Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
21/06/2016 | 04/11/2016 | 4 / 5 | 5 / 5 |
Distribuidora | |||
Duração do filme | |||
123 minuto(s) |
Dirigido e roteirizado por Jeff Nichols. Com: Joel Edgerton, Ruth Negga, Michael Shannon, Marton Csokas, Nick Kroll, Bill Camp, David Jensen, Alano Miller, Jon Bass.
Ao sair da primeira exibição pública no Festival de Cannes do longa Loving, novo trabalho de Jeff Nichols (e seu segundo só em 2016, já que lançou também o ótimo Midnight Special), entreouvi algumas pessoas reclamando da “simplicidade” do filme, que teria sido dirigido no “piloto automático”. Eu não poderia discordar mais, já que não há nada de “simples” no que Nichols faz aqui. Sua abordagem é sóbria, o que é diferente; em vez de apostar em catarses artificiais que buscam lágrimas através de trilhas envolvendo violinos, ele busca uma construção gradual do drama em sua história, que, ao chegar no clímax, fez por merecer o impacto que provoca.
Escrito pelo próprio realizador (e coproduzido por Colin Firth), o projeto gira em torno de Richard e Mildred Loving (Edgerton e Negga), um homem branco e uma mulher negra que, depois de se casarem na Virginia, nos Estados Unidos, são presos por infringirem as leis contra a miscigenação. Forçados a se declararem “culpados” para evitar uma pena maior, os Loving são forçados a abandonar o estado no qual foram criados e no qual suas famílias residem, tornando-se autênticos exilados em Washington. E quando esta história – real! – aconteceu? 1880? 1890? Não, há cerca de apenas 50 anos, já que, até 1967, alguns estados norte-americanos ainda consideravam ilegais as relações inter-raciais.
Esta é uma atrocidade histórica que Nichols ressalta visualmente de forma sutil quando, em certo momento, vemos uma corda ser atirada sobre o galho de uma árvore e imediatamente somos levados a pensar num dos inúmeros enforcamentos de negros promovidos pela Ku Klux Klan – e mesmo quando descobrimos que se trata apenas de uma brincadeira infantil, a realidade tão recente daqueles linchamentos permanece como uma lembrança pairando sobre a vida daquela família. De forma similar, o cineasta contrapõe o cotidiano de seus personagens no campo àquele que passam a viver na cidade quando, através do design de som, cria um contraste eficaz entre o silêncio do primeiro e as buzinas e ruídos do segundo, sugerindo o desconforto experimentado por Mildred em sua nova residência. Para completar, é notável como o design de produção de Chad Keith e a fotografia de Adam Stone evocam a tristeza do apartamento apertado em Washington, com suas camas amontadas no canto dos aposentos e as paredes com bolhas de ar sob a pintura, e o calor humano que, em contrapartida, é estabelecido pelas luzes quentes e a decoração da casa em Virginia.
Ancorado por duas atuações centrais admiráveis (que, aposto, serão bem lembradas no período de premiações), Loving permite a Joel Edgerton compor um tipo cujo visual, com cabelos louros curtíssimos e olhos claros, seria utilizado por nove em cada dez atores escalados para interpretar um supremacista branco, mas que aqui serve a um personagem gentil em sua essência e humilde por imposição econômica. Exibindo os dentes maltratados e mantendo a cabeça sempre abaixada ao conversar com qualquer pessoa em posição de autoridade, o Richard Loving de Edgerton é um homem introspectivo e intimidado pela vida, mas que revela imenso amor pela esposa através de sua passividade habitual. Já Ruth Negga, como Mildred, percorre um arco dramático fascinante, iniciando a projeção como uma mulher amedrontada que gradualmente ganha determinação, revelando-se o verdadeiro motor pela luta do casal contra a repugnante lei de seu estado natal. (Para completar, Michael Shannon – não seria um filme de Jeff Nichols sem ele – faz uma pequena e boa participação como o fotógrafo da revista “Life” que tirou os famosos retratos do casal, demonstrando, em poucos minutos, como o sujeito conseguiu deixá-los suficientemente à vontade para que posassem com tanta naturalidade.)
Evitando o erro autocongratulatório clássico de Hollywood (vide o pavoroso Histórias Cruzadas), que adora fazer filmes sobre racismo protagonizado por brancos corajosos que saem em defesa dos negros passivos, Loving traz, como seu centro, o amor daquele casal, deixando claro, também, o papel instrumental de Mildred no processo – além de apontar que, embora sofrendo por amar a esposa, Richard ainda contava com muitos dos demais privilégios da raça branca.
Expressando assombro ao constatar como a história que conta é recente, o longa não precisa fazer pregações para questionar o óbvio: como leis como esta podem ter vigorado tanto? Qual seria o dano, para o Estado, de permitir o casamento entre duas pessoas? (Questões que podem ser feitas, hoje, em relação aos direitos LGBT, por sinal, comprovando que custamos a evoluir como sociedade.) Pois o fato é que não há como interromper o avanço da História; mesmo que figuras como Richard e Mildred sejam naturalmente vulneráveis e detestem confronto, quando a injustiça é grande demais há um momento em que até o indivíduo mais fraco diz “Chega!”.
E que, neste caso específico, o sobrenome do casal seja “Loving” é algo que só posso interpretar como sendo a História piscando um olho para a Humanidade.
Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Festival de Cannes 2016.
17 de Maio de 2016