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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
21/07/2016 20/05/2016 4 / 5 5 / 5
Distribuidora
Diamond Films
Duração do filme
116 minuto(s)

Dois Caras Legais
The Nice Guys

Dirigido por Shane Black. Roteiro de Shane Black e Anthony Bagarozzi. Com: Russell Crowe, Ryan Gosling, Angourie Rice, Matt Bomer, Margaret Qualley, Keith David, Yaya DaCosta, Beau Knapp, Lois Smith, Murielle Telio, Gil Gerard, Daisy Tahan, Jack Kilmer, Ty Simpkins e Kim Basinger.

Em certos pontos da projeção de Dois Caras Legais, pude jurar que a qualquer momento os personagens-título iriam esbarrar nos detetives particulares Doc Sportello, de Vício Inerente, e Philip Marlowe, de Um Perigoso Adeus, já que todos habitam versões modernas do film noir e – mais importante – sabem disso (mesmo que Um Perigoso Adeus seja de 1973, o que comprova o vanguardismo de Robert Altman). Claro que este cruzamento acaba não ocorrendo, mas só o fato de inspirar este tipo de expectativa é algo que depõe a favor deste longa dirigido e co-escrito por Shane Black.


Responsável pelo ótimo Beijos e Tiros, que trazia Robert Downey Jr. e Val Kilmer forjando boa parte da dinâmica que aqui é repetida por Ryan Gosling e Russell Crowe, Black volta a criar uma narrativa divertida e envolvente que, ambientada em Los Angeles, acompanha uma dupla forçada a trabalhar em parceria e que, composta por um imbecil e um cara durão, se vê ameaçada por forças que não conhece ou compreende – e que em Dois Caras Legais dizem respeito à indústria pornográfica (lembrem-se: a história se passa em 1977 e na Califórnia). Aliás, o longa não apenas se passa na década de 70 como se esforça para parecer ter sido rodado na época dos eventos que narra, o que fica claro desde os primeiros segundos através da tipografia do título, da trilha sonora e, como já dito, da própria ambientação da trama em um mundo que há muito se tornou extinto.

Trazendo Russell Crowe de volta ao gênero para o qual nasceu (algo que ele havia comprovado em Los Angeles – Cidade Proibida), o filme presenteia o ator com o típico anti-herói do noir: repleto de ódio e desprezo por si mesmo, Jackson Healy é um sujeito que vive de espancar pessoas por dinheiro. Barrigudo, solitário e esforçando-se para se manter afastado do álcool, ele é contratado para proteger a misteriosa Amelia (Qualley), mas, antes que alguém sinta a tentação de apostar em sua potencial nobreza, ele se encarrega de deixar sua única motivação clara ao cobrar da moça sete dólares que faltaram em seu pagamento. Bruto e cínico, Healy poderia ter sido vivido por Robert Mitchum ou Fred MacMurray, que certamente se sentiriam perfeitamente à vontade ao dizer falas como “Já amei uma vez” ou “Casar é comprar uma casa para alguém que você odeia”.

Ryan Gosling, por outro lado, compõe o detetive Holland March como um profissional absurdamente incompetente que, atormentado por uma perda pessoal (provocada por, acreditem ou não, sua incapacidade de sentir qualquer odor), se anestesia na bebida enquanto tenta conciliar o alcoolismo com a paternidade, o que nunca é uma tarefa fácil ou desejável. Gosling, contudo, não enxerga na dor do personagem uma motivação dramática, mas cômica, transformando-o num tolo que frequentemente se vê satisfeito com as próprias respostas estúpidas, solta gritinhos agudos diante de qualquer ameaça e que, surpreendido por algo assustador, chega até mesmo a se entregar a uma reação escancaradamente inspirada nas performances do sensacional Lou Costello (e se não acredita, veja este trechinho de Abbott e Costello às Voltas com Fantasmas e a compare com o momento no qual March encontra algo ao lado de uma árvore).

O contraste entre os estilos dos dois atores, diga-se de passagem, é a base do humor da narrativa: se Crowe é o brutamontes que se especializou em encarnar, Gosling subverte a imagem de galã que tantos atribuem a ele (o que é injusto, pois ele é muito mais do que isso) ao surgir, por exemplo, sentado em um vaso sanitário e lutando desajeitadamente contra a porta do reservado. Não que o jovem ator seja estranho à comédia, já que conseguiu fazer jus até mesmo ao hilário Steve Carell ao contracenar com este em Amor a Toda Prova, mas quando pensamos em Russell Crowe e humor, a questão se torna diferente, já que sua falta de timing cômico pode ser percebida quando, aqui, ele tenta fazer um básico spit-take (a velha piada de cuspir algum líquido ao ser surpreendido por algo) e falha terrivelmente – e, ainda assim, o veterano consegue divertir na maior parte do tempo em Dois Caras Legais ao permitir que seus modos impacientes e rabugentos sirvam como fonte de graça.

E se mencionei o fantástico Los Angeles – Cidade Proibida mais acima, a referência volta a se tornar relevante quando constatamos que o casal principal daquela obra volta a se reunir aqui com a decisão de Shane Black de escalar Kim Basinger - uma das poucas decisões realmente ruins do cineasta. Atriz que jamais deixou de ser medíocre (seu Oscar pelo longa de 97 é uma afronta, já que era praticamente a única integrante do elenco que não merecia um prêmio), Basinger continua a demonstrar sua falta de talento ao desperdiçar uma personagem que tinha tudo para se tornar memorável em sua ambiguidade moral, mas que acaba se apresentando, com seu jeito monocórdico de dizer todas as falas, apenas como uma figura que empalidece até mesmo diante daquela que deveria ser uma mera assistente (e que Yaya DaCosta, pouco conhecida no Cinema, converte em uma figura bem mais instigante do que aquela interpretada pela companheira de cena). Em contrapartida, a pequena Angourie Rice não desperdiça a chance oferecida pelo roteiro ao se estabelecer não só como um recurso dramático eficiente (funcionando como motivação para o personagem de Gosling), mas também como a única bússola moral do filme.

Certeiro na maneira como emprega o senso de humor sombrio que resultou em alguns dos melhores momentos de Beijos e Tiros (como aquele no qual o personagem de Downey Jr. decide usar a roleta russa como forma de pressionar alguém), Dois Caras Legais sabe que seus anti-heróis podem justificar vários adjetivos, mas não aquele do título – a não ser que apliquemos um forte relativismo moral ao contrapô-los aos demais elementos da trama. Isto, porém, não é problema, mas uma de suas principais virtudes narrativas.

Vou além: eu não acharia nada ruim caso Healy e March retornassem em novos casos. Talvez assim eles finalmente possam encontrar Sportello e Marlowe.

Taí algo que eu pagaria um bom dinheiro para ver.

21 de Julho de 2016

Assista também ao videocast (sem spoilers) sobre o filme:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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