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Críticas por Pablo Villaça

Black Mirror - Terceira Temporada
Black Mirror - Third Season (ou Season 3)

Dirigido por Joe Wright, Dan Trachtenberg, James Watkins, Owen Harris, Jakob Verbruggen e James Hawes. Roteiros de Rashida Jones, Michael Schur, William Bridges e Charlie Brooker. Com: Bryce Dallas Howard, Alice Eve, Demetri Goritsas, James Norton, Alan Ritchson, Cherry Jones, Wyatt Russell, Hannah John-Kamen, Wunmi Mosaku, Ken Yamamura, Alex Lawther, Jerome Flynn, Natasha Little, Gugu Mbatha-Raw, Mackenzie Davis, Gavin Stenhouse, Raymond McAnally, Malachi Kirby, Sarah Snook, Madeline Brewer, Michael Kelly, Kelly Macdonald, Faye Marsay, Duncan Pow, Charles Babalola, Elizabeth Berrington e Benedict Wong. 

Em 1986, eu era um moleque de 12 anos de idade quando assisti a Aliens, O Resgate e me vi empolgado com a cena em que o personagem de Paul Reiser faz uma videochamada para a tenente Ellen Ripley de Sigourney Weaver. Em retrospecto, parece uma bobagem, eu sei, mas a ideia de duas pessoas conversando em vídeo em tempo real foi algo que estimulou minha imaginação (eu ainda não havia visto Blade Runner). Assim, confesso que até hoje, sempre que uso o Skype ou o Facetime, sinto certo assombro diante dos avanços tecnológicos que testemunhamos. Esta sensação é algo que vi manifestada no sexto e último episódio da terceira temporada de Black Mirror, quando a detetive vivida por Kelly Macdonald, surpresa diante de certa invenção, comenta: “Nunca esperei me pegar vivendo no futuro, mas aqui estou eu”.


Criada pelo britânico Charlie Brooker, Black Mirror é uma série que compreende como o mundo mudou rapidamente nos últimos vinte e poucos anos ao passar pelas revoluções proporcionadas pela popularização do computador pessoal, da Internet e, mais recentemente, dos smartphones. No entanto, o interesse de Brooker não se concentra na tecnologia em si, mas em seu efeito sobre o indivíduo e a sociedade – e, portanto, como as melhores ficções científicas, emprega estas inovações, reais ou (ainda) imaginárias, para investigar a condição humana.

Com um título que remete às telas dos dispositivos eletrônicos aos quais dedicamos parte cada vez maior de nosso tempo, Black Mirror adota o formato de antologia para investigar as mais diversas facetas de nosso envolvimento com nossos aparelhos e as relações que construímos/desenvolvemos/destruímos através destes - além da autoimagem que estas interações geram em cada um de nós. Para isso, a série muitas vezes precisa apenas expandir conceitos já presentes em nosso cotidiano, como as redes sociais, a realidade virtual ou os drones.

Pense, por exemplo, em quantas vezes você já se viu cercado(a) por pessoas que, com as cabeças tombadas sobre seus telefones, rolavam as timelines do Facebook ou do Instagram distribuindo likes automáticos para fotos e posts que mal chegavam a registrar conscientemente, num gesto automático de aprovação sem significado, como uma versão virtual do “Hum-hum” que tantas vezes emitimos sem sequer notar as palavras às quais estamos reagindo. Parte da motivação para estas “curtidas” vazias, instantâneas, reside num componente claramente narcisístico; na presunção de que nossa aprovação é importante para os demais, como se todos prendessem a respiração à espera do nosso clique magnânimo.

Em Perdedores (Nosedive), primeiro episódio desta temporada, Black Mirror leva isto ao extremo, concebendo um mundo no qual likes e curtidas não são somente indicativos de popularidade, mas do valor de cada um na sociedade. Desta maneira, quando Lacie Pound (Howard) solta uma de suas risadas artificiais (uma construção fantástica da atriz), estas não buscam reconhecer a graça de algo, visando apenas criar uma persona simpática que atraia boas reações e, consequentemente, boas notas. Para os homens e mulheres que povoam o episódio, cada interação representa uma oportunidade de subir em um palco atrás de aplausos e as experiências do dia-a-dia só ganham sentido como performances para o consumo alheio: um prato apetitoso vale menos por seu gosto do que por sua fotogenia e uma prosaica ida ao parque se torna simplesmente uma estratégia de autodivulgação; quem somos importa menos do que a imagem que projetamos.

Somos avatares de nós mesmos; nossos nomes de batismo substituídos por @s e nossas identidades resumidas a breves bios e a links para os perfis que mantemos na outra rede social.

A natureza virtual de nossas identidades é também a base do belo episódio San Junipero, que, de um ponto de vista estrutural, tem início de forma inesperada ao situar sua ação não no futuro, mas no passado, enfocando a jovem e tímida Yorkie (Davis), que, visitando a cidade do título, conhece a vivaz Kelly (Mbatha-Raw). Aos poucos, à medida que compreendemos mais aquele universo, a surpresa cede lugar à melancolia (não se preocupem, não há spoilers) – e ainda que constatemos rapidamente o duplo sentido de vários diálogos (não é tão difícil), o que interessa de fato são, mais uma vez, as relações forjadas entre as personagens, as escolhas que estas fazem e as reflexões despertadas a respeito da autenticidade de experiências que vivemos remotamente. Aliás, esta diferença entre o real e o ilusório representa o centro de outro episódio, Versão de Testes (Playtest), que gira em torno de Cooper (Russell, que se destacou no recente Jovens, Loucos e Mais Rebeldes), um norte-americano que, viajando pela Europa, aceita participar da avaliação de um novo jogo de realidade virtual, criando uma incerteza constante no espectador acerca do que está testemunhando – uma dualidade muito bem ressaltada por planos que criam rimas visuais interessantes (como os dois nos quais a câmera, situada no alto de uma escadaria, enfoca Cooper no andar inferior). Mesmo instigante, este é, ao lado de Cala a Boca e Dança (Shut Up and Dance), um dos episódios menos ambiciosos de um ponto de vista temático – e este último só ganha força mesmo graças à revelação final, que usa nossa tendência a avaliar alguém pela aparência para criar um choque curioso.

Odiados pela Nação (Hated in the Nation), último e mais longo episódio da temporada, vai na direção contrária e encaixa, em seus 90 minutos, várias discussões relevantes na atualidade, desde a insistência do Estado em monitorar seus cidadãos (como escancarou Edward Snowden) até a crueldade fomentada pelo anonimato proporcionado pela Internet. Aqui, as investigadoras interpretadas por Kelly Macdonald (com seu adorável sotaque escocês) e Faye Marsay buscam desvendar por que e como alguns indivíduos massacrados nas redes sociais vêm morrendo de forma inexplicável. Com esta premissa, Black Mirror discute a aparente necessidade da Internet de eleger novas polêmicas e novos vilões com uma frequência alarmante – um fenômeno que o excelente jornalista britânico Jon Ronson explorou em seu livro “So You’ve Been Publicly Shamed” e que a série potencializa ao apontar os efeitos nocivos reais (mesmo que aqui imensamente exagerados) provocados pelos linchamentos virtuais destinados a qualquer um que cometa o menor erro de julgamento.

De todo modo, por mais que tenha apreciado todos os episódios discutidos acima, foi mesmo o quinto, Engenharia Reversa (Men Against Fire), que mais me instigou ao reconhecer não só a empatia natural de nossa espécie como também as condições necessárias para anulá-la. Quando nascemos, não trazemos preconceitos ou sentimentos de superioridade; estes surgem à medida que os adultos que nos cercam poluem nossas mentes com suas certezas tolas acerca do próximo – certezas normalmente motivadas apenas pelo que é “diferente”.

Assim, quando alguém agride um homossexual, faz um discurso racista ou diminui todo muçulmano à condição de terrorista, a violência ali representada é, em última análise, uma manifestação de medo que, por sua vez, tem origem na falta de empatia diante da diferença. Sob esta ótica, o soldado Stripe (Kirby), ao ser enviado para eliminar “baratas”, está simplesmente agindo sob a motivação do discurso de ódio empregado para desumanizar o oponente: neste aspecto, os grunhidos dos monstros deformados que o sujeito persegue poderiam ceder lugar perfeitamente a um  “Allahu akbar”.

Aliás, frequentemente cedem. Se o passageiro de um avião exige a retirada de um muçulmano do voo, assim age por encarar o outro como um sub-humano, como um integrante de outra espécie – e uma evidência disso é perceber como, de certo modo, os somalis de Falcão Negro em Perigo, os negros de O Nascimento de uma Nação e os vietnamitas de Os Boinas Verdes poderiam ser facilmente substituídos por hordas de zumbis sem afetar a dinâmica daqueles longas. Não é à toa, tampouco, que Stripe e seus companheiros não sentem cheiro nem ouvem boa parte dos sons do ambiente, já que o ódio sufoca os sentidos, distanciando-nos dos alvos de nossa intolerância e anulando aquilo que poderia nos lembrar de que somos semelhantes.

É por isso, também, que a propaganda é fundamental na guerra: se enxergamos os inimigos como aberrações, destruí-los passa a ser tarefa similar ao ato de esmagar um inseto, enquanto as notícias acerca desta destruição chocam menos do que aliviam. A mesma repulsa devotada aqui às “baratas” é devotada cotidianamente, em nosso mundo, a grupos que são resumidos a substantivos como “refugiados”, “gays” ou “favelados” – e se há quem veja com indiferença a foto de um garotinho sírio ensanguentado ou reaja à execução de um menino de dez anos com um “viva a PM!”, é porque a empatia, esta qualidade que nos faz humanos, há muito deixou de existir em seu cotidiano.

Empatia que, felizmente, não falta a Black Mirror.

23 de Outubro de 2016

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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