Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
02/02/2017 | 02/12/2016 | 4 / 5 | 4 / 5 |
Distribuidora | |||
Diamond Films | |||
Duração do filme | |||
100 minuto(s) |
Dirigido por Pablo Larraín. Roteiro de Noah Oppenheim. Com: Natalie Portman, Peter Sarsgaard, Greta Gerwig, Billy Crudup, Richard E. Grant, Beth Grant, Caspar Phillipson, Max Casella, John Carroll Lynch e John Hurt.
De um ponto de vista histórico, Jacqueline Kennedy é mais lembrada como Viúva do que como Primeira-dama – e a primeira imagem que costumamos associar a ela é a de uma mulher desesperada em um modelito rosa saltando sobre o porta-malas de um carro em alta velocidade enquanto tenta recolher partes do cérebro do marido morto ao seu lado. Assim, é fácil encará-la como uma mera personagem secundária (mesmo trágica) em uma das cenas mais icônicas da História. A ironia, contudo, é que a natureza icônica desta cena foi acentuada, em boa parte, pela comoção que tomou conta do planeta nos dias seguintes ao assassinato – uma comoção que a sra. Kennedy foi instrumental em planejar.
Escrito por Noah Oppenheim, Jackie se concentra justamente nos dias entre a morte de Kennedy e seu enterro (incluindo uma breve – mas importante - passagem dias depois deste) – e, portanto, não pode ser considerado exatamente uma cinebiografia, apresentando-se mais como um esforço de imaginação acerca das motivações, forças e fragilidades da personagem-título (Portman) em um período crucial de sua vida. Contando com uma estrutura dramática convencional, o roteiro parte da entrevista concedida por Jackie ao jornalista Theodore White (Crudup), da revista LIFE, alguns dias depois do velório e que, com apenas duas páginas de extensão, basicamente estabeleceu a imagem dos dias de JFK na Casa Branca como uma mítica e inigualável Camelot. A partir desta conversa, o filme se entrega a flashbacks (e flashbacks dentro de flashbacks) para retratar algumas das passagens mais importantes daqueles dias, guiando-se menos pela cronologia dos incidentes do que pela lógica emocional da protagonista.
Já em seu primeiro plano, aliás, o diretor chileno Pablo Larraín deixa clara a estratégia narrativa que adotará ao enfocar Jackie caminhando na direção da câmera enquanto esta se afasta num travelling – um tipo de quadro que se repetirá várias vezes ao longo da projeção e que permite que o espectador estude detidamente o rosto da primeira-dama e mesmo interprete o que este transmite. Logo naquele plano inicial, por exemplo, a expressão exibida por Natalie Portman é realmente de tristeza ou a projetamos ali por sabermos a tragédia que a cerca? Esta é uma incerteza que se mantém até o fim: frequentemente, a sensação é a de estarmos próximos de “desvendar” quem é aquela mulher, mas nunca chegamos lá de fato; há sempre uma incógnita ao seu redor. Embora tenha sido provavelmente uma das pessoas mais escrutinadas do planeta, Jackie seguiu um mistério (basta resgatar a reação estupefata da imprensa mundial diante de seu casamento com o milionário grego Aristóteles Onassis para constatar isso).
Esta aparente contradição é exposta visualmente por Larraín e pelo diretor de fotografia Stéphane Fontaine também no primeiro ato do filme, quando vemos Jacqueline diante de uma imensa janela, exposta para o mundo, mas numa contraluz que a transforma em uma silhueta – uma imagem que, de forma elegante, acaba fazendo uma rima visual com outra no terceiro ato, quando a personagem observa lojas trocando a exposição de suas vitrines e indicando que, como ocorreria com ela, logo outros interesses e assuntos surgiriam na mídia para substituí-la. Jackie, por sinal, é uma obra que desenvolve bem esse tipo de rima; afinal, se no início vemos a protagonista explicando como trabalha para moldar a imagem da Casa Branca, ao final perceberemos que ela faria o mesmo com a do marido assassinado.
Pois este é o paradoxo da presidência de Kennedy: permanecendo menos de três anos no poder, o ex-presidente norte-americano deixou um legado ínfimo e duvidoso – até mesmo por não ter tido tempo de construí-lo. Lembrado mais por sua morte (e pela crise dos mísseis em Cuba, que, como Bobby (Sarsgaard) diz aqui, ele também ajudou a criar), Kennedy acabou sendo definido principalmente por ter sido uma das primeiras personalidades a ter sua morte registrada pelas câmeras – e, no entanto, é constantemente citado como um dos “melhores presidentes” que o país teve quando, na realidade, foi apenas a promessa de um. No entanto, ao recriar diversos elementos do funeral de Abraham Lincoln, Jacqueline Kennedy uniu com sucesso seu impulso de viúva devotada e o propósito patriótico (“patrótico”?) de transformar o marido em um símbolo histórico.
Esta preocupação com a mídia e a percepção pública acerca de temas políticos é algo que Pablo Larraín já havia explorado muitíssimo bem em seu No, de 2012, e que, como Jackie, também empregava recriações históricas e de registros em vídeo com eficiência. Ciente também da solidão que a posição e a exposição de Jacqueline causavam, o diretor é hábil ao levar o público a sentir este isolamento ao manter a câmera girando em torno de Natalie Portman (capturando, por exemplo, a breve hesitação da primeira-dama diante da multidão ao descer do avião) e ao adotar uma profundidade de campo reduzida que, em diversos momentos, a separa de todos os outros elementos da mise-en-scène, que surgem desfocados e distantes. Além disso, Larraín e Fontaine investem em planos mais abertos nos quais Jackie encontra-se sozinha em ambientes espaçosos, tornando-se comparativamente pequena e frágil.
A fotografia de Fontaine, aliás, é inteligente e expressiva ao adotar um grão mais grosso que remete à textura do 16mm associado à época, variando também a saturação das cores de acordo com o instante emocional da narrativa: a chegada em Dallas, por exemplo, traz cores vibrantes que se repetem (embora um pouco menos intensas) nos flashbacks que a trazem com o marido em passagens alegres; já o período pós-assassinato apresenta-se cinzento e melancólico (reparem a cena no cemitério Arlington sob chuva e neblina) – e a cena que traz o caixão de Kennedy no Capitólio, cercado por sombras e por pessoas de preto, é ao mesmo tempo esteticamente magistral e emocionalmente devastadora.
E no centro de toda esta imponência visual há Natalie Portman, que, de um ponto de vista puramente técnico, oferece uma performance notável: adotando uma voz suave, frequentemente trêmula e que soa quase como um suspiro em vários momentos, a atriz captura a cadência e o sotaque característicos de Jacqueline Kennedy, ilustrando também com competência seu desconforto ao aparecer num programa de tevê, quando caminha de forma rígida, mal movendo os braços e se posicionando artificialmente em um ponto previamente marcado. São estes modos contidos, diga-se de passagem, que se mostram fundamentais para criar o choque que sentimos quando subitamente a vemos chorando e coberta de sangue após a visita a Dallas, ressaltando o horror ao qual aquela mulher foi submetida – e que ela tenha conseguido, poucas horas depois, aparecer ao lado do vice Lyndon B. Johnson (Lynch, eficaz sem quase abrir a boca) é algo quase inacreditável. Amparada pelos belos trabalhos de Peter Sarsgaard e John Hurt (em um de seus últimos papéis no Cinema), Portman aproveita até mesmo a artificialidade de certos trejeitos que adota, já que estes parecem fazer parte da persona que Jackie criou ao longo dos anos. Por outro lado, a dinâmica que o filme tenta construir na entrevista com o jornalista de Billy Crudup falha ao soar inverossímil e maniqueísta: é absurdo presumir que o sujeito tenha se mostrado tão hostil à viúva e decepcionante perceber que esta hostilidade é introduzida só para que ele, ao final, mude de comportamento e passe a admirá-la, criando um arco desnecessário e falso.
Mas se há elementos narrativos de Jackie que jamais poderão ser ignorados nas discussões acerca da obra, estes são o design de som de David Miranda-Hardy e, especialmente, a fabulosa trilha sonora composta pela brilhante Mica Levi, que, como já havia feito em Sob a Pele, cria temas preocupados em refletir o tumulto interno da protagonista, não um determinado tom dramático ou de suspense. Para alcançar este efeito, a compositora investe em instrumentos de cordas em arranjos dissonantes cujas repetições espalham angústia e ansiedade – e quando estes são substituídos, por exemplo, por cantos de pássaros, é como se um véu fosse momentaneamente removido da alma do espectador.
Estudo de personagem intrigante – mesmo que este estudo seja feito a partir de extrapolações do roteirista -, Jackie compreende como John F. Kennedy foi, em grande parte, uma construção – e, principalmente, como Jacqueline, ao construí-lo, também se delegou um papel quase mítico. Quem ela foi de fato não sabemos e o filme não procura realmente desvendar.
Mas certamente compreendemos que foi muito mais do que uma esposa-troféu de roupa rosa e voz frágil.
03 de Fevereiro de 2017
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