pelos filhos da protagonista naqueles corredores ou às transas que provocaram orgasmos naqueles quartos. Como os cupins que tomam conta de um imóvel e sem controle ou respeito o destroem, o jovem engenheiro tenta subordinar o pessoal, o intangível, ao capital e à sua própria ganância profissional.
Cada objeto contém uma importância particular para quem o possui e que vai além do valor de mercado. Há alguns anos, por exemplo, comprei um livro em um sebo do Rio de Janeiro apenas porque li, na primeira página do volume, uma dedicatória escrita à mão que dizia “Para Ana, meu grande amor” – e a triste história contida naquelas poucas palavras eram mais do que suficiente para que merecessem ser preservadas.
E Aquarius é uma obra que compreende que não se escreve dedicatória num PDF.
Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Festival de Cannes 2016.
17 de Maio de 2016
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