Dia 05
Hoje fora apenas quatro filmes, já que um deles tinha quatro horinhas de duração.
19) U: JULY 22 (UTØYA 22. JULI)
No dia 22 de julho de 2011, uma bomba foi detonada diante de vários prédios do governo da Noruega, em Oslo. Poucas horas depois, na ilha de Utøya, onde a juventude do Partido do Trabalho estava concentrada em um acampamento de verão, o mesmo responsável pela explosão (um extremista de direita) iniciou um ataque com armas de assalto, matando dezenas de adolescentes em um massacre que durou 72 minutos.
É neste pavoroso incidente que U: 22 de Julho se concentra depois de uma breve introdução com imagens de arquivo que registraram o primeiro atentado. Apresentado num plano-sequência de cerca de 90 minutos que recria os acontecimentos em tempo real, o filme do diretor Erik Poppe é irmão de alma de obras como Elefante e Politécnica – e que reencenações de tiroteios em ambientes ocupados por estudantes já tenham virado um subgênero é algo trágico por si só.
Acompanhando a jovem Kaja (Andrea Berntzer), que viajou para o acampamento ao lado da irmã mais nova, o longa a princípio nos apresenta às garotas e aos seus amigos, passeando rapidamente pelo local antes que o ataque tenha início a fim de que o espectador possa conhecer algumas daquelas pessoas, a atmosfera de jovial camaradagem entre elas e, por contraste, o choque experimentado quando uma realidade tão brutal invade aquele espaço de confraternização. Ancorando a câmera na excelente atriz Andrea Berntzer, que atua como nossa ligação imediata com a narrativa, o filme nos mantém sempre próximos a ela, permitindo que testemunhemos seu choque inicial, a dificuldade para compreender o que está acontecendo, o desespero crescente, a dor diante do que presencia e assim por diante.
Mas a câmera não se limita a seguir a protagonista; é, também, uma quase participante da ação, abaixando-se ao ouvir tiros, olhando nervosamente para várias direções à procura de uma saída e rastejando para evitar ser atingida. Graças a esta estratégia, a tensão experimentada pelo público torna-se ainda maior, já que sabemos exatamente o mesmo que os personagens, não recebendo informações privilegiadas sobre a posição do atirador (que vemos uma única vez, de relance e à distância) nem sobre a situação das pessoas que não estão perto de Kaja. Durante boa parte da projeção, aliás, nossa única referência acerca do terrorista é o volume e – graças ao som surround – a direção dos tiros, sendo um alívio sempre que estes param temporariamente (quando retornam, o desapontamento amedrontado no rosto dos personagens reflete nossa reação).
Por outro lado, a decisão de acompanhar apenas uma estudante cria um problema para o cineasta, que passa a ser obrigado a mantê-la sempre em movimento – e nem sempre as motivações da jovem para voltar a correr são plausíveis. Além disso, quando a protagonista interrompe suas andanças, o filme não pode cortar para outros indivíduos e, para não permanecer enfocando alguém em silêncio, é levado a criar conversas que soam ocasionalmente artificiais (e o fato de a garota cantar em certo momento a pedido de um colega é simplesmente absurdo). Como se não bastasse, pontualmente o roteiro tenta incluir pequenos alívios cômicos, ignorando que o público não se encontra à vontade para rir com os personagens.
Responsável ao abordar questões políticas obviamente relacionadas ao incidente (ao ouvir sobre a bomba, um jovem muçulmano torce para que os responsáveis não sejam islâmicos, já que isto aumentaria as reações de ódio contra todos os fiéis), U: 22 de Julho é uma produção tristemente contemporânea, já que o ressurgimento de uma onda de extrema-direita fascista e nacionalista vem resultando em atos cada vez mais assustadores de violência e ódio em todo o planeta. Além disso, ao contrário do que os defensores da liberação de armas tentam argumentar, é imprescindível politizar, sim, tragédias como esta ou os frequentes tiroteios em escolas norte-americanas – porque estes eventos são políticos, seja pela motivação dos atiradores, seja pelos interesses por trás do lobby da indústria de armas.
E não há argumento mais forte contra a liberação de armas do que a imagem de uma criança morta enquanto, ao lado de seu cadáver, seu celular exibe uma ligação da mãe que ainda não sabe que a filha já não pode mais atendê-la.
20) 3 DIAS EM QUIBERON (3 TAGE IN QUIBERON)
O fascínio do Cinema por suas próprias estrelas é notório e antigo: já tivemos filmes que enfocavam figuras como Marilyn Monroe, Katharine Herpburn, Frances Farmer, Chaplin, James Dean, Jean Harlow, Joan Crawford e dúzias de outros atores e atrizes – e em algumas décadas alguma intérprete ganhará o Oscar por viver Meryl Streep nas telas. Assim, é claro que uma atriz como Romy Schneider, não só bela e talentosa, mas também dona de uma vida repleta de escândalos e tragédias, já deu origem a algumas produções; nenhuma, contudo, com a ambição narrativa deste 3 Dias em Quiberon.
Inspirado pela entrevista que Schneider concedeu ao jornalista Michael Jürgs para a revista “Stern”, em 1981, o filme reimagina as conversas da dupla ao longo de três dias, retratando também a presença do fotógrafo Robert Lebeck (cujas fotos da atriz são célebres por si mesmas) e de Hilde, melhor amiga da estrela. Percorrendo a maior parte de sua carreira em um esforço constante para se livrar do estigma deixado por sua performance na trillogia Sissi, Schneider é interpretada aqui pela alemã Marie Bäumer – e as similaridades físicas entre as duas são ainda mais realçadas pela bela fotografia em preto-e-branco.
Pecando eventualmente ao introduzir incidentes descartáveis (por que o artifício de Hilde para descobrir o quarto da amiga?) e ao conceber Jürgs (Robert Gwisdek) de maneira excessivamente cínica e antipática apenas para tornar sua mudança posterior mais óbvia, o roteiro da também diretora Emily Atef erra grosseiramente ao trazer o jornalista iniciando sua conversa com a atriz de maneira hostil, antagonizando-a imediatamente – algo que um profissional como aquele jamais faria, sob pena de perder a entrevista antes de emplacar uma só pergunta. (Além disso, é uma composição simplesmente pobre e unidimensional, o que já seria um erro por si só.)
No entanto, quaisquer problemas provocados por uma ou outra decisão questionável dos demais integrantes do elenco ou pelo roteiro são mais do que compensados pelo trabalho de Bäumer, que incorpora a persona de Schneider de tal forma que, durante boa parte da projeção, tive dificuldades de acreditar que não se tratava da original. Saltando com segurança entre a energia quase maníaca e a prostração causada por crises depressivas, Bäumer cria uma composição complexa e humana, conseguindo realmente expor a pessoa por baixo da celebridade, bem como suas dores e inseguranças. Como se não bastasse, 3 Dias em Quiberon traz ainda uma breve participação do sempre brilhante Denis Lavant, que surge como um poeta da cidade na qual a ação se passa e que, na vida real, foi inspirado por um homem retratado dançando com Schneider em um pub local.
Admiravelmente consciente acerca da dinâmica característica da depressão, o filme e sua atriz principal demonstram como alguém pode oferecer risos e gargalhadas abertos, sugerindo uma alegria contagiante e sincera, enquanto se encontra em ruínas por dentro. E é de partir o coração saber que a vida de Schneider se tornaria ainda mais trágica depois de seus três dias em Quiberon.
21) 7 DIAS EM ENTEBBE (7 DAYS IN ENTEBBE)
Em junho de 1976, dois alemães ligados às células revolucionárias do país sequestraram um avião de passageiros francês (incluindo 83 passageiros israelenses) com a ajuda de dois integrantes da Frente Popular pela Libertação da Palestina, desviando-o para a Uganda (então liderada pelo insano Idi Amin) e exigindo a libertação de mais de 50 prisioneiros palestinos que Israel mantinha encarcerados. Pressionado pela política de não-negociação adotada previamente, o primeiro-ministro Yitzhak Rabin tentou encontrar uma solução diplomática para a situação enquanto seu ministro da defesa, Shimon Peres, insistia numa operação militar para resgatar os reféns. Dramático por natureza, este incidente já foi levado aos cinemas em três ocasiões, ganhando agora uma quarta versão comandada por José Padilha – e possivelmente a melhor (não vi a de 1976, dirigida por Menahem Golan, mas... bom, como se trata de Golan, eu apostaria mais na de Padilha).
Escrito por Gregory Burke, o longa abre com um breve texto estabelecendo como os palestinos se identificavam como “guerreiros da liberdade” enquanto os israelenses os chamavam de “terroristas” – e a pergunta que imediatamente surge é: como o filme irá enxergá-los? A resposta: de forma surpreendentemente multifacetada. Ao nos apresentar a um dos guerrilheiros palestinos, por exemplo, 7 Dias em Entebbe evita o estereótipo do muçulmano que invoca Alá raivosamente e emprega constantemente palavras como “infiéis”, fugindo também da figura antissemita, optando por retratar Jaber (Omar Berdouni) como um homem cuja família (pais, esposa e filhos) foram massacrados pelo exército israelense, radicalizando-se mais pelo luto do que pela fé – o que não o impede de manifestar respeito pelos judeus por também saberem como é perder tudo (“Mas agora eles estão fazendo conosco o que os nazistas fizeram com eles”, ele completa).
O esforço do filme para não pesar a mão para um dos lados é refletido no ótimo elenco – e só por escalar Daniel Brühl como um dos sequestradores alemães já se torna difícil não ter simpatia pelo personagem (a ótima Rosamund Pike interpreta sua parceira, encarnando-a com um pouco mais de ferocidade, mas não menos complexidade – e a cena na qual usa um telefone público é notável). Do mesmo modo, ao dedicar várias cenas ao soldado israelense vivido por Ben Schnetzer, o roteiro busca reequilibrar a narrativa, sendo particularmente reveladora a decisão de usar o rapaz como centro destas sequências em vez do líder de seu grupo (Angel Bonanni), que seria a escolha natural, mas, por se chamar Yonatan Netanyahu, poderia alterar a escala para um lado ou outro dependendo de como o espectador se sente em relação ao seu irmão (sim, Benjamin).
Além disso, ao tratar todos como vítimas, de uma forma ou de outra, de uma guerra levada adiante por líderes intransigentes em nome de interesses políticos, 7 Dias em Entebbe aponta o dedo na direção dos poderosos, o que é sempre uma postura mais corajosa e admirável. Ainda assim, é preciso observar como Rabin é interpretado por Lior Ashkenazi como um homem sensato e que não gosta de considerar a ação militar como primeira opção – e mesmo Shimon Peres, com o qual Eddie Marsan rouba todas as cenas em que aparece, ganha contornos um pouco mais suaves à medida que a trama avança. Já Idi Amin (Nonso Anozie) é basicamente uma versão insana, mas um pouco menos sombria (ou complexa) daquele que rendeu o Oscar a Forest Whitaker.
Excepcionalmente montado por Daniel Rezende, que salta entre as várias linhas narrativas de modo fluido e dinâmico, fazendo um trabalho especialmente brilhante no clímax, quando gera tensão ao criar várias transições elegantes que tornam tudo mais ágil (como o corte da porta de um avião para a cortina de um teatro enquanto ambas são abertas). Dito isso, esta tensão atinge seu máximo durante a preparação para Operação Thunderbolt, não durante sua execução, o que resulta em um anticlímax que, infelizmente, prejudica a obra justamente quando esta deveria se encerrar de maneira marcante. (E é especialmente decepcionante ver como o filme passa casualmente pelo desfecho de vários personagens aos quais havíamos nos apegado.)
Eficiente como thriller político e de ação, 7 Dias em Entebbe consegue uma proeza que deve ser reconhecida: explora a dramaticidade de um evento trágico sem jamais desrespeitar quaisquer dos envolvidos.
22) SEASON OF THE DEVIL (ANG PANAHON NG HALIMAW)
Hugo Haniway (Piolo Pascual) é um poeta filipino cuja esposa, a médica Lorena (Shaina Magdayo), decidiu arriscar a própria vida ao se mudar para o interior do país a fim de cuidar da população de pequenos vilarejos – algo temerário em uma época na qual milícias armadas e empoderadas pelo presidente Ferdinando Marcos vinham cometendo constantes violações dos Direitos Humanos ao massacrar civis sob a desculpa de “combater o comunismo” (sempre isso). Ambientado em 1979, o novo filme do cineasta Lav Diaz acompanha o personagem enquanto tenta descobrir o que ocorreu com a companheira desaparecida, enquanto, em flashbacks, vemos a ação brutal dos milicianos liderados por uma tenente (Hazel Orencio) e seu braço-direito (Joel Saracho).
Conhecido pela longa duração de seus trabalhos (três de seus filmes têm nove horas de duração cada), Diaz aqui até se mostra comedido, empregando “apenas” 234 minutos para contar sua história – mas que soam como quinze graças à sua decisão de construir a narrativa como uma “opera rock” (não, não tem nada de rock) na qual basicamente todos os diálogos são cantados pelos personagens. Aliás, o problema tem menos a ver com esta opção (que, afinal, nada tem de nova e já gerou obras memoráveis) e mais com o fato de o diretor decidir compor sozinho todas as músicas – e, acreditem, Lav Diaz não é um compositor prodígio. Aborrecidíssimas e cantadas a cappella por um elenco no qual nem todos exibem a melhor das vozes, as canções ouvidas ao longo da projeção ainda se repetem continuamente, obrigando o espectador a aturar horas e horas das mesmas melodiazinhas primárias com versos em aparente loop infinito. Como se não bastasse, há passagens que não fazem qualquer sentido do ponto de vista da relação entre os personagens, como na cena em que, sem rima ou razão, figuras em lados opostos do conflito cantam juntas certos versos (se é que se pode chamar “La la la, ah” de verso) numa harmonia que desafia a dinâmica estabelecida (até entendo o “La la la, ah” desafiador lançado por Hugo quase ao final, mas não aquele debilmente recitado pelo intelectual interpretado por Bart Guingona).
O mais frustrante é que, quando suas canções não estão torturando o espectador, Season of the Devil consegue ser hipnotizante: os longos planos estáticos que compõem cada cena trazem composições evocativas e durante boa parte do tempo justificam suas durações, ainda que ocasionalmente Diaz pareça estendê-las apenas para fazer jus à sua reputação (como aquela que enfoca um looooooongo abraço e outra na qual Anghelita (Angel Aquino) ajuda o alcoolizado Hugo a caminhar). Por outro lado, há um momento a partir do qual nem o mais fantástico dos enquadramentos consegue compensar o fato de estarmos ouvindo alguém cantar até cair em lágrimas pela enésima vez. E se a fotografia em preto-e-branco de Larry Manda é maravilhosa, há instantes nos quais esta estética impecável desrespeita os acontecimentos que retrata – e o filme traz uma cena de estupro particularmente problemática, já que a preocupação em fotografá-la numa contraluz lindíssima, com fumaça usada especialmente para tornar visível cada raio de luz, beira o ofensivo, ultrapassando-o graças à decisão ainda pior de incluir cantoria durante o ato bárbaro.
Já como discussão política e social, Season of Devil exibe inteligência ao usar o passado das Filipinas para comentar seu presente – e quando os milicianos acusam inimigos de tráfico de drogas apenas para justificar suas execuções, fica patente como Lav Diaz está apontando o dedo para o atual regime do repulsivo Rodrigo Duterte. Além disso, ao criar personagens que obviamente representam estratos específicos da sociedade (o Artista, o Intelectual, a Família) ou figuras dramáticas clássicas (a Barda), o diretor/roteirista traz universalidade para a obra.
Elevando-se consideravelmente em seus 45 minutos finais, que são primordialmente dominados pelo silêncio (e a ótima mise-en-scène é mais do que suficiente para mover a narrativa), Season of Devil poderia ter sido uma pequena obra-prima. Isto é, caso seu realizador não demonstrasse uma ignorância tão profunda acerca das próprias limitações musicais.
20 de Fevereiro de 2018