Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
20/09/2016 | 26/12/1957 | 5 / 5 | 5 / 5 |
Distribuidora | |||
Duração do filme | |||
91 minuto(s) |
Dirigido e roteirizado por Ingmar Bergman. Com: Victor Sjöström, Ingrid Thulin, Bibi Andersson, Gunnar Björnstrand, Jullan Kindahl, Folke Sundquist, Björn Bjelfvenstam, Naima Wifstrand, Gunnar Sjöberg, Gunnel Broström, Gertrud Fridh, Max von Sydow.
O Sétimo Selo e Morangos Silvestres são inquestionavelmente dois dos maiores filmes da História do Cinema, lidando de forma complexa e madura com assuntos densos como a morte, a inexorabilidade do tempo e os legados que deixamos ao partir. Pois não sei o que me espanta mais: ambos terem sido dirigidos pela mesma pessoa, o fato de que esta pessoa tinha apenas 39 de idade ou a constatação de que foram realizados no mesmo ano. Não à toa, cada um deles traz uma referência ao outro: em Morangos Silvestres, o protagonista se detém brevemente diante de um tabuleiro de xadrez logo em sua primeira cena; em O Sétimo Selo, Mia oferece morangos silvestres a Antonius. Detalhe: Mia é interpretada por Bibi Andersson, que aqui é vista pela primeira vez enquanto colhe justamente as frutas.
Escrito pelo próprio Ingmar Bergman durante uma passagem pelo hospital para tratar de úlceras relacionadas ao estresse, este clássico gira em torno das reflexões de Isak Borg (Sjöström), um médico aposentado que está prestes a receber um título honorário de uma faculdade situada na cidade na qual trabalhou por décadas. Inquieto depois de um pesadelo, ele decide fazer a viagem de carro, sendo acompanhado pela nora Marianne (Thulin) – e, no caminho, faz uma breve parada para visitar a casa na qual passava os verões na juventude ao lado da família, o que o lança em mergulhos no passado que o fazem avaliar a própria vida e as relações que formou e destruiu ao longo das décadas.
Vivido pelo veterano cineasta e ator Victor Sjöström, que, já adoentado, aceitou o papel graças à insistência de Bergman, que o considerava um ídolo, Isak Borg é um homem cujos modos simpáticos levam o espectador a considerá-lo um velhinho doce e adorável, mas que, curiosamente, tem sua frieza apontada por quase todos que o cercam. Esta, aliás, é uma das virtudes do filme, que compreende como nem sempre nossos principais defeitos gritam a própria existência, escapando sutilmente sob uma verniz de cortesia – e, de fato, se prestarmos atenção ao que vemos, constataremos como Isak exibe um machismo escancarado ao lidar com a nora, apresentando-se também como um indivíduo egoísta que não perdoa sequer uma dívida do próprio filho, mesmo sendo rico e sabendo que isto mantém o outro em constante estado de tensão (e é interessante apontar que, mesmo que tenha apenas 38 anos de idade, o dr. Evald Borg, filho de Isak, é vivido por Gunnar Björnstrand, que tinha dez anos a mais que o personagem – e visivelmente -, indicando seu desgaste).
Mas não é só: mesmo convivendo há 40 anos com a governanta Agda (Kindahl), Isak jamais estabeleceu um relacionamento informal com a funcionária, já que ambos insistem em se tratar por “Miss” e “Professor” depois de quatro décadas morando na mesma casa. Além disso, a solidão do protagonista fica patente já no primeiro plano do longa, quando o vemos em seu escritório acompanhado apenas por seu cão e pelas fotos dos parentes. Da mesma forma, sua nora não demora a manifestar verbalmente a antipatia que sente pelo sogro, citando o tratamento frio com que este a tratou há pouquíssimo tempo e do qual ele nem mesmo se lembra.
O inconsciente, contudo, é traiçoeiro – e mesmo que não reconheçamos conscientemente nossas fragilidades e medos, ele não demora a nos expor a estes. Assim, é inevitável que, ao dormir, Isak se veja como protagonista de pesadelos que escancaram suas inquietações e o sujeitam a elas. Seu orgulho profissional, por exemplo, é atacado por um sonho angustiante que o traz como uma fraude, ao passo que seu isolamento é ilustrado pela imagem das janelas e portas que o mantém preso do lado de fora da casa ocupada por figuras de seu passado.
Instigante também é notar como Bergman, sempre fascinado por nossos processos mentais, demonstra compreender o mecanismo através do qual nossos pesadelos – perversos em sua mira certeira – incorporam elementos de nossa realidade, ressignificando-os: depois de conhecer um casal cuja dinâmica autodestrutiva parece alimentá-los, Isak absorve ambos em um sonho que lidará com o fracasso de seu próprio casamento, opondo-se à figura de Sara, seu amor de juventude, que mantém-se como símbolo de uma esperança arruinada de felicidade. (E é natural que Bibi Andersson interprete tanto a Sara do passado quanto a do presente, que, com sua alegria – e igualmente dividida entre dois pretendentes, virá a declarar seu “amor” pelo protagonista quando este se encontra em uma sacada e ela em um jardim, numa inversão curiosa do clichê romântico cimentado por Shakespeare em Romeu e Julieta).
Da mesma forma, é relevante perceber como em dois de seus pesadelos, Isak se mostra incapaz de diferenciar se alguém está vivo ou morto, já que, como apontado por... ora, por ele mesmo através de seu inconsciente, a maneira que encontrou para evitar ser ferido por aqueles que amava foi remover “cirurgicamente” a dor – o que trouxe o trágico efeito colateral de anestesiá-lo completamente para os que o cercavam. Assim, ele pode até dizer as coisas “certas”, mas não percebe que estas disfarçam seu vazio emocional (vejam, por exemplo, seu sorriso orgulhoso ao ouvir a Sara de sua juventude listando suas “virtudes” e notem como ele não percebe que ela está, na verdade, apontando como estas o tornam profundamente entediante). Não é acaso, portanto, o olhar horrorizado que Marianne dirige à velha sra. Borg (Wifstrand), já que identifica, nesta, a mesma amargura que se mostra presente em seu filho Isak e em seu neto Evald – e o terror de Marianne é fruto do temor de que esta linhagem de frieza e solidão tenha continuidade no bebê que agora carrega dentro de si.
Como é fácil concluir, Morangos Silvestres é uma obra repleta de ideias e reflexões, mas construída com uma disciplina e um rigor estético invejáveis. Quando Marianne narra para Isak a conversa que teve com o marido, por exemplo, a montagem salta entre planos e contraplanos que ocasionalmente substituem o velho médico por seu filho e vice-versa, indicando como ambos se igualam em seu distanciamento emocional aos olhos da moça. De maneira similar, reparem como todos os parentes vistos na casa de verão vestem branco e têm sua conversa retratada de forma dinâmica através dos cortes rápidos, contrapondo-os à presença escura e monótona de Isak. Para completar, Bergman praticamente resume um dos temas principais de seu filme através da imagem simples, mas perfeita, de um relógio sem ponteiros – o que, somado ao som do “tic-tac” que abre a projeção, sintetiza sua preocupação com o tempo que se esgota à medida que nos aproximamos do fim da vida.
E como escorre, esse tempo: ao folhear um livro antigo, a sra. Borg nota como traz anotações feitas por suas filhas na infância e que agora se encontram mortas, ao passo que o neto que outro dia engatinhava encontra-se prestes a completar 50 anos. Aí, aliás, reside uma das características agridoces da memória: justapor nossas lembranças, nas quais todos seguem jovens e saudáveis, à realidade de decadência física inevitável que se seguiu.
É isto, claro, que torna a conclusão de Morangos Silvestres tão tocante: ao finalmente se permitir focar na lembrança de seus pais num dia ensolarado à beira do lago que marcou sua infância, o doutor Isak Bork pode sorrir ao abraçar as memórias da juventude repleta de promessas em vez de se deixar sufocar pelas frustrações e desapontamentos que as apagaram.
Muitas vezes, isto é o máximo que podemos esperar.
01 de Julho de 2016
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