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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
02/11/2006 01/01/1970 5 / 5 5 / 5
Distribuidora
Duração do filme
128 minuto(s)

O Grande Truque
The Prestige

Dirigido por Christopher Nolan. Com: Hugh Jackman, Christian Bale, Michael Caine, Scarlett Johansson, Piper Perabo, Rebecca Hall, David Bowie, Andy Serkis, Samantha Mahurin, Roger Rees, Ricky Jay.

Um dos principais problemas de filmes repletos de reviravoltas diz respeito à importância que estas têm para a apreciação da história: em muitos casos, se o público percebe o que está por vir antes do tempo, o restante da projeção torna-se apenas um exercício de paciência; por outro lado, mesmo que o espectador seja pego de surpresa, é bastante provável que o longa não sobreviva a um segundo exame, tornando-se aborrecido ou – pior – decepcionante por trazer muitos furos de lógica. Em contrapartida, há aqueles filmes que se tornam ainda mais fascinantes quando revisitados, já que o fato de sabermos seus segredos oferece leituras novas e surpreendentes – em outras palavras: o que era mera surpresa transforma-se em rica ironia dramática. É o caso de obras como O Sexto Sentido, Cidade dos Sonhos, Magnólia, Psicose, Clube da Luta, A Trapaça e, para citar apenas mais um belo exemplo, O Grande Truque.


Escrito pelos irmãos Jonathan e Christopher Nolan a partir do livro de Christopher Priest, o roteiro é inteligente como seus personagens principais – e mesmo que consigamos descobrir um ou outro segredo da trama antes que este seja oficialmente revelado, o filme traz várias outras reviravoltas que certamente nos pegarão de surpresa. Isto, porém, já seria de se esperar, já que O Grande Truque gira em torno de dois indivíduos que valorizam o segredo acima de qualquer coisa: Robert Angier (Jackman) e Alfred Borden (Bale) são mágicos que, no final do século 19, desenvolvem uma rivalidade proporcional ao sucesso profissional que atingiram. Antigos desafetos, eles não se satisfazem com seus próprios êxitos, esforçando-se, também, para que o outro se torne um fracasso – o que dá início a uma série de eventos que provavelmente culminará na destruição de ambos.

Adotando uma estrutura narrativa ambiciosamente complexa, o filme tem início no “presente” (como já dito, o final do século 19 ou início do 20), mas mergulha em uma série de flashbacks a partir do instante em que Borden começa a ler o diário de seu velho inimigo, que, com isto, torna-se narrador parcial da história. Porém, o roteiro vai além e, em certo momento, o Angier do “passado” inicia uma leitura do diário de Borden, que, assim, também se torna co-narrador, estabelecendo uma dinâmica de flashbacks dentro de flashbacks que pode confundir o espectador a princípio, mas que logo se torna facilmente compreensível, embora rica em conseqüências – basta dizer que, graças a esta estrutura, nem sempre podemos confiar em tudo o que testemunhamos, já que, na realidade, estamos vendo os acontecimentos a partir de pontos de vista conflitantes que podem até mesmo ter o objetivo de enganar o leitor (Angier ou Borden, dependendo do momento) e, de modo “indireto”, o público. Por outro lado, à medida que a projeção avança e tudo começa a se encaixar, o sentimento de satisfação que experimentamos torna-se maior justamente por termos participado de todo o processo.

Como em Insônia, Batman Begins e, até certo ponto, Amnésia, este O Grande Truque resgata um tema que parece ser caro ao cineasta Christopher Nolan: a obsessão por uma causa ou pela profissão. Nos trabalhos de Nolan, o protagonista é sempre um homem que, disposto a tudo para alcançar seus objetivos, não hesita em fazer sacrifícios brutais – e não há sacrifícios maiores do que aqueles feitos por Angier e Borden ao longo deste filme. (Da mesma maneira, esta obsessão - que aqui se traduz em rivalidade - é refletida também na figura histórica de Nikola Tesla (Bowie, genial), cujas disputas científicas e comerciais com Thomas Edison acabam se transformando em elemento importante da trama.) Para os dois mágicos, oferecer o melhor espetáculo não é o bastante: o que importa não é o efeito provocado no público, mas a destreza do segredo envolvido no truque, mesmo que isto não traga diferenças práticas no que diz respeito às apresentações.

Inteligentes e ambiciosos, Angier e Borden são homens tremendamente racionais que, no entanto, se rendem à impulsividade sempre que confrontados com a oportunidade de prejudicar um ao outro – e a este desejo intenso de destruir o inimigo se junta, também, o espírito artístico que possuem: quando o primeiro cria um truque cujo impacto é maior do que aquele concebido pelo rival, a satisfação que este sucesso poderia trazer é minimizada pelo fato de que, ao final, ele é obrigado a permanecer sob o palco, oculto do olhar da platéia, enquanto um dublê assume seu lugar diante dos holofotes (o que dá origem a uma cena belíssima na qual Angier se inclina solitariamente para agradecer os aplausos de um público que não o vê). Como não poderia deixar de ser, apesar de lamentar o sucesso do truque criado por Angier, Borden se diverte ao imaginar a frustração do outro por não poder receber os aplausos pessoalmente, numa indicação clara de que os dois são mais parecidos do que gostariam de admitir.

Todas estas nuances dos protagonistas de O Grande Truque são retratadas com talento e sensibilidade por Hugh Jackman e Christian Bale, que também se saem muitíssimo bem ao conferir outras características igualmente importantes aos personagens. Angier, por exemplo, sente-se claramente frustrado por não possuir o talento de Borden para conceber novos truques, o que o obriga a roubar os segredos do outro (até mesmo a idéia de escrever o diário é copiada, reparem) – e o grau desta obsessão leva-o a se surpreender consigo mesmo, como fica claro no instante em que desabafa, num impulso, que não se importa com a memória da esposa, mas sim em obter os segredos de Borden, numa cena que se torna ainda mais eficiente graças à bela atuação de Jackman.

Alfred Borden, por sua vez, é um engenheiro talentoso, mas um péssimo artista – e sua escalada profissional é parcialmente comprometida por faltar-lhe o talento para explorar melhor os truques que concebe. Além disso, sua inconstância emocional é motivo de sofrimento para todos que o cercam, como indica muito bem a melancolia de sua esposa, que se mostra sempre capaz de identificar quando as declarações de amor feitas pelo marido são genuínas ou não: a princípio, ela comemora quando percebe verdade nas palavras de Borden, já que sabe que isto nem sempre acontece; mais tarde, porém, esta verdade torna-se motivo de dor por contrastar-se com os instantes em que as declarações são feitas de forma vazia e automática – uma transição de sentimentos que demonstra a delicadeza do roteiro ao lidar com todos os seus personagens.

Mas o cuidado dos irmãos roteiristas não se aplica apenas à construção dos personagens e da estrutura narrativa, mas também à resolução das tramas e subtramas – e, por mais complexas que estas sejam, recebem conclusões ricas de significados em diferentes níveis, chegando até mesmo a envolver a mais pura ficção científica. E, assim como os melhores números de magia, um de seus principais mistérios traz um segredo absurdamente simples e lógico – e o mérito do roteiro reside justamente em sua capacidade de desviar a atenção do público por tempo suficiente para que o truque seja feito pela mão do mágico na qual não concentrávamos nossos olhares. (Discutirei, na segunda parte deste artigo - que deve ser lida apenas por quem já viu o filme -, alguns dos detalhes mais interessantes da trama.)

Fascinante do princípio ao fim, O Grande Truque é entretenimento de qualidade indiscutível, já que, além de divertir e surpreender, cria um universo rico como seus protagonistas – e estes, por sua vez, surgem como figuras interessantes, mas também trágicas, já que sofrem por terem sido presenteados com um dom magnífico ao mesmo tempo em que percebem que talvez (e este “talvez” já é o bastante) haja alguém melhor do que eles naquilo que fazem. Neste sentido, Angier e Borden são, simultânea e dolorosamente, Mozart e Salieri.

 

Desvendando O Grande Truque

Se o tema principal de O Grande Truque é o auto-sacrifício, a forma com que ele é desenvolvido passa pela Duplicidade. Não há dúvida de que, ao longo de suas tentativas de destruição mútua, Robert Angier e Alfred Borden acabam perdendo tudo o que conquistaram individualmente: amores, dinheiro, reputação, dignidade e, finalmente, suas próprias vidas. Porém, ao estabelecer estas trajetórias, o roteiro de Jonathan e Christopher Nolan investe continuamente em uma curiosa rima temática: reflexos (simbólicos ou reais) que ligam os dois mágicos de maneira inequívoca, já que ambos estabelecem fortes e trágicas relações com diferentes figuras ao longo da projeção – e estas relações são a base para a plena compreensão da inteligente narrativa.

Comecemos por Borden: assim como posteriormente Angier virá a se confundir com seus próprios clones, o personagem de Christian Bale divide a vida com o misterioso engenheiro Fallon, que se mostra responsável por protegê-lo e por conceber os truques apresentados pelo mágico. É claro que, ao final da projeção, descobrimos que Fallon e Borden são ainda mais próximos do que imaginávamos: irmãos gêmeos, eles possuíam, cada um, “metade de uma vida completa” – como descreve Borden em um dos melhores diálogos do filme. Revezando-se no palco e fora deste, os irmãos certamente tinham especialidades diferentes, já que, em certos momentos, fica claro que um ou outro deve desempenhar tarefas específicas, o que obriga “Borden” a pedir que “Fallon” leve a pequena Jess ao zoológico. Assim, uma pergunta que O Grande Truque praticamente obriga o espectador a fazer é: “quem, afinal de contas, era Borden ou Fallon em cada instante da narrativa?”. Esta, porém, é uma indagação que parte de um pressuposto equivocado, já que nossa percepção de ambos é falsa: não há, de fato, um “Borden” ou um “Fallon” – ao menos, não como um mágico barbeado e arrogante ou um engenheiro gordinho, barbudo e de óculos. Afinal, como descobrimos depois, há ocasiões em que o engenheiro também era o mágico e outras em que o mágico usava o disfarce do engenheiro. Neste sentido, a forma mais lógica de separar os irmãos é através de seus interesses românticos: um amava Sarah, com quem teve uma filha; já o outro se apaixonou por Olívia, a assistente. E é claro que ambos amavam loucamente a pequena Jess, filha de um e sobrinha do outro – um amor que provavelmente se tornou mais intenso por representar um laço familiar, de paternidade (literal ou simbólico), que eles nunca tiveram, já que provavelmente cresceram em um orfanato (como indica uma fala do advogado de Lorde Caldlow ao ameaçar Borden).

Ainda assim, nem sempre O Grande Truque nos oferece elementos suficientes para identificá-los – e isto enriquece o filme, já que, como o velho chinês que fingia ser frágil para ocultar seu segredo profissional, Borden e Fallon decidiram, ainda muito jovens, devotar suas vidas a esta farsa, que era fundamental para que pudessem colocar em prática o truque que conceberam: o Homem Transportado. Não é à toa que, numa das primeiras cenas do longa, Borden afirma que ninguém, além dele, pode realizar o tal truque, levando Angier e Cutter (Michael Caine, sempre perfeito) a fazer comentários irônicos – e, num belo exemplo de sutileza narrativa, logo em seguida Christopher Nolan inclui uma apresentação na qual um passarinho é morto e substituído por outro idêntico, levando um garotinho choroso, que percebeu a manobra, a perguntar o que houve “com o irmão” do pássaro.

De todo modo, algo é claro: um dos irmãos tinha uma obsessão maior por destruir Angier, enquanto o outro se mostrava mais preocupado em refinar os números que apresentavam – aliás, fica óbvio, também, que um deles era o responsável direto por desvendar os segredos do rival e conceber novos truques (“Por que você não consegue descobrir como ele faz o número?”, grita “Borden” para “Fallon”, em certo instante.). Mas, afinal, qual deles foi enforcado? E quem era o pai biológico de Jess? Estas perguntas, creio, podem ser respondidas com um pouco de lógica e alguma extrapolação – para isso, no entanto, teremos que nos esforçar para apagar a imagem de Fallon como um sujeito de óculos, chapéu e barbudo, já que este disfarce era assumido pelos dois irmãos. Em vez disso, consideremos características de personalidade: Borden é o mais impulsivo e vingativo, ao passo que Fallon é mais racional e principal criador dos números da dupla.

A primeira cena em que Fallon aparece em O Grande Truque é também aquela que culmina na revelação da gravidez de Sarah. É razoável supor que, naquele momento, quem está disfarçado de Fallon, saindo da sala rapidamente, é justamente o marido da garota – e que, portanto, esta revela a gravidez para o irmão errado. Em primeiro lugar, há o fato óbvio de que, ao ouvir a declaração de amor do marido, Sarah diz que esta não é sincera. Além disso, quando é informado sobre o bebê, Borden instantaneamente diz que eles deveriam ter dado a notícia a Fallon (o que é um desejo natural, já que este é o pai da criança). Finalmente, há a suposição lógica de que, como estavam estreando o disfarce de Fallon, os irmãos provavelmente resolveram testá-lo diante de Sarah – e se esta não fosse capaz de reconhecer o próprio marido sob a barba falsa, ninguém mais reconheceria.

Assim, estabelecemos que Fallon, o engenheiro, é também marido de Sarah e pai de Jess. Também é ele quem visita a feira de ciências e assiste à demonstração de Tesla, já que conhecer novas tecnologias que possam melhorar o espetáculo faz parte de suas atribuições – e, ao sair dali, ele se encontra com Sarah e Jess, demonstrando um carinho que Borden dificilmente exibiria (tempos depois, eles usarão a corrente alternada de Tesla para incrementar o número, tornando-o mais teatral). Da mesma forma, é Fallon quem promete levar a filha ao zoológico, já que, naquela mesma cena, Sarah reconhece sua declaração de amor como autêntica. Porém, sem tempo para cumprir a promessa, ele pede que o irmão leve a filha para o passeio e ainda solicita que este “acalme” a esposa; em seguida, Fallon se encontra com Olívia, demonstrando estar pouco à vontade na companhia da moça (que, afinal de contas, é namorada de seu irmão). Já Borden, em vez de acalmar a cunhada, acaba discutindo intensamente com esta, levando-a ao suicídio – e, portanto, é Fallon quem pega Jess no colo, carregando-a para longe da discussão. Finalmente, depois que Borden se irrita com o irmão por este não conseguir desvendar o segredo de Angier, vemos Fallon aconselhar o outro a desistir de tudo aquilo, concedendo a vitória ao rival (o fato de Fallon estar sem seu disfarce nesta cena pode confundir muitos espectadores, mas basta compararmos a diferença nas atitudes do Borden combativo, que insiste em descobrir o truque de Angier, e a calma posterior de Fallon, que sugere que abandonem a disputa constante, para constatarmos que estamos vendo irmãos diferentes em cena).

E é aí que chegamos à questão-chave: Borden, sempre obcecado, não aceita o conselho do irmão e vai a uma das apresentações de Angier a fim de descobrir o que ocorre sob o palco – o que resulta em sua prisão e posterior execução (uma das pistas mais claras que o filme fornece sobre o falso Fallon se encontra aí: embora tenhamos visto “Borden” sugerindo que abandonassem a disputa, mais tarde vemos este dizer a Fallon que deveria ter “escutado seu conselho” para deixar a questão de lado). Além disso, ao confrontar Angier pela última vez, Fallon revela que amava Sarah e que seu irmão amava Olívia. Portanto, Jess fica com seu pai biológico ao final da projeção. Em contrapartida, há algumas questões para as quais é praticamente impossível encontrar uma resposta clara: qual dos irmãos teria dado o nó que provocou a morte de Julia, esposa de Angier? Pelo perfil de ambos, poderíamos supor que foi Borden, o mais impulsivo dos dois, mas não há como saber de fato. E arrisco-me a dizer, também, que Sarah morreu sem saber que seu marido tinha um irmão gêmeo, já que demonstra ciúmes de Borden por este ter se envolvido com Olívia – e creio que sua ameaça de contar a “verdade” para a garota era uma tentativa desesperada, vazia, de afastá-la.

Chegamos, agora, a Robert Angier, que também apresenta alguns interessantes desafios. Assim como ocorre com Borden/Fallon, Angier também tem seus “duplos” temáticos: há, inicialmente, o bêbado Gerald Root (também vivido por Jackman, divertidíssimo), contratado para se passar pelo mágico e que logo o compromete diante do público. Em seguida, há a revelação de que Angier e Lorde Caldlow são a mesma pessoa – e não é à toa que, ainda no primeiro ato da projeção, Julia diz para o marido que este finge ser alguém que não é, levando-o a responder que mudou o nome para “não constranger a família” (o que também explica de onde o sujeito tirava tanto dinheiro para bancar suas viagens e também sua oferta a Tesla). Portanto, quando ele diz que “sempre foi Lorde Caldlow”, não está mentindo – e também é por isto que, como o tal nobre, Angier passa a exibir um até então inexistente sotaque britânico, já que fingia ser norte-americano.

Porém, a questão mais polêmica de O Grande Truque certamente diz respeito aos duplos “reais” de Robert Angier: seus clones, criados pela invenção de Tesla. Quando descobre o que a máquina pode fazer, o mágico resolve testá-la em si mesmo, deixando um revólver ao seu lado a fim de eliminar sua cópia. Mais tarde, ele volta a utilizá-la em seu espetáculo, provocando, todas as noites, a morte de um clone – e o método empregado, afogamento, não apenas é uma homenagem dolorosa à própria esposa (e uma forma de reunir-se a esta) como também um gesto que ele julga ser humanitário, posto que Cutter havia dito que a morte por afogamento era “como ir para casa” (mais tarde, um revoltado Cutter revela que, na realidade, aquele tipo de morte era “pura agonia”, numa vingança eficaz que certamente provocaria o desespero de Angier). Surge, então, a pergunta: quem morria todas as noites, durante as apresentações: o Angier “original” ou seus clones?

A resposta: não interessa. De um modo ou de outro, o Angier original não é o mesmo que chega ao final do filme. O raciocínio é óbvio: se a máquina envia o original para outro lugar no espaço e cria um clone em seu lugar, então Angier morreu logo em sua primeira experiência com o aparelho, já que sua cópia o teria baleado (e lembrem-se de que, antes de ser atingido, ele diz: “Não! Eu sou...”). Por outro lado, se a invenção de Tesla mantém o sujeito original no mesmo lugar e cria um clone em outro ponto, Angier morreu na primeira apresentação do número, ao cair no tanque com água sob o palco. Seja como for, ele morre muito antes do confronto final com Fallon.

Há, é claro, uma questão filosófica (ou religiosa, como queiram) que pode gerar sua parcela de discussões e diz respeito à “alma” de Angier, que o diferenciaria de seus clones. Porém, se ignorarmos elementos metafísicos, o fato é que todas as cópias do mágico possuem exatamente as mesmas memórias e experiências de vida – e, portanto, não podem ser diferenciadas umas das outras (o que justificaria o comentário de Angier sobre entrar na máquina todas as noites sem saber se morreria ou não; ele mesmo já não sabe quem “é” na verdade). E, mais uma vez, aqui reside outro belo exemplo da excelente carpintaria dramática dos irmãos Nolan: além de servir como um símbolo da existência dos irmãos gêmeos, como já discuti acima, a cena em que o garotinho lamenta a morte do passarinho é, também, um prenúncio dos atos de Angier – afinal, ao provocar a morte de seus clones todas as noites, o mágico está simplesmente repetindo, em um nível infinitamente mais aterrorizante, o truque do pássaro que desaparece e reaparece, mas consigo mesmo no lugar da ave esmagada (afogada). Aliás, estas pequenas rimas narrativas acontecem ao longo de todo o filme: um outro exemplo pode ser encontrado na cena em que Cutter diz que, caso o nó em torno dos pulsos de Julia seja fraco, a garota poderá cair e quebrar a perna durante o número – algo que mais tarde encontra reflexo na queda sofrida por Angier durante um espetáculo, resultando em uma fratura que o levará a mancar pelo resto da vida.

Em determinado instante de O Grande Truque, Borden (na realidade, Fallon) comenta que o segredo por trás de um truque jamais deve ser revelado, já que isto inevitavelmente tiraria a graça do número ao expor a simplicidade com que é realizado. Curiosamente, é justamente o contrário que ocorre quando dissecamos, como feito neste artigo, os mecanismos sob a superfície complexa deste magnífico roteiro: de certa forma, estudar a estrutura criada pelos irmãos Nolan torna seu trabalho ainda mais admirável e digno de aplausos.

14 de Novembro de 2006

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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