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68o. Festival de Cannes: Dia 04 Assinantes

Vamos aos filmes do quarto dia:

Mia Madre (Idem, 2015) – 5 estrelas em 5

Dirigido por Nanni Moretti. Roteiro de Moretti, Francesco Piccolo e Valia Santella. Com: Margherita Buy, John Turturro, Giulia Lazzarini, Nanni Moretti, Beatrice Mancini.

Mia Madre é, talvez, o filme mais ambicioso da carreira de seu experiente diretor, o italiano Nanni Moretti. Na realidade, sua costura dramática é tão complexa – embora um olhar superficial não revele isto – que é bastante possível que muitos espectadores se sintam naturalmente incomodados com o constante contraste de tons da narrativa empregado pelo cineasta justamente para ressaltar um dos pontos mais intrigantes deste seu trabalho: a artificialidade própria do Cinema.

Escrito por Moretti ao lado de Francesco Piccolo e Valia Santella, o roteiro acompanha a diretora Margherita (Buy), que encontra-se no meio das filmagens de seu novo projeto e durante o qual precisa lidar com as excentricidades de um astro norte-americano, o enlouquecido Barry Huggins (Turturro). Ao mesmo tempo, a protagonista lida com a internação da mãe, Ada (Lazzarini), cuja saúde entra em declínio rapidamente apesar de todos os cuidados oferecidos não só por Margherita, mas também por seu irmão Giovanni (Moretti). Assim, a partir do contraponto entre as duas facetas da personagem (a pessoal e a profissional) e também entre seu rigor e a natureza expansiva de Barry, Mia Madre vai construindo uma experiência envolvente que em um momento provoca o riso apenas para no seguinte levar o espectador às lágrimas.

Abrindo a projeção já com acordes melancólico de piano que acompanham os créditos iniciais, o longa mantém sua perspectiva sempre grudada à de Margherita – e, neste sentido, é interessante perceber como a ótima montagem de Clelio Benevento reflete de perto a subjetividade da diretora, fragmentando suas lembranças a tal ponto que, a partir de certo instante, mal conseguimos diferenciar entre o que é memória ou pesadelo. Enquanto isso, Nanni Moretti envolve a narrativa em uma atmosfera muitas vezes solene que leva o espectador a sentir o pânico crescente da personagem diante da possibilidade iminente de perda – e vale lembrar que Moretti é um veterano neste tema, tendo sido responsável pelo devastador O Quarto do Filho.

Justamente por ser tão denso com tamanha frequência que Mia Madre praticamente exige o alívio cômico oferecido pelas intervenções de John Turturro, cujo espírito frenético e impulso traz imensa frustração à disciplinada Margherita, o que também o leva a ser mais querido pela equipe que mal o conhece do que a líder com a qual trabalham diariamente (uma ironia que não escapa a esta nem ao filme). Não é acaso, aliás, que ao longo da história a pobre mulher vai sendo sufocada por contratempos crescentes que vão desde um assistente de produção que se esquece de buscar Barry no aeroporto até a inundação de seu apartamento, já que a perda de controle é possivelmente o que ela mais teme em sua vida pessoal e profissional – o que, inclusive, a leva frequentemente a exigir que seu assistente lhe revele todos os problemas enfrentados pela produção mesmo que ele esteja ali justamente para filtrar as questões menos relevantes.

Contudo, o elemento mais fascinante do longa reside em sua discussão sobre sua própria artificialidade, um tema que Moretti introduz de maneira bastante sutil ao trazer sua protagonista pedindo que os atores sob sua direção exibam, em suas performances, um pouco de si mesmos, já que deseja ver ilusão e realidade lado a lado – e quando lembramos que o nome da personagem (Margherita) é o mesmo de sua intérprete, a estratégia narrativa brilhante de Nanni Moretti começa a se delinear. Desta forma, quando logo depois o cineasta encena uma passagem em um hospital de maneira obviamente artificial, com travellings constantes que chamam atenção para si mesmos, torna-se impossível precisar o que ali é intencional ou não – sendo particularmente revelador constatar como o ator interpretado por Turturro parece oferecer uma interpretação mais falsa ao realmente dirigir um carro do que ao fingir conduzi-lo (uma ideia que é complementada quando, ao tropeçar em suas falas em italianos, ele grita um frustrado “Me levem de volta à realidade!”).

Como se não bastasse, em dois ou três momentos, Margherita e seu irmão Giovanni (que é vivido, não se esqueçam, por Moretti) condenam a artificialidade da fantasia e/ou demonstram frustração diante da trivialidade de problemas nos sets quando se comparados ao drama que sua mãe vive no hospital, como se o próprio realizador estivesse questionando, aqui, o valor do que faz – e quando consideramos que a mãe de Margherita (vivida estupendamente por Giulia Lazzarini) é professora de Latim exatamente como era a mãe de Moretti, morta há poucos anos, notamos que Mia Madre é realmente um exercício quase de autoanálise por parte do italiano.

Um exercício que passa também por uma projeção de futuro no instante em que, por pouquíssimos segundos, Ada surge vestindo as roupas da filha diante do espelho, como num flashforward do que espera não apenas Margherita, mas todos nós. Um futuro que pode, sim, ser assustador, mas que também é uma promessa de experiências vividas, de aprendizados e de relacionados construídos.

Uma visão doce sintetizada naquela que, claro, tinha mesmo que ser a última palavra ouvida em Mia Madre: “Amanhã”.

Maryland (Idem, 2015) – 3 estrelas em 5

Dirigido e roteirizado por Alice Winocour. Com: Matthias Schoenaeris, Diane Kruger e Paul Hamy.

Trazendo Schoenaeris como um militar francês veterano e que enfrenta síndrome de estresse pós-traumático, Maryland acompanha o personagem enquanto este aceita a função de proteger a esposa de um milionário de natureza sombria enquanto este encontra-se fora do país. Quando um grupo misterioso passa a atacar a mulher (Kruger) e seu filho, o combatente faz o possível para defende-la na mansão cujo nome dá título ao projeto.

Exercício de gênero bem realizado, o filme concebe com eficiência a atmosfera de suspense e também as sequências de ação. Por outro lado, a dinâmica entre os personagens principais é das mais batidas, já que desde o princípio percebemos que algo naquela mulher irá despertar uma motivação interna no herói para que este lide com suas questões pessoais.

Caso fosse um dos vários lançamentos que as salas de exibição trazem toda semana, Maryland seria um passatempo competente (aliás, é); mas como integrante de uma mostra como a Un Certain Regard em Cannes, acaba soando mais como uma vaga desperdiçada.

 

Amy (Idem, 2015) – 3 estrelas em 5

Dirigido por Asif Kapadia.

Amy Winehouse era dona de uma voz poderosa, de um conhecimento admirável sobre o gênero musical que amava (o jazz) e uma letrista relativamente talentosa. Por outro lado, protagonizou uma carreira cujo período de decadência se tornou mais longo do que o de ascensão, morrendo aos 27 anos de idade.

Dirigido por Asif Kapadia, responsável pelo ótimo Senna, este documentário busca recriar a trajetória da cantora e desvendar quem era o ser humano por trás da caricatura criada pelos jornais, alcançando um sucesso apenas relativo nesta tarefa. Se por um lado as imagens de arquivo que trazem Winehouse na adolescência e em momentos de intimidade durante a primeira fase de sua carreira conseguem demonstrar que ali havia uma jovem inteligente, bem humorada e vivaz, por outro chegamos ao final da projeção com a sensação de que continuamos a saber exatamente o mesmo que já sabíamos sobre a artista antes de assistirmos ao filme.

E isto, claro, é uma imensa oportunidade desperdiçada, bastando assistir ao excepcional Cássia, de Paulo Henrique Fontenelle, para perceber como um documentarista talentoso consegue levar o espectador a criar até mesmo uma forte intimidade com a personagem que antes era apenas um nome famoso. Para piorar, Kapadia exibe uma preguiça irritante ao passar a maior parte do filme exibindo fotografias de Amy Winehouse enquanto ouvimos depoimentos de pessoas próximas a esta, o que confere ao longa um tom quase de powerpoint superproduzido.

Abordando perifericamente a depressão e a bulimia da cantora, Amy emociona, sim, mas menos por seus próprios méritos e mais por apenas nos lembrar de como a garota era talentosa. E quando um entrevistado lembra de ter comentado com Winehouse que “se você é (talentosa) assim aos 17 anos, imagina como será aos 25?”, é inevitável sentirmos uma profunda tristeza ao concluirmos que a resposta seria “uma jovem prestes a morrer”.

 

Nahid (Idem, 2015) – 3 estrelas em 5

Dirigido por Ida Panahandeh. Roteiro de Panahandeh e Arsalam Gheid. Com: Sareh Bayat, Pejman Bazeghi, Navid Mohammad Zadeh.

Nahid já seria um filme relevante apenas por ser uma produção iraniana dirigida por uma mulher (a estreante Ida Panahandeh) e protagonizada também por uma personagem feminina que é forçada a lidar com a injustiça da cultura machista na qual está inserida. Assim, é uma espécie de bônus que o longa também seja eficiente como narrativa, revelando uma segurança promissora por parte de sua realizadora.

Ocasionalmente lembrando a abordagem dos longas do brilhante Asghar Farhadi, que vem construindo uma carreira espetacular ao abordar dramas pessoais protagonizados por personagens urbanos e, assim, teoricamente mais esclarecidos/seculares, Nahid gira em torno de uma mulher que, divorciada, se apaixona novamente e sonha em se casar com o namorado – algo impedido pelo acordo feito com o ex-marido, que lhe concedeu a custódia do filho em troca da garantia de que não voltaria a se envolver com outro homem.

Vivida por Sareh Bayat como uma figura independente que não hesita em mentir para garantir uma vida melhor para o filho, Nahid é um espírito forte que, ao longo da projeção, vai sendo gradualmente domado e partido pela misoginia e pelo machismo de sua sociedade – algo que a diretora retrata sem melodrama ou clichê. Por outro lado, a trajetória da mulher acaba se tornando repetitiva e excessivamente frustrante, comprometendo o resultado final, o que é uma pena.

 

Carol (Idem, 2015) – 4 estrelas em 5

Dirigido por Todd Haynes. Roteiro de Phyllis Nagy. Com: Cate Blanchett, Rooney Mara, Kyle Chandler, Sarah Paulson, Cory Michael Smith, Jake Lacy.

Quando Patricia Highsmith escreveu a história que deu origem a Carol, em 1952, usou um pseudônimo para evitar ser condenada por lidar com a homossexualidade em seu trabalho. Pode parecer inacreditável, mas, mais de 60 anos depois, o mundo mudou bem menos do que poderíamos imaginar, já que o simples fato de duas atrizes estabelecidas como Cate Blanchett e Rooney Mara interpretarem um casal de lésbicas é motivo imediato para boa parte da imprensa use a palavra “controverso” ao mencionar o projeto.

Ora, o que há de “controverso” em um romance? Por que o simples fato de duas pessoas dividirem o mesmo par de cromossomos sexuais deveria determinar a validade do amor ou do tesão que sentem uma pela outra? Como é possível que em 2015 um filme como Carol não seja uma recriação histórica que nos leva a balançar a cabeça diante da ignorância de nossos antepassados, mas um comentário sobre a intolerância que ainda testemunhamos diariamente? Quando vemos os personagens deste projeto discutindo a homossexualidade como se fosse uma doença ou uma grave questão moral, não podemos sequer nos dar ao luxo de suspirar aliviados diante da evolução de nossa sociedade, já que líderes evangélicos ainda defendem a “cura gay” do alto de suas posições no Congresso enquanto preconceituosos de todas as denominações insistem em afirmar que a defesa por direitos LGBT não passa de uma tentativa de implementar, vejam só, uma “ditadura gay”.

É mais do que apropriado, portanto, que o filme seja dirigido por Todd Haynes, um cineasta que, ao longo de sua excepcional carreira, frequentemente lida não só com temas homossexuais (como em Velvet Goldmine e Longe do Paraíso), mas também com o próprio conceito de identidade de gênero (como ao trazer Cate Blanchett vivendo Bob Dylan em Não Estou Lá). Trabalhando a partir de um roteiro escrito por Phyllis Nagy, o diretor aqui acompanha a personagem-título (Blanchett), uma mulher que, mãe carinhosa e dedicada, enfrenta a frustração do ex-marido (Chandler) desde que este descobriu que ela se envolvera com uma amiga de infância (Paulson). Deprimida e inquieta, Carol parece despertar ao conhecer a jovem Thérese (Mara), vendedora de uma loja de departamentos que também exibe um fascínio instantâneo pela forte protagonista.

Delicado ao construir o relacionamento entre as duas mulheres, Haynes emprega boa parte da narrativa para retratar a aproximação das duas, deixando claro que o que há ali é mais do que apenas sexo (se fosse, tampouco seria problema). Assim, quando testemunhamos a profunda identificação entre Carol e Thérese, bem como o carinho, a preocupação, o fascínio e o tesão que sentem uma pela outra, torna-se impossível, para qualquer um com o mínimo de empatia, não torcer pelo sucesso daquela história. Além disso, o diretor encena o sexo de forma intensa e passional, mesmo que nem tente se aproximar daquelas vistas em Azul é a Cor Mais Quente.

Sim, é óbvio que a maneira como Blanchett e Mara sugerem a atração que suas personagens experimentam é fundamental, mas ainda mais importante é notar como elas evocam a felicidade das duas. Da mesma forma, as atrizes criam uma dinâmica eficaz através dos contrastes entre suas composições: se a primeira vive Carol como uma mulher madura e segura de si mesmo (ainda que por vezes pense em se anular para evitar problemas), a segunda transforma Thérese como uma jovem insegura que busca não só por seu lugar no mundo, mas por sua própria identidade – e notar como a inflexão forte da voz de Blanchett se contrapõe à entonação suave de Mara é perceber a riqueza de suas caracterizações e, claro, da direção de Haynes. E ainda que seja o único grande “antagonista” do filme, Kyle Chandler encarna o marido de Carol não como um sujeito mau, mas como alguém cuja natureza generosa acaba cedendo a uma vida de ensinamentos preconceituosos.

Tecnicamente admirável ao fazer um ótimo trabalho de recriação de época (obra da designer de produção Judy Becker), Carol também se beneficia da inteligente fotografia de Edward Lachman, que, rodando o projeto em 16mm, constantemente mantém as personagens situadas nos cantos do quadro, como se isoladas por suas circunstâncias. Além disso, ao usar as luzes fluorescentes da loja na qual Thérese trabalha para drenar a força das cores, Lachman ilustra como a garota se sente oprimida e sem vida ali (algo ressaltado pelo ótimo plano no qual a vemos emoldurada por seu armário no vestiário). Enquanto isso, a figurinista Sandy Powell traz Carol constantemente vestida de vermelho, numa indicação de seu papel no despertar sexual da parceira, transferindo a cor para as roupas de Thérese à medida que a narrativa avança.

Forte candidato desde já às premiações de fim de ano, Carol é um filme que demonstra (e é triste que isto ainda seja necessário) que, embora as relações homossexuais sejam vistas como “imorais” ainda por tanta gente, o que é realmente imoral é tentar sufocar a livre expressão romântica e sexual em um mundo cada vez mais tomado pelo ódio e pela intolerância.

Videocast:

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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