Por Roni Nunes, em Lisboa
Todos os anos, em torno de 30 mil pessoas passam pelos diversos espaços onde acontece o IndieLisboa, o maior evento de cinema alternativo da capital portuguesa. A edição de 2018 ocorre entre 26 de abril e 6 de maio e, de acordo com a organização, foram selecionados 82 longas e 164 curtas-metragens de um total de 4.500 filmes recebidos. O Brasil estará presente com quatro projetos.
O Cinema em Cena conversou com uma das programadoras, Mafalda Melo (entrevista completa abaixo), sobre a participação brasileira no festival, os destaques para os pouco conhecedores de cinema português e as novidades em geral para a 15ª edição.
O festival exibe três seções competitivas: para além de uma dedicada à produção internacional e outra à nacional, há prémios distribuídos também na Silvestre, espécie de panorama genérico do cinema independente mundial. É aqui que se inclui “O Processo”, que passa por Lisboa antes de chegar ao Brasil na senda dos aplausos em Berlim e que promete angariar a simpatia (dado o perfil do público) dos espectadores portugueses.
Já o retrato da favela no feminino, conforme o olhar de Juliana Antunes em “Baronesa”, e o universo transsexual de Gustavo Vinagre em “Eu Lembro mais dos Corvos”, fazem ambos parte da Competição Internacional. Antunes foi assistente de realização de um dos projetos premiados no ano passado, “Arábia”, de Affonso Uchoa e João Dumans.
Por seu lado, a seção Boca do Inferno cumpre uma das tendências dos grandes eventos internacionais dos últimos anos que é a de incluir propostas mais viscerais, frequentemente ligadas ao cinema de terror. É onde está incluído “As Boas Maneiras”, de Marco Dutra e Juliana Rojas, que completam a participação brasileira no festival deste ano.
Cena de "O Processo", de Maria Augusta Ramos
Menção ainda para outras três divisões da programação igualmente importantes: Herói Independente, que este ano inclui retrospetivas dedicadas à argentina Lucrecia Martel e ao veterano francês Jacques Rozier e que destacou, há alguns anos, a obra de Júlio Bressane, a sempre apetecível IndieMusic que, como o nome indica, direciona-se a trabalhos relacionados com música, e Director’s Cut, que exibe filmes que refletem sobre outros filmes já existentes.
CINEMA EM CENA: O IndieLisboa tem selecionado sempre cinema independente brasileiro, ajudando a que seja menos desconhecido em Portugal. Como tem sido essa relação ao longo dos anos e que pode dizer sobre os projetos selecionados para esta edição?
MAFALDA MELO: O cinema brasileiro tem estado em ebulição nos últimos anos, não só politicamente mas como movimento estético. O IndieLisboa tem prestado muita atenção a essa renovação e tem reforçado a sua presença em Portugal com o acompanhamento de cineastas desta nova geração. Aconteceu com Juliana Antunes, Gustavo Vinagre (ambos mostram a sua primeira longa-metragem em competição neste IndieLisboa), Kleber Mendonça Filho, Marco Dutra e Juliana Rojas, Leonardo Mouramateus, Ricardo Alves Jr., Gabriel Mascaro, Caetano Gotardo, entre tantos outros – a lista é infindável. Há também o cuidado de olhar para o passado do cinema moderno brasileiro, mostrar os seus alicerces: foi o caso de retrospectiva Julio Bressane, por exemplo. Hoje mais ainda, como festival que olha para o contexto em que se produzem os filmes - seja através do apoio à produção portuguesa, seja através de uma selecção que é também a voz de uma actualidade em constante agitação - é importante mostrar que estamos do lado certo. “O Processo”, de Maria Augusta Ramos, está do lado certo. São de referir, ainda, as diversas parcerias que temos com festivais e programadores no Brasil, que nutrimos ao longo destes 15 anos e às quais queremos dar continuidade.
"As Boas Maneiras", de Marco Dutra e Juliana Rojas
Um dos filmes exibidos é “O Processo”. Há uma curiosidade enorme em relação a este filme – principalmente pelas questões políticas. A política no Brasil tem sido muito comentada em Portugal. O que pode adiantar sobre o filme em si e que tipo de debate acha que o filme pode proporcionar aqui em Portugal?
“O Processo” é um mundo de possibilidades para um festival de cinema que pretende ter uma voz interventiva. A selecção do filme pareceu-nos óbvia no momento em que o vimos, não só pelo seu inestimável valor fílmico, mas também porque em Portugal temos vivido a turbulência política no Brasil de forma muito próxima. A morte de Marielle Franco e de Anderson Pedro Gomes desencadeou vigílias em 6 ou 7 cidades pelo país. Não me recordo de um tipo de mobilização solidária com outro país que tenha sido vivida de forma semelhante nos últimos anos, penso que nem o impacto dos atentados em França, país onde reside a maior comunidade emigrante portuguesa, gerou tamanha solidariedade, revolta, comoção.
A exibição de “O Processo” durante o festival ajuda-nos a dar continuidade ao debate e a refletir sobre uma questão essencial: como pode o Brasil regredir até uma nova era de militarização do estado? É urgente parar este processo que escalou gravemente a partir da destituição de Dilma Rousseff, o “golpe”, que Maria Augusta Ramos documenta de forma extraordinária no filme.
Na mesma via, o cinema português não é bem conhecido no Brasil. O que pode dizer sobre os projetos selecionados para o IndieLisboa este ano?
Penso que o cinema português viaja cada vez mais, também até ao Brasil. As coproduções e colaborações são frequentes (no IndieLisboa 2018 apresentamos uma colaboração, “Russa” de Ricardo Alves Jr. e João Salaviza) e as internacionalizações de filmes portugueses têm crescido enormemente. Mas, para quem não está tão familiarizado com o cinema português diria que a competição nacional e as sessões especiais são um excelente panorama de um excelente ano de cinema português. Iremos mostrar os filmes absolutamente marcantes de André Gil Mata (“A Árvore”) ou Susana Nobre (“Tempo Comum”), proporcionar a descoberta da voz de Paulo Carneiro (“Bostofrio, où le ciel rejoint la terre”) regressar ao fabuloso universo de André Santos e Marco Leão (Self Destructive Boys), Filipe Melo (Sleepwalk), Sérgio Tréfaut (Raiva) ou Edgar Pêra ("O Homem Pikante - Diálogos com (Alberto) Pimenta"), para citar apenas alguns dos 49 filmes portugueses que integram a programação do festival.
Por fim, pediria que destacasse algumas das novidades da edição deste ano em termos gerais.
O IndieLisboa volta a apontar o foco para nomes consagrados do cinema de autor mundial e a revelar um conjunto alargado de novos e promissores autores. Esta mistura constitui uma das características mais importantes do festival desde a sua origem, tal como a igual importância dada a longas e curtas-metragens e à abolição de quaisquer fronteiras de gênero. No fundo, há uma liberdade intrínseca aos filmes selecionados, que percorre também o gesto de programação e a forma como o festival é pensado. Um festival livre, de cinema livre. Esta edição volta, portanto, a fortalecer as suas já reconhecíveis características: uma seleção desafiante; a (re)descoberta de autores através de retrospetivas essenciais, este ano dedicadas a Jacques Rozier e Lucrecia Martel; uma programação noturna de concertos e festas que estende a experiência em sala e põe os filmes a dialogar com a música, com os artistas, com os convidados e com o público; um conjunto de atividades que complementam os filmes e abrem (mais ainda) espaço para debate; uma programação especialmente dedicada a crianças e jovens. E uma grande novidade: a criação de um Festival Center, um centro nevrálgico para a indústria onde decorrem as Lisbon Screenings, laboratórios, encontros, “masterclasses” e outros eventos para o público profissional.