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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
17/05/2018 01/01/1970 4 / 5 3 / 5
Distribuidora
Vitrine Filmes
Duração do filme
100 minuto(s)

O Processo
O Processo

Dirigido por Maria Augusta Ramos.

Assistir a O Processo é reviver um pesadelo – ou uma série deles. Dirigido por Maria Augusta Ramos, o documentário é um trabalho que, como os anteriores da cineasta (a excelente trilogia sobre a Justiça brasileira e o ótimo Futuro Junho), evita a editorialização excessiva, buscando retratar com o menor número possível de intromissões toda a trajetória legal do “impeachment” no Senado, desde o recebimento da denúncia vinda da Câmara dos Deputados até a votação final que removeu a presidenta Dilma Rousseff do cargo. Neste sentido, uma diretora com o estilo de Ramos representa a opção ideal para o projeto, que já traz muitos discursos dos personagens (de ambos os lados) para ter que incluir também os da cineasta.


Aliás, é um reflexo da polarização absoluta do Brasil contemporâneo que só o fato de eu ter escrito “presidenta” e colocado “impeachment” entre aspas seja o suficiente para que qualquer um saiba imediatamente minha posição sobre os eventos retratados no filme – e, portanto, não creio que O Processo vá mudar muitas mentes, o que é resultado direto do esforço por objetividade feito pela realizadora (a projeção tem início com o “muro” construído em Brasília para separar manifestantes pró e anti-Dilma e que já gerou seu próprio documentário, o ótimo O Muro). Sim, os fatos estão no filme e são inegáveis, mas se há algo em que o Brasil vem se especializando é a negação da realidade, que transforma a perda de direitos em “avanços” e uma intervenção militar em um estado em “agenda alternativa de segurança”. Assim, talvez O Processo seja, em essência, uma obra para consumo externo, uma apresentação para a comunidade internacional de um rito que, disfarçado como algo legítimo, tinha um objetivo meramente político de remover um governo eleito democraticamente.

(Não acho que seja absurdo supor que acabei de perder uns 40% dos leitores que já tinham chegado até o fim do parágrafo anterior sem gritar “comunista maldito” e socar a tela do computador ou do dispositivo móvel; portanto, um abraço revolucionário mortadelístico bolivariano para os que seguem a leitura.)

Enriquecida pelo acesso obtido por Ramos aos bastidores do julgamento, o documentário leva o público para as reuniões nas quais os senadores que atuavam em defesa de Dilma discutiam e traçavam suas estratégias e argumentações, estudando os pontos da acusação e rebatendo-os articuladamente. Não que tivessem qualquer ilusão quanto ao desfecho do processo – fica claro, no filme, que os esquerdistas sabiam (como todos sabíamos) que “culpa” não era algo com o qual os julgadores se encontravam preocupados. Ainda assim, é com choque e frustração que figuras como Gleisi Hoffmann e Lindbergh Farias recebem as decisões arbitrárias da comissão presidida por Raimundo Lira que impedem sem quaisquer disfarces que a defesa possa ser exercida de forma plena.

Ciente de que os detalhes do julgamento provavelmente não chegaram à maior parte da população, a diretora emprega um bom tempo do filme para explicar o que eram as tais “pedaladas” e como, essencialmente, a justificativa para depor Dilma vieram de três decretos de crédito suplementar – e, até para equilibrar um pouco a narrativa, Ramos inclui imagens do Cássio Cunha Lima (PSDB) detalhando para a imprensa as acusações. Aliás, O Processo traz imagens de arquivo de elementos como Eduardo Cunha, Romero Jucá, Álvaro Dias e, claro, Aécio Neves, sendo interessante notar como, por outro lado, Michel Temer permanece fora da tela, refletindo sua atuação nos bastidores do rito. (Vale apontar, também, que a maior parte dos senadores da direita se recusou a dar acesso à equipe do filme.) Do mesmo modo, Dilma também mal aparece – e, quando a vemos, são em instantes nos quais teve que se manifestar oficialmente sobre o processo, seja ao depor no Senado, seja ao discursar depois de derrubada – e, em seu lugar, Hoffmann, Farias e José Eduardo Cardozo assumem o centro da narrativa ao desempenharem papéis específicos: a primeira, como líder estratégica do grupo; o segundo, como o combatente mais ferrenho; e o terceiro, como o eloquente e inteligente responsável oficial pela defesa.

Sem jamais identificar os “personagens” com legendas e sem incluir entrevistas exclusivas (as que estão no filme foram concedidas a outros veículos), O Processo extrai seu nome da obra de Kafka por motivos patentes, já que a frustração provocada pelo absurdo de um sistema que acusa sem transparência, que impede a defesa de trabalhar e usa tecnicalidades para tentar condenar reflete todos os obstáculos enfrentados por Joseph K. naquele livro. Chega a ser motivo de piada, por exemplo, o espanto de Cardozo diante de argumentos estapafúrdios da acusação e de deturpações óbvias da lei (como considerar subsídios agrícolas como empréstimos). Aliás, por falar em piada, boa parte das risadas provocadas pelo longa – e na sessão em Berlim houve muitas – são originadas pelas ações da advogada Janaína Paschoal (como seus aquecimentos físicos antes do julgamento), por suas falas (como ao usar uma sessão do Senado para tirar satisfações pessoais) e por seus trejeitos e maneirismos. Curiosamente, um efeito interessante desta proximidade é tornar Paschoal uma figura quase simpática em função de suas excentricidades – e eu não ficaria espantado caso ela aprove a maneira como é retratada por Ramos.

Enquanto isso, a montagem de Karen Akerman, além de organizar a quantidade absurda de material em uma forma didática e elucidativa, inclui sequências que funcionam quase como vinhetas que permitem uma pausa no excesso de informações, mostrando, em planos gerais, o cotidiano de Brasília (e ilustrando, com isso, como a vida seguia normal para boa parte da população). Em contrapartida, os momentos nos quais apenas seguimos senadores ou Cardozo em carros ou enquanto caminham acabam quebrando um pouco o ritmo da projeção, o que é uma pena, mas também um pecado menor.

Revelando uma Dilma que, mesmo na posição de acusada, revela mais serenidade do que seus algozes, O Processo termina apropriadamente com uma literal cortina de fumaça, que funciona como lembrança dos conflitos que dominaram o país nos últimos anos e do verdadeiro propósito do “impeachment”: permitir, no caos que dominou a sociedade (e comprovando pela enésima vez o que Naomi Klein escreveu em seu “A Doutrina do Choque”), “reformas” que levam mais a quem tem tudo e tiram de quem já pouco tinha. Esta imagem, aliás, é a única que realmente se apresenta como uma posição editorial sem ambiguidades.

No restante do tempo, quem faz a editorialização de O Processo é a História.

Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Festival de Berlim 2018.

22 de Fevereiro de 2018

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Assista também ao videocast sobre o filme:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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