Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
13/02/2009 | 01/01/1970 | 5 / 5 | 5 / 5 |
Distribuidora | |||
Duração do filme | |||
115 minuto(s) |
Dirigido por Darren Aronofsky. Com: Mickey Rourke, Marisa Tomei, Evan Rachel Wood, Wass Stevens, Judah Friedlander, Mark Margolis, Ernest Miller.
As costas de Mickey Rourke – esta é uma imagem recorrente em O Lutador. Filmado com a câmera constantemente na mão, o novo longa de Darren Aronofsky transforma o ato de seguir o ator enquanto este caminha à nossa frente em verdadeira base da abordagem estética e narrativa da história. E esta é a opção apropriada, já que, adotando um estilo que remete ao documentário (incluindo os freqüentes cortes secos e a utilização de atores não-profissionais como figurantes e em vários papéis secundários), o cineasta busca transmitir a impressão de estar registrando os vários incidentes da vida do lutador Randy “The Ram” Robinson à medida que estes ocorrem, como se estivéssemos mergulhando realmente no universo da luta livre e testemunhando, de quebra, o triste cotidiano do protagonista.
Escrito por Robert Siegel, o filme começa com uma colagem de recortes que ilustram o sucesso colossal atingido por Randy durante a década de 80, quando se tornou ídolo dos fãs de luta livre e parecia ter um futuro promissor – exatamente como seu intérprete, Rourke. Ambos, porém, se transformaram em promessas não realizadas não por falta de talento (que têm de sobra), mas em função de decisões equivocadas e, principalmente, da forma destrutiva com que conduziram suas vidas pessoais. Assim, quando logo depois desta montagem inicial ouvimos a tosse de Randy e o reencontramos, vinte anos depois, sozinho num camarim improvisado em uma escola infantil, estamos vendo não só o personagem, mas também a triste realidade de um ator que, de favorito dos grandes cineastas, transformou-se num pária que passou anos ganhando a vida em filmes baratos.
Não é à toa, aliás, que Aronofsky demora a revelar o rosto de Randy; de certa forma, ele está nos preparando, também, para o reencontro chocante com Rourke, que, de jovem bonito, transformou-se num homem de meia-idade cuja face repleta de marcas escancara o resultado de anos de dores, decepções e autodestruição. Isto, claro, se reflete em Randy, o personagem, que pode até dedicar tempo ao cabelo e ao bronzeamento artificial, mas cuja forma física impecável é, em boa parte, resultado do uso brutal dos anabolizantes que consomem seu coração – e não há exercício físico que possa compensar as décadas de maus tratos no ringue, como evidenciam sua respiração pesada, seus gemidos constantes e seu aparelho de audição. E é nestas similaridades entre realidade e ficção, intérprete e personagem, que O Lutador ganha uma dimensão adicional que o torna ainda mais forte e impactante.
Empregado de um supermercado e enfrentando grandes dificuldades financeiras, Randy não abre mão, apesar disso, de dedicar seus fins-de-semana ao seu grande amor: a luta livre – e o contraste entre o tratamento degradante que recebe de seu patrão e o carinho que flui de seus fãs explica parcialmente por que ele não se dispõe a abandonar o ringue mesmo depois de se transformar em uma curiosidade a ser exibida em combates quase amadores. Na vida “real”, Randy pode ser um white trash, mas, como o ídolo “The Ram", ele é um herói que enfrenta lutadores que se entregam a golpes baixos e encarnam personagens antipáticos – tudo encenação, obviamente, já que seus companheiros de luta são sua verdadeira família, tratando-o com respeito e mesmo admiração.
Um dos atores mais talentosos de sua geração (ao lado de Sean Penn, um dos poucos que me atrevo a comparar a Marlon Brando), Mickey Rourke exibe, em O Lutador, todo o cuidado e preciosismo de construção de personagem que caracterizam os melhores seguidores do “Método” de Lee Strasberg: observem, por exemplo, como ele freqüentemente acaricia, quase sem pensar, a cicatriz deixada por sua cirurgia cardíaca ou o gesto que faz, como se tirasse um grão de poeira do ombro, ao enfrentar alguém no ringue (o que, aliás, me fez lembrar da cena em que atirava sal por cima do ombro ao conversar com Robert De Niro, outro seguidor do Método, no brilhante Coração Satânico). Transmitindo um caminhão de emoções através de pequenas expressões faciais, Rourke ilustra com maravilhosa sensibilidade a tentativa de readaptação de Randy à realidade depois de receber a notícia de que não poderá mais subir no ringue – e seu olhar apavorado ao reconhecer a decadência de seus ex-companheiros durante uma convenção improvisada na qual vende fotos e autógrafos indica imediatamente, para o espectador, sua disposição em fazer o possível e o impossível para evitar um futuro similar ao daquelas pessoas.
É neste instante, aliás, que a atuação de Rourke alcança um nível quase sublime: reparem como, aos poucos, ele se solta em sua nova função de balconista, descobrindo feliz o próprio prazer ao interagir com os clientes e percebendo que talvez seja possível levar uma vida razoavelmente satisfatória longe da luta livre. E percebam, do mesmo modo, como subitamente, depois de quase 90 minutos de filme, ele finalmente revela o lado feio de seu personagem ao ofender cruelmente a stripper Cassidy (Tomei), permitindo que descubramos o monstro interior que provavelmente o levou a destruir tudo o que havia construído no passado.
Não que já não pudéssemos intuir a existência deste seu lado desagradável – afinal, a profunda mágoa exibida por sua filha Stephanie certamente surgira por algum motivo. Aliás, é tocante perceber como, ao ser informada pelo pai sobre o ataque cardíaco que quase o matara, Evan Rachel Wood hesita em sua demonstração de raiva: mesmo depois de anos de decepções e dores, ela parece aterrorizada pela possibilidade de vê-lo morto – talvez porque isto destruiria de vez as já remotas chances de um futuro de amor e carinho ao lado do pai. E quando finalmente se mostra disposta a permitir uma reaproximação, a moça lança um olhar de vulnerabilidade absolutamente tocante ao pai, como se tentasse dizer: “Por favor, não me magoe novamente”. Enquanto isso, Marisa Tomei encarna Cassidy como um reflexo curioso dos dilemas de Randy: assim como o lutador, ela se esconde atrás de um nome falso e leva uma existência profissional baseada em fantasias: se ele finge ser inimigo mortal de seus companheiros no ringue, ela simula tesão e atração pelos clientes – e não deixa de ser curioso que justamente Randy se deixe enganar por esta “fraude”. Igualmente interessante, também, é constatar como Cassidy divide com o protagonista a maldição da idade: mesmo linda e com um corpo escultural, ela já é vista por muitos clientes como uma “velha”, percebendo que, afinal, talvez já esteja chegando o momento de abandonar seu próprio ringue/palco. (E reparem que, não por coincidência, a stripper tem esta epifania exatamente na cena seguinte àquela em que Randy se choca com a decadência de seus ex-colegas, decidindo mudar de vida.)
Fascinante não só como estudo de personagens, mas também por seu mergulho nos bastidores da luta livre, O Lutador revela que, embora amplamente considerado como um esporte “falso”, esta atividade combina o planejamento do teatro e o sacrifício físico do boxe: os golpes podem até ser combinados com antecedência, mas isto não significa que os lutadores não irão se machucar – e o ringue coberto de sangue é prova disso. Retratando também a camaradagem dos lutadores, que se preocupam com a segurança uns dos outros ao mesmo tempo em que procuram oferecer um espetáculo intenso, o longa entrega pequenos truques da profissão, como os pedaços de gilete que, escondidos nas ataduras dos atletas, são usados para abrir pequenos cortes que causam um tremendo efeito dramático durante as lutas - e duvido que mesmo atores do calibre de Sir Laurence Olivier ou Sir John Gielgud fossem capazes de castigar o próprio corpo com grampeadores e navalhas em prol de sua Arte.
Adotando um estilo completamente diferente daqueles (também distintos entre si) empregados em Pi, Réquiem para um Sonho e Fonte da Vida, Darren Aronofsky exibe um tremendo cuidado não só no que diz respeito ao realismo da narrativa (reparem o detalhe das moedas que caem dos bolsos de Randy quando este tira a calça para se bronzear), mas também ao seu simbolismo – como na cena em que Randy se prepara para seu primeiro dia como balconista e ouvimos um eco dos gritos de seus fãs, o que salienta tristemente a glória deixada no passado. Da mesma forma, reparem como a reconciliação do protagonista com a filha é seguida por uma breve cena aparentemente aleatória na qual a garota arromba a porta de um galpão abandonado que serve de palco para que pai e filha dancem uma música imaginária – uma metáfora visual da chance oferecida pela garota, que se força a abrir o coração para o pai, permitindo que este entre mais uma vez em sua vida. Finalmente, é preciso admirar a rima narrativa presente no instante em que Randy, humilhado e cansado da realidade de trabalhador comum, corta propositalmente o próprio dedo para libertar-se do trabalho e de seu nome verdadeiro (Robin), exatamente como, no início da projeção, fizera um corte na testa para impressionar seu público. (Em outras palavras: ele usa um artifício de seu personagem para fugir de sua verdadeira identidade.)
Infelizmente, porém, Randy não pode fugir de seu maior problema: sua personalidade autodestrutiva. Mesmo reconhecendo ter se transformado num solitário “pedaço de carne velha e estragada”, o sujeito não consegue deixar de cometer os mesmos erros de sempre (“Não sei por que faço isso!”, ele desabafa baixinho, para si mesmo) - e é esta característica que transforma o personagem em uma figura trágica e inesquecível.
Em 2003, ao escrever sobre A Promessa, comentei que Mickey Rourke merecia ter desenvolvido uma carreira melhor. Agora, quase seis anos depois, ele conquistou, com seu imenso talento, uma nova chance de fazer exatamente isso. Só espero que O Lutador tenha servido não só como recomeço para este brilhante ator, mas também como uma lição, através de seu personagem, de como evitar que seus demônios interiores voltem a dominá-lo e destruí-lo. Rourke merece estar no ringue, não atrás de um balcão de supermercado.
14 de Fevereiro de 2009