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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
15/02/2018 10/11/2017 5 / 5 5 / 5
Distribuidora
Fox
Duração do filme
115 minuto(s)

Três Anúncios para um Crime
Three Billboards Outside Ebbing, Missouri

Dirigido e roteirizado por Martin McDonagh. Com: Frances McDormand, Woody Harrelson, Sam Rockwell, Abbie Cornish, Lucas Hedges, Zeljko Ivanek, Caleb Landry Jones, Clarke Peters, Samara Weaving, Darrell Britt-Gibson, Malaya Rivera Drew, Sandy Martin, Kathryn Newton, John Hawkes e Peter Dinklage.

Mildred Hayes é uma mulher durona que não admite desaforos, não teme as autoridades e é determinada o bastante para assumir o controle de situações que muitos veriam como sem esperança. E, no entanto, basta estar diante do ex-marido abusivo para que se torne fisicamente fragilizada e emocionalmente vulnerável, buscando formas até mesmo de justificar várias das atitudes do sujeito. O interessante é que a relação entre Mildred (McDormand) e o ex-marido (Hawkes) está longe de ser o centro de Três Anúncios para um Crime, mas que o diretor e roteirista Martin McDonagh busque ilustrar, mesmo nas poucas cenas do casal, como a dinâmica em um relacionamento abusivo pode vitimizar a mais forte das mulheres é um sinal admirável do cuidado de seu excelente roteiro.


Dominada pela frustração e pela raiva diante da aparente inação dos policiais locais no que diz respeito à morte da filha, que, antes de ter o corpo carbonizado, foi estuprada enquanto morria (o “enquanto” torna o horrível ainda pior), Mildred decide comprar anúncios nos outdoors que ficam numa estrada pouco utilizada nas proximidades da cidade, usando-os para questionar publicamente a polícia – e, em particular, o chefe Willoughby (Harrelson). Homem de modos contidos, Willoughby ainda assim fica chocado com a atitude de Mildred – especialmente ao constatar que esta já sabia que ele se encontra com câncer de pâncreas terminal. Porém, se o chefe ainda se mantém razoável, seu subordinado, Dixon (Rockwell), mal pode conter o impulso de resolver a questão com violência, já que, além de racista, tem o já explosivo temperamento piorado pelo álcool.

Ambientado na pequena cidade do título original, Ebbing, Três Anúncios não hesita em conferir ares ocasionais de western à narrativa – algo que o compositor Carter Burwell ressalta musicalmente em diversas passagens. A tensão, por sinal, é potencializada não apenas pelo fato de todos se conhecerem desde sempre (o que faz de todas as questões algo pessoal de um modo ou de outro), mas também porque não há como evitar os desafetos em um local tão minúsculo – e a proximidade entre a delegacia e o escritório de Red Welby (Jones), responsável pelos outdoors, é um fator complicador justamente por não permitir que alguém como Dixon tenha tempo para controlar seus impulsos antes de agir.

Aliás, o envolvimento de Burwell com o projeto não poderia ser mais apropriado, já que, colaborador habitual dos irmãos Coen (assim como Frances McDormand, que, aliás, é casada com um deles), ele usa seus belos temas para ressaltar as bem-vindas similaridades entre a filmografia daqueles e o tom da narrativa e a composição dos personagens deste Três Anúncios. É divertido, por exemplo, reparar como as figuras que habitam Ebbing não são exatamente realistas e tampouco caricaturas, contendo traços de estilização que não as tornam menos reais, mas permitem certo grau de absurdo em suas ações sem que percam a plausibilidade. Do mesmo modo, o humor presente no longa surge frequentemente da brutalidade (como na cena no consultório do dentista) ou do quase nonsense (Mildred nega ter se consultado com o sujeito embora tenha a dicção claramente comprometida pela anestesia), outras duas características típicas dos Coen.

McDormand, por sinal, encontra aqui seu melhor papel fora da obra dos irmãos, se entregando à personagem com o vigor e a riqueza habituais. Surgindo em cena pela primeira vez em um reflexo no retrovisor do carro que expõe apenas seus olhos, Mildred já é apresentada ao público quase como um ser mítico – algo que será ressaltado pelo figurino que pouco muda (reforçando a imagem icônica) e por sua presença de espírito nos duelos verbais que trava com vários oponentes. Além disso, a atriz não teme permitir que a protagonista se torne desagradável aqui e ali, o que pode ser observado em suas interações com James, que Peter Dinklage encarna como um homem que constantemente se abre para aquela mulher mesmo sabendo que irá se ferir. Por outro lado – e o formidável talento de McDormand é fundamental aqui -, logo percebemos como Mildred é capaz de demonstrar imensa compaixão, o que sugere como sua postura diante do mundo foi afetada pela morte da filha - e a cena em que a personagem vai de uma expressão de confronto e desafio a outra de pura piedade ao conversar com Willoughby em certo instante é testamento de seu brilhantismo.

Claro que, neste aspecto, o carisma de Woody Harrelson é também essencial, levando o espectador a simpatizar com o chefe de polícia mesmo sabendo que, a rigor, ele é o antagonista de nossa (anti-)heroína. Evocando dignidade e sinceridade mesmo ao discutir com Mildred, Willoughby é um homem fundamentalmente bom, o que o torna capaz também de enxergar bondade nos lugares menos esperados (como em Dixon, por exemplo). Exibindo um surpreendente bom humor diante da morte iminente, o sujeito só permite que sua vulnerabilidade e seu medo venham à tona quando se encontra sozinho – e toda a sequência que culmina em uma cena no estábulo é profundamente tocante graças à composição de Harrelson.

O que nos traz a Dixon, que passou a dominar todas as discussões temáticas sobre Três Anúncios durante a longa temporada de premiações: obviamente racista e violento, ele é um claro exemplar do tipo de policial que torna necessário movimentos como o Black Lives Matter graças à sua brutalidade. Dixon é, sem sombra de dúvida, um homem perturbado que jamais deveria portar arma ou distintivo – e, no entanto, há algo no personagem que nos impede de detestá-lo como gostaríamos. Parte deste efeito vem da caracterização de Rockwell; parte, de sua trajetória. Composto pelo ator como um indivíduo de modos frequentemente infantis que constantemente fica sem resposta ao ser ridicularizado por todos que o cercam, Dixon é um homem adulto que ainda mora com a mãe, que parece incapaz de descobrir sequer o próprio distintivo e que tem náuseas ao ver fotos de um crime. Além disso, sua postura diante de Willoughby é quase de adoração, como se houvesse projetado neste a figura paterna que não teve e que foi (mal) substituída pela mãe (Martin, fantástica) que parece responsável por tê-lo tornado preconceituoso e violento, incentivando suas piores características e manipulando-o para que tome atitudes ainda mais tolas (em defesa da sra. Dixon, ela parece realmente acreditar estar agindo para o bem do filho).

Já a trajetória do personagem vem do roteiro, obviamente, e é a de alguém que percebe, mesmo que graças às constantes porradas, precisar melhorar como indivíduo – e não é à toa que até mesmo ao avistar os outdoors pela primeira vez, Dixon lê os anúncios ao contrário, começando do último até chegar ao primeiro. Não é, contudo, uma trajetória de redenção, o que é instrumental ao discutir o longa: ao final (o restante deste texto conterá spoilers), Dixon perdeu o “pai”, parte do rosto, o emprego e a certeza de sua posição no mundo. Isto não o redime nem o torna melhor; o que vemos no epílogo não é um homem reabilitado, mas alguém perdido que está tentando encontrar formas de fazer o que julga correto, mas ainda de maneira claramente equivocada (se a dupla seguirá com seus planos é algo que cabe ao espectador decidir). Em outras palavras: o que Três Anúncios faz é sugerir que podemos mudar, não que devemos encarar racistas e outros propagadores de discursos de ódio com amor, compaixão ou tolerância.

Enquanto isso, de um ponto de vista estrutural, o roteiro de Martin McDonagh é inteligente como o de seu melhor filme, Na Mira do Chefe – e gosto particularmente das rimas temáticas e narrativas, como o fato de em dois momentos Dixon não perceber o que está ocorrendo ao seu redor por estar com fones de ouvido ou o detalhe de os três anúncios do título refletirem as três cartas de Willoughby que ouvimos em sequências diferentes. Aliás, uma das cartas traz uma breve menção ao acaso e seu papel na resolução de certos mistérios (“um cara entreouve outro se gabando num bar”, o chefe escreve, numa pista do que ocorrerá) e, claro, há a passagem em que Mildred vê um cervo em um raro momento de paz e que, mais tarde, a câmera parece procurar sem encontrá-lo quando a personagem toma uma decisão alarmante.

Em última análise, porém, Três Anúncios é um filme de vingança que a nega à protagonista, interessando-se não pela catarse cinematográfica originada da punição, mas pela ferida que insiste em permanecer aberta e que só piora ao ser constantemente coçada. E é exatamente por ter este interesse que jamais poderia ser uma história de redenção, já que isto só parece ser possível no universo de McDonagh caso envolva uma arma apontada para a própria cabeça.

14 de Fevereiro de 2018

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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