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Críticas por Pablo Villaça

Westworld - Primeira Temporada
Westworld - First Season

Dirigido por Jonathan Nolan, Frederick E.O. Toye. Roteiro de Lisa Joy, Jonathan Nolan, Halley Wegryn Gross e Charles Yu. Com: Evan Rachel Wood, Thandie Newton, Jeffrey Wright, James Marsden, Luke Hemsworth, Sidse Babett Knudsen, Angela Sarafyan, Jimmi Simpson, Shannon Woodward, Ben Barnes, Ptolemy Slocum, Leonardo Nam, Rodrigo Santoro, Ingrid Bolsø Berdal, Talulah Riley, Tessa Thompson, Simon Quarterman, Louis Herthum, Steven Ogg, Oliver Bell, Izabella Alvarez, Clifton Collins Jr., Ed Harris e Anthony Hopkins.

(Este texto inclui SPOILERS da primeira temporada.)


O que nos torna humanos? Qual é a verdadeira natureza da consciência? Quando reagimos a uma memória, esta reação – por mais intensa que seja – se torna menos real caso a lembrança seja falsa ou imprecisa? E extrapolando estas discussões, em que momento uma criatura artificial atravessaria o limite entre a senciência e a consciência?  Em outras palavras: se ela for capaz de evocar memórias (plantadas ou não), experimentar algum tipo de efeito por elas provocado e refletir sobre suas causas e consequências, poderíamos descartar estes efeitos e reflexões como ilegítimos ou deveríamos considerá-los como atestados de individualidade e consciência?

Estas são algumas das provocações filosóficas e existenciais feitas por esta excelente primeira temporada de Westworld, que, inspirada no filme homônimo escrito e dirigido por Michael Crichton em 1973, vai muito além do original, que basicamente era uma versão de teste de Jurassic Park que trazia androides no lugar de dinossauros.

Idealizada pelo casal Lisa Joy e Jonathan Nolan (irmão de Christopher), Westworld potencializa suas discussões, suas tramas e personagens ao tomar duas decisões cruciais com relação ao longa de 73: simplificar o conceito e o universo, reduzindo os quatro parques temáticos a apenas um (ao menos por enquanto), e inverter o ponto de vista central da narrativa, que deixou de ser focada nos visitantes e passou a se concentrar nos androides, deixando de retratá-los simplesmente como vilões e buscando compreender a situação de pesadelo que viviam.

E que pesadelo: servindo como objetos de gratificação imediata para humanos que visitam o parque em busca de experiências extremas vetadas em qualquer sociedade civilizada, os autômatos basicamente se alternam em seus papeis como escravos sexuais, trabalhadores não-remunerados e alvos “vivos” para aqueles que desejam conhecer a sensação de matar alguém – e o problema, aqui, reside precisamente nas aspas em torno da palavra “vivos”, já que os robôs se mostram capazes de sentir medo, dor e tristeza, não sendo um grande consolo o fato de suas memórias serem apagadas a cada vez que são reparados e devolvidos à ativa. A jovem Dolores (Wood), por exemplo, é condenada a reviver todas as noites a morte violenta de seus pais e seu próprio estupro, ao passo que a cafetina Maeve (Newton) é obrigada a servir clientes sádicos que não a consideram digna de tratamento minimante humano enquanto tem pesadelos recorrentes nos quais se vê como uma mãe que testemunha o assassinato da filha – um evento que, como ela irá descobrir, de fato ocorreu em uma de suas versões passadas. E se o pobre Teddy (Marsden) repete seus ciclos com ansiedade constante para rever a amada Dolores sem se dar conta de que seu papel particular é o de ser o eterno perdedor, o bandido Hector (Santoro) e sua cúmplice Armistice (Berdal) retornam continuamente à cidadezinha de Sweetwater para roubar um cofre cujo conteúdo nunca conseguem descobrir.

Não que os humanos também não enfrentem seus próprios dilemas, já que uma das forças de Westworld encontra-se em sua habilidade de criar arcos dramáticos bem definidos para cada um dos personagens: o misterioso Homem de Preto (Harris), por exemplo, percorre o parque em uma missão sangrenta em busca do centro de um labirinto que, ele acredita, trará sentido às visitas que ele vem fazendo ao local há 30 anos, ao passo que o dr. Robert Ford (Hopkins), criador da atração, se concentra em desenvolver uma história nova para apresentar aos convidados, enfrentando no processo a resistência dos acionistas da corporação e da rígida Theresa Cullen (Knudsen), responsável pela segurança de Westworld e que vê com preocupação crescente o comportamento errático de vários androides desde que passaram pela mais recente atualização em seus códigos.

Entre todos estes (há dois outros importantes personagens que discutirei mais adiante), a âncora da narrativa é indubitavelmente Dolores, cuja impressionante trajetória pode ser resumida pelo contraste entre o primeiro e o último planos desta temporada: se inicia a história como uma criatura inanimada, vulnerável, impotente e mergulhada na escuridão e no vazio de um laboratório, ela a encerra exibindo uma dominância violenta e assustadora sobre os antigos mestres, disparando sua arma não apenas contra seu co-criador, mas contra aqueles que a encaravam como um brinquedo a ser manipulado sem cuidado até se partir. Aliás, o percurso emocional e psicológico da personagem é retratado com tanta intensidade e talento por Evan Rachel Wood que o momento no qual ela finalmente compreende a própria natureza e sua imortalidade acaba se apresentando como um daqueles instantes imediatamente icônicos – algo que é ressaltado pela direção de Nolan, que apropriadamente o registra com um movimento de câmera que parte do alto, trazendo a moça frágil e caída no chão, e desce enquanto ela se levanta, transformando-a em um ser gigante e ameaçador.





Mas se Wood é uma protagonista formidável, a fantástica Thandie Newton merece aplausos igualmente entusiasmados, já que sua construção da jornada de Maeve demonstra um controle absoluto sobre uma personagem que não só ganha consciência diante de nossos olhos, mas também um intelecto crescente e uma compreensão dolorosa acerca das próprias circunstâncias. Aliás, a atriz é o centro de algumas das cenas mais chocantes da temporada, já que sua percepção da realidade surge às custas do pavor de subitamente se ver como um objeto vivo de autópsia em um mundo que só pode lhe soar como um traumático filme de terror.

Contudo, se a condução narrativa de Westworld já despertaria admiração apenas ao acompanhar estes arcos, a fascinação só se torna maior quando constatamos, ao longo dos dez episódios, que Nolan e Joy não apenas constroem com segurança suas diversas tramas paralelas, mas o fazem também em uma cronologia não-linear – com o adendo vital de que, durante a maior parte da temporada, esta fluidez temporal não é escancarada, embaçando-se propositalmente para criar a impressão de estarmos vendo um único período quando, de fato, estamos acompanhando três (ou quatro, se quisermos ser mais detalhistas). Esta oscilação cronológica, claro, é marcada pela jornada de mais um personagem, William (Simpson), que, visitando o parque pela primeira vez, se vê encantado por uma Dolores que, perturbada por vozes e visões, tenta chegar a um lugar que não conhece de fato – e é ao acompanhar a garota que o rapaz, de sujeito doce, romântico e passivo, se transforma no violento e implacável Homem de Preto cujas ações estávamos acompanhando sem perceber que seguíamos também sua versão jovem. Também neste aspecto, é bom ressaltar, a série apresenta uma inteligência narrativa admirável – e é recompensador notar, por exemplo, como as roupas de William vão se modificando ao longo do tempo: se inicialmente ele escolhe um chapéu branco e vestimentas marrons, aos poucos estas vão sendo substituídas por peças mais escuras até que culminam no preto (inclusive no chapéu) que marca a personalidade do vilão vivido por Ed Harris. (E, claro, outro detalhe bacana é a faca idêntica que as duas versões do personagem carregam.)









O que finalmente nos traz a Bernard Lowe, o engenheiro interpretado pelo excepcional Jeffrey Wright e que, braço direito do dr. Ford, aos poucos revela camadas surpreendentes. Metódico, calmo e inquestionavelmente inteligente, Bernard é nossa âncora entre os administradores do parque, despertando nossa simpatia – e não é à toa que Westworld adota esta estratégia, já que usará nossa identificação com o sujeito para explorar algumas das questões apresentadas na introdução deste texto. Para isso, a série expõe, quase ao fim da temporada, que o engenheiro é, na realidade, um androide – e como suas dores e incertezas eram também as nossas por um processo de proximidade psicológica, a revelação nos leva a questionar justamente a “legitimidade” de todos aqueles sentimentos ao mesmo tempo em que permite que compreendamos a confusão de Bernard com relação à percepção de sua própria consciência.

Esta, no entanto, é apenas parte da revelação, já que a seguir também somos informados de que Bernard foi concebido como uma homenagem a Arnold Weber (sim, que gera o anagrama “Bernard Lowe”), antigo sócio do dr. Ford que morreu de forma trágica antes da inauguração do parque – e o fascinante é constatar como Westworld já havia nos apresentado a Arnold desde o primeiro episódio sem que nos déssemos conta, mais uma vez fazendo um belíssimo exercício técnico e artístico através de seus figurinos, posto que a versão original veste sempre camisas pretas e abotoadas, ao passo que sua “cópia” adota casacos e ternos abertos sobre camisas claras ou azuis. Além disso, é importante notar as rimas visuais e textuais criadas entre os androides, já que estes são os únicos que vemos acordando (Dolores, Maeve e Bernard) ou vendo imagens que, por contradizerem o que sabem de seu mundo, lhes são incompreensíveis (“Isso não se parece com nada para mim”, dizem Hector, Dolores e Bernard em momentos distintos).







Complexo ao acompanhar não só o “presente” (com o Homem de Preto, o dr. Ford, Bernard, Theresa e Maeve), mas também eventos ambientados 30 anos antes (a jornada de Dolores e William), Westworld ainda consegue, portanto, incluir um terceiro período (as conversas entre Dolores e Arnold, além do massacre que antecedeu a abertura do parque) – e se mencionei que há também uma quarta linha temporal, é porque acompanhamos a trajetória de Dolores não só no presente, mas também no passado, já que as passagens com William são simultaneamente flashbacks e “alucinações” que a garota vivencia enquanto repete os passos feitos três décadas antes, o que explica por que seus companheiros de viagem parecem sumir de vez em quando. (E gosto especialmente do detalhe que traz o agente de segurança Stubbs (Hemsworth) perguntando se Dolores abandonou seu ciclo para acompanhar um hóspede e ouve sua subalterna dizer “Não está claro”, numa pista precoce de que agora ela se encontra sozinha.)




Um dos elementos mais divertidos da experiência de acompanhar Westworld, aliás, reside em perceber estas pistas narrativas plantadas pelos realizadores, desde a forma idêntica com que William e o Homem de Preto cumprimentam Dolores até as diferenças na logomarca do parque, que surge levemente modificada nas duas linhas temporais - e passando também pela maneira como a foto que traz o dr. Ford e Arnold exibe um enquadramento deselegante, já que o espaço ocupado por este último se encontra vazio em função da incapacidade de Bernard de enxergar o que o deixaria confuso (e os mais atentos certamente notarão que o homem que vemos ao lado de Ford na imagem é seu pai, que conhecemos em sua versão androide). Neste aspecto, cabe perceber também como o dr. Ford subitamente surge na tal cabana quando Bernard é atacado, já que este não consegue ver a porta que leva ao porão.








Certamente trazendo novas recompensas para os espectadores que se aventurarem a revisitar as dez horas da primeira temporada, Westworld sabe como brincar com as possibilidades narrativas à sua disposição, desde o cuidado ao criar duas versões da interface para acessar os androides (uma mais simples, que Arnold manipula no início do parque, e outra bem mais complexa empregada décadas depois) até gags visuais como aquelas que trazem Lawrence (Collins Jr.) vendado em duas passagens diferentes enquanto, ao fundo, vemos alguém ser atingido por tiros disparados pelo Homem de Preto. E como não admirar o belo plano que exibe o dr. Ford conversando com o androide de sua versão infantil, que confessa um ato de crueldade, enquanto o reflexo da criança surge sobre o do adulto, igualmente capaz de ações indizíveis? (O personagem, aliás, representa um dos melhores momentos da carreira de Anthony Hopkins, merecendo figurar ao lado de Hannibal Lecter entre suas criações memoráveis - algo que é ressaltado pelas grandes angulares que o tornam ainda mais ameaçador e pelas sombras que, ao final, ocultam metade de seu rosto, ilustrando sua natureza ambígua.)






Sim, a série traz também sua parcela de equívocos: embora em certo episódio a inescrupulosa Charlotte (Thompson) diga, por exemplo, que um bom escritor “não conta; mostra”, é precisamente isto que Nolan e Joy fazem no desfecho da temporada, quando ouvimos longos monólogos expositivos do Homem de Preto e do dr. Ford. Por outro lado, como o próprio personagem de Ed Harris aponta em outro momento, a vantagem da ficção sobre a realidade é que o caos desta última cede lugar à organização da primeira, que pode fazer com que cada detalhe se some aos demais e construa um significado coeso – e não há dúvida de que estas dez excelentes horas de Westworld executam esta proeza.

E o melhor: no processo, somos levados não só a apreciar os caminhos percorridos por personagens instigantes, mas a contemplar como, assim como aqueles, somos resultado não apenas de nossas próprias histórias, mas da reflexão sobre aquelas vividas por outros.  

Mesmo que estes outros sejam habitantes fictícios de um universo imaginário.

6 de Dezembro de 2016

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Assista também ao videocast - com spoilers - sobre a primeira temporada.

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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