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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
09/02/2017 20/01/2017 2 / 5 3 / 5
Distribuidora
Duração do filme
117 minuto(s)

Fragmentado
Split

Dirigido e roteirizado por M. Night Shyamalan. Com: James McAvoy, Anya Taylor-Joh, Betty Buckley, Haley Lu Richardson, Jessica Sula, Izzie Coffey, Brad William Henke, Sebastian Arcelus e M. Night Shyamalan.

O suspense, como conceito formal, nada mais é do que uma expectativa que demora a se cumprir: ciente de que algo provavelmente irá ocorrer, o espectador antecipa algo enquanto o ato narrativo o adia. De um ponto de vista teórico, o cineasta M. Night Shyamalan obviamente compreende isso, revelando-se particularmente eficiente em colocá-lo em prática no início de sua carreira. Porém, com o passar dos anos – e de seus filmes -, Shyamalan transformou o próprio ato de adiar em centro de sua estratégia como contador de histórias, parecendo se esquecer da outra parte importante: a de que o público só sente o suspense se houver algo a aguardar. Com isso, o que era para ser suspense virou mera interrupção, um arrastar de incidentes que soa como um floreio estilístico divorciado de significado ou propósito. E o fato de se tornar um roteirista cada vez mais pavoroso só aumenta o desastre.


Para constatar o problema, basta apenas observar a primeira cena de Fragmentado, seu novo longa: quando vemos Dennis (McAvoy) entrar no carro ocupado pelas três estudantes que ele irá sequestrar e manter em cativeiro durante toda a projeção, Shyamalan foca sua câmera em Casey (Taylor-Joy), que, no banco do passageiro, olha pelo retrovisor e percebe que o motorista original havia sido atacado - concluindo, portanto, que a pessoa que ela acabou de ouvir entrando no veículo é um estranho. O que ela faz então? Leva uns bons 20 segundos enquanto se vira leeeeentamente para encará-lo, numa demora que, se poderia funcionar como suspense (a expectativa é: o que ela verá?), acaba se tornando artificial e perdendo o efeito, tornando-se apenas mais risível quando, depois de constatar a ameaça, ela inicia a fuga mais lenta do mundo em outra tentativa fracassada de gerar tensão. O invasor, por sua vez, simplesmente ignora a garota a princípio, como se não a enxergasse – novamente, um esforço do diretor para estender a situação, mas que, de tão implausível, me levou a pensar inicialmente que Casey não existia de fato. (Ela existe; não é esta a tola reviravolta que Shyamalan prepara desta vez.)

Infelizmente, este é apenas o primeiro de vários exemplos que demonstram como o realizador parece ter perdido completamente o controle sobre a linguagem de seus filmes. Notem, por exemplo, como seu uso de câmera subjetiva é errático e sem a menor coerência: se a princípio ele usa o recurso para colocar o espectador na pele de Casey, subitamente vemos, num rápido plano, o ponto de vista de uma das amigas da garota – algo que jamais voltará a se repetir e que serve apenas para... bom, para comprometer qualquer lógica narrativa que Shyamalan estivesse criando. Para piorar, o diretor continua a exibir sua velha tendência de exigir que todos os atores digam... suas... falas... arrastadamente... e... com... várias... pausas – o que não apenas elimina suas personalidades individuais como, mais uma vez, ilustra seu esforço para criar suspense através da lentidão.

A exceção, aqui, fica a cargo de James McAvoy, que consegue se livrar dos shyamalanismos e confere vivacidade às várias personalidades do vilão – e há um instante em especial no qual uma de suas identidades tenta se passar por outra, sendo notável como, com uma leve alteração em sua expressão, o ator consegue nos levar a perceber a mudança. Sim, várias destas identidades acabam soando como caricaturas (a criança com língua presa; o estilista gay repleto de trejeitos), mas isto é até perdoável quando consideramos a difícil tarefa de McAvoy, que depende basicamente das composições físicas para estabelecer as diferenças.

Por outro lado, menos compreensível é a tendência de Shyamalan de transformar algumas destas versões criadas por McAvoy em piadas, o que elimina boa parte da tensão que poderiam causar, enquanto ainda falham como tentativas de humor. Para piorar, o roteiro é simplesmente incoerente, inicialmente sugerindo gratuitamente um tom conspiratório, como se houvesse um grande segredo mantido entre Dennis/Barry/etc (McAvoy/McAvoy/McAvoy) e sua psiquiatra, a Dra. Karen Fletcher (Buckley), mas que, na realidade, é apenas um esforço desonesto para criar mistério. A médica, por sinal, aos poucos se revela uma das profissionais mais incompetentes do mundo, entregando-se a teorias que não fazem o menor sentido de um ponto de vista biológico básico enquanto o filme tenta nos levar a acreditar estarmos diante de uma figura brilhante (em certo momento, a coisa se torna tão ridícula que a personagem chega a uma conclusão que considera relevante ao observar como alguém se comporta diante de uma lata de lixo derrubada, afirmando, como uma autêntica Sherlock Holmes, que “qualquer pessoa teria dado a volta em torno do entulho”).

Há, é verdade, alguns elementos instigantes na trama básica: a ideia de personalidades disputando para “vir à luz” e tomar controle de um corpo é promissora, bem como o conceito da “horda” e de identidades diferentes dominando o vilão ao mesmo tempo, mas estes são exemplos raríssimos em um roteiro que, caso escrito por um desconhecido, provavelmente seria atirado no lixo. (E a partir de agora vou comentar algumas passagens específicas; portanto, sugiro retomar a leitura apenas depois de assistir ao filme.) Como pode ser aceitável, por exemplo, que um roteirista profissional inclua uma cena como aquela em que a psiquiatra, ciente de que dizer o nome completo do vilão trará sua personalidade original de volta, escreve num papel, basicamente para si mesma, a frase “Diga o nome dele: Kevin Wendell Crumb”? Ou devemos supor que aquele é um bilhete que ela deixou sobre a mesa do sujeito como um recado para uma garota que ela viu de passagem presa em um armário e que ela nem sequer sabe se está ou não a par da desordem do sequestrador para compreender a mensagem?

Mas talvez a maior ofensa de Fragmentado seja o cinismo de Shyamalan ao empregar a pedofilia como uma mera reviravolta ao incluir diversos flashbacks ao longo da projeção cuja única função é preparar o terreno para a revelação de que Casey, quando criança, foi molestada pelo tio. E por que isso é importante? Porque as marcas deixadas em seu corpo, quando finalmente expostas depois que sua última blusa é retirada (sim, ela vai removendo a roupa durante a narrativa), levam o vilão a considerá-la como uma “igual”, salvando-a. Ora, devemos supor, então, que o fato de ter sofrido abuso foi algo bom? Ou que isto a torna tão “danificada” quanto o personagem de McAvoy? Qualquer uma das duas opções é ofensiva – e não há como descartá-las no contexto criado pelo roteiro.

Incapaz de criar um único momento autêntico de tensão, M. Night Shyamalan ao menos oferece uma boa surpresa nos últimos segundos do filme ao tentar criar seu próprio Shyamalan Extended Universe (SEU) e revelar que Fragmentado se passa no mesmo universo de Corpo Fechado, seu último grande filme.

Aliás, desde que vi aquela obra torço por uma continuação – que é o que este novo filme promete. Depois de tudo que Shyamalan fez desde então, porém, confesso que agora tenho medo de ver meu desejo atendido.

09 de Fevereiro de 2017

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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