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Festival de Berlim 2018 - Dia #06 Festivais e Mostras

Dia 06

Vamos a mais quatro filmes:

23) DON’T WORRY, HE WON’T GET FAR ON FOOT (IDEM)

Joaquin Phoenix é um dos atores mais versáteis de sua geração; a cada novo filme, seu alcance na composição de personagens se revela maior e maior, combinando as impressionantes mudanças exteriores com pequenos maneirismos e ritmos de fala que criam indivíduos tão diferentes entre si que se torna difícil acreditar que tenham ocupado o mesmo corpo. Comparem sua vulnerável doçura em Ela, sua raiva e o desprezo por si mesmo em O Mestre, sua capacidade para a violência movida por distanciamento emocional em You Were Really Never Here ou seu absoluto desprendimento da realidade movido a química em Vício Inerente e percebam como cada decisão criativa resulta em uma particularidade fascinante que transforma seus personagens em seres únicos. Pois Phoenix volta a fazer isso em Don’t Worry, He Won’t Get Far on Foot, cinebiografia do cartunista John Callahan, e no qual o ator surge como um homem de modos gentis, olhar generoso e sorriso aberto.

Mas é sua trajetória até chegar a esta postura que torna o novo filme de Gus Van Sant tão tocante: tornando-se tetraplégico aos 21 anos de idade depois de um acidente de carro, Callahan surge no início do filme como um homem de vícios. Fumando até no chuveiro e obrigado a correr para uma loja de bebidas assim que desperta a fim de evitar os sintomas da abstinência provocada por algumas horas de sono, o sujeito acaba entrando num automóvel dirigido por um indivíduo igualmente bêbado (vivido por Jack Black) e, quando acorda, já está preso à cama e sem movimentos dos membros. E ainda dependente do álcool.

Adaptado pelo diretor a partir da autobiografia de Callahan, este é um filme de trajetórias: ao longo de suas quase duas horas de duração, retrata as jornadas do protagonista para se livrar do alcoolismo, aprender a lidar com as novas limitações físicas, combater a depressão e, principalmente, para se perdoar. Em cada um desses arcos, Joaquin Phoenix consegue conduzir o espectador pelo processo vivido pelo personagem graças à maneira como altera sua dicção (logo após o acidente, a voz frágil mal escapa pelos lábios que pouco se abrem para falar), sua postura física (até mesmo o modo como se senta na cadeira de rodas) e, claro, suas expressões faciais, que vão do embaraço ao descobrir que insultou alguém com saúde pior do que a sua ao prazer absoluto ao recuperar um pouco de sua liberdade graças à cadeira de rodas motorizada. Além disso, a facilidade ou a dificuldade com que sorri é um termômetro importante de seu estado emocional, levando o público a experimentar alívio ao vê-lo mais leve ou angústia ao notar sua fragilidade psicológica.

Se a angústia vem dos traumas de infância e dos vícios que usa para deles tentar escapar, o alívio chega, ao menos em parte, na figura de Rooney Mara, que é fotografada por Christopher Blauvelt com luzes sempre quentes que a transformam numa quase aparição sempre que surge em cena. Enquanto isso, Donnie, vivido por Jonah Hill com grande empatia, abraça a posição de guia emocional, incentivando e/ou provocando o protagonista de acordo com suas necessidades em cada momento. E se Jack Black inicialmente vive seu personagem como, ora, Jack Black, no terceiro ato acaba aparecendo em uma cena na qual o alcance dramático exibido em Bernie volta a se apresentar.

Preenchendo os papeis secundários primordialmente com atores desconhecidos (ou mesmo amadores) que trazem personalidade e autenticidade à narrativa, Gus Van Sant opta por estruturar o longa de maneira não-linear – e mesmo que nem sempre a decisão traga bons resultados, soando pontualmente como mera afetação, jamais chega a comprometer a fluidez do filme. Mais interessante, por outro lado, é a ideia de incluir vários cartuns de Callahan ao longo da projeção, convertendo-os em breves animações ou empregando a voz de Phoenix para ler os balões de diálogos – e relevância desta inclusão reside em permitir que o espectador compreenda melhor o senso de humor sombrio e fatalista que o sujeito expressava em seus desenhos.

Aliás, surpresa seria se Callahan tivesse uma visão menos pessimista do mundo; maturidade não traz necessariamente serenidade – e o sujeito tinha motivos de sobra para tamanha turbulência interna, sendo menos relevante vê-lo atingir uma posição de calma do que testemunhar sua luta com os demônios interiores que convertiam a turbulência em um tornado de categoria cinco.

 

24) THE WEAK ONES (LOS DÉBILES)

A história contada pelo mexicano Os Fracos é simples e direta: Victor (José Luis Lizárraga) é um homem silencioso que certo dia tem um desentendimento com o integrante de uma gangue local por um motivo tolo. No entanto, quando seu cachorro é morto em represália, o sujeito passa a buscar o responsável, encontrando figuras atípicas em seu caminho à medida que consegue novas pistas sobre o paradeiro do jovem com quem brigou.

Com um elenco inteiramente composto por não-atores, o filme dos diretores Raúl Rico e Eduardo Giralt Brun enriquece o fiapo de roteiro com uma cor local impossível de simular, obviamente permitindo que cada integrante do elenco traga para o papel muito de sua personalidade – e os rostos marcados pelos maus tratos tornam Os Fracos bem mais melancólico do que poderíamos esperar em uma história sobre vingança.

A trama, por sinal, não demora a se revelar uma mera desculpa para que os cineastas possam conduzir o espectador por uma viagem ao longo de uma região miserável e violenta cuja aridez encontra reflexo na personalidade de seus habitantes. Não é à toa que as crianças locais brincam de sicário e torturam animais pequenos como ratos e coelhos, já que, elementos mais fracos da “cadeia alimentar” da violência promovida pela miséria e pelo tráfico, sentem necessidade de descontar em alguém (ou em algo) todos os abusos que sofrem.

Perdendo tudo que possui ao longo do caminho – numa metáfora óbvia, convenhamos -, Victor atravessa a curta narrativa (65 minutos) praticamente em silêncio, enquanto, ao seu redor, ouvimos notícias sobre massacres, manifestações de racismo e testemunhamos um vazio provocado por falta de perspectivas que só poderia levar mesmo ao colapso daquele mundo. Tudo isso enquanto o protagonista segue em uma busca por vingança que nada tem de raivosa, soando, ao contrário, quase desinteressada, como se fosse apenas algo que ele deve fazer porque é isso que esperam dele.

É uma pena que os diretores não tenham percebido como o vazio era a essência da obra que criaram e tenham sentido a necessidade de amarrá-la com um desfecho que busca um sentido metafórico quando a falta de qualquer sentido já seria suficientemente significativa.

 

25) PIG (KHOOK)

Khook – “porco” - é a palavra rasgada com estilete na testa dos cineastas um serial killer vem exterminando no Irã. Sem explicar suas motivações, suas vítimas incluem artistas políticos e também outros que só produzem entretenimento descompromissado com qualquer discussão mais séria. No entanto, independente da razão por trás da matança, o famoso diretor Hasan Kasmai mal pode ocultar a raiva que vem sentindo, já que se sente desvalorizado como realizador por ainda não ter sido caçado pelo assassino.

Esta não é a única das frustrações de Hasan (Hassan Majooni), contudo: proibido pelo governo de dirigir qualquer filme, ele vê sua musa, a atriz Shiva (a maravilhosa Leila Hatami), cuja carreira ajudou a lançar, sendo atraída para o projeto de um cineasta-sensação (Ali Mosaffa), o que lhe provoca ciúmes como diretor e como homem – e, como se não bastasse, sua mãe está começando a exibir sinais de senilidade. Em outras palavras: ao longo das quase duas horas de projeção, o diretor e roteirista Mani Haghighi atira sobre seu protagonista todo tipo de indignidade, buscando a comédia a partir da irritação infantil de Hasan.

Pois “infantil” é o melhor termo para definir Hasan: vivido por Hassan Majooni como um homem desleixado que se veste com camisas baratas de suas bandas de black metal favoritas, mantém a barba e os cabelos despenteados e se entrega a constantes ataques histéricos em público, o personagem parece tão imaturo e tolo que se torna impossível acreditar que realmente tenha sido – como todos que o encontram insistem – um artista tão bem sucedido. Claro que estes traços de personalidade são usados pelo longa para gerar o humor, ocasionalmente atingindo seu objetivo quando a antipatia do espectador pelo protagonista diminui um pouco ou compreendemos um pouco suas ações como consequência de sua competitividade exacerbada (como fica claro nas partidas de tênis que disputa com um amigo).

Dito isso, Khook parece não perceber como sabota as próprias intenções cômicas não só ao criar gags mais adequadas para crianças (como no momento em que Hasan e o amigo caem ao tentar pular um muro), mas – e principalmente – ao incluir incidentes pesados demais para o gênero, como, por exemplo, a decapitação de um(a) personagem importante (revelando sua cabeça em uma imagem bem gráfica). Já as frequentes alucinações do sujeito podem até divertir pelo absurdo de números musicais fora de lugar, mas enfraquecem as tentativas do roteiro de fazer um comentário político sobre o autoritarismo no Irã – afinal, qual o propósito de mostrar Hasan sendo vendado pela polícia apenas para depois fazer gracinha com os agentes, como se fosse natural impedir que prisioneiros vejam para onde estão sendo conduzidos?

Aliás, todos os esforços feitos pelos realizadores para criar alegorias políticas e sociais são deixados pela metade: ao abordar como a Internet se tornou espaço para julgamentos públicos rápidos e sem direito a defesa, por exemplo, Khook toca numa questão contemporânea relevante apenas para tratá-la superficialmente e usá-la para um desfecho “feliz” – se é que pode ser visto assim - artificial.

Talvez o tal serial killer tenha lá suas razões.

 

26) UNSANE (IDEM)

Desde que anunciou sua aposentadoria em 2013, o cineasta Steven Soderbergh dirigiu e/ou produziu e/ou roteirizou e/ou montou (assinando como Mary Ann Bernard) e/ou fotografou (assinando como Peter Andrews) uma penca de projetos de ficção e documentário para o Cinema e para a televisão. Recentemente, para a surpresa de exatamente ninguém, ele admitiu que não havia conseguido parar de trabalhar e que, ao contrário, havia se encantado com as novas tecnologias que permitem realizar projetos com uma rapidez cada vez maior – uma perspectiva que o atraiu por achar que Cinema gasta tempo demais para ser feito.

Este Unsane, por exemplo, é um desses esforços ligeiros que Soderbergh tem apreciado: um claro exercício de gênero escrito pela dupla Jonathan Bernstein e James Greer – e só não digo que dever ser pseudônimos do diretor porque não são estreantes, sendo responsáveis por várias bobagens como Sorte no Amor e Missão Quase Impossível. Girando em torno de Sawyer Valentini (o nome da personagem já diz tudo sobre o filme), uma mulher que se mudou de cidade depois de ser vítima de um stalker, o longa a acompanha quando, numa crise de ansiedade, vai até uma clínica psiquiátrica buscar aconselhamento e acaba sendo internada ao assinar alguns papeis sem lê-los com cuidado. Sem conseguir convencer o médico responsável pela instituição de que não deveria estar ali (ele mal presta atenção na paciente), ela entra em pânico ao descobrir que seu stalker conseguiu um emprego como enfermeiro, sob um nome falso, se tornando responsável por suas medicações.

Ou será que tudo não passa de um delírio da protagonista? Esta é uma questão que Unsane apresenta ao espectador durante um curto período de tempo, empregando câmeras subjetivas para nos prender ao olhar da mulher e à sua percepção talvez equivocada do mundo que a cerca. Infelizmente, o roteiro não se mostra muito interessado nesta possibilidade (que já não seria tão original, sejamos sinceros) e Soderbergh logo inclui cenas que, por não incluírem a personagem, se estabelecem como realidades objetivas, oferecendo a resposta para a pergunta sobre sua sanidade. (O restante deste texto discutirá as consequências desta resposta e mesmo que o longa não trate a questão como mistério, respondendo-a rapidamente, vou colocar um aviso de spoilers para evitar reclamações dos mais sensíveis.)

A partir daí, o longa se torna mais um thriller convencional, ainda que eficiente, dedicando-se ao jogo de gato-e-rato entre Sawyer e seu perseguidor, ecoando filmes vastamente superiores como Louca Obsessão (há um incidente específico que copia descaradamente uma das cenas mais famosas do longa estrelado por Kathy Bates e James Caan). Para piorar, Bernstein e Greer jamais deixam de ser previsíveis, permitindo que o público antecipe os planos da protagonista e seus resultados, o que não contribui muito para o suspense mesmo que Soderberg cria momentos visualmente inquietantes (como o efeito simples, mas angustiante, de fazer uma fusão entre o rosto de Sawyer e a parte de trás de sua cabeça a fim de ilustrar seu tumulto psíquico induzido por remédios).

O cineasta, por sinal, também cria uma atmosfera de paranoia eficiente no primeiro ato da narrativa ao frequentemente filmar a mulher à distância, como se estivesse sendo sempre observada – e o uso constante de grandes angulares também se justifica pelo efeito destas lentes em deformar o campo em suas laterais e em expandi-lo em sua profundidade, resultando em um efeito inquietante que reflete o estado emocional e psicológico da personagem. Aliás, aqui cabe apontar que Unsane foi totalmente rodado em um iPhone, algo que comprova como a tecnologia avançou a ponto de permitir o uso de telefones para rodar filmes e também como estes ainda estão longe do ideal para a tarefa – como é fácil constatar em qualquer plano que envolva movimentos de câmera mais óbvios (que trazem “travadinhas” e deixam a imagem levemente borradas) ou que traga o personagem de Jay Pharoah, que, negro, tem o rosto registrado de forma pobre, indicando a dificuldade que o aparelho ainda tem para capturar a luz apropriadamente (quando o ator se encontra ao lado de Claire Foy, que surge com todas as expressões perfeitamente visíveis, o contraste entre as definições dos traços dos dois fica óbvio).

Exprimindo com talento a angústia crescente de Sarah diante da situação em que se encontra, Foy é especialmente competente ao sugerir os esforços da mulher para tentar controlar os próprios impulsos e convencer aqueles que a aprisionaram de que é mentalmente sã (embora seja sempre paradoxalmente difícil dizer algo como “eu não sou louco(a)” sem soar como um(a). Ao conversar com o diretor da clínica, por exemplo, ela sorri continuamente, tentando estabelecer cumplicidade, ao passo que ao encontrar-se com a mãe (Amy Irving, projetando conforto) ela assume uma postura vulnerável, quase infantil. Já Pharoah cria um personagem simpático, divertido e que inspira confiança, ao passo que Joshua Leonard, como o vilão, representa uma ameaça convincente ainda que o roteiro acabe transformando-o numa caricatura (o ator, para quem não se lembra, era o “cinegrafista” de A Bruxa de Blair. O filme conta ainda com uma ponta surpresa não creditada que, honestamente, mais distrai do que acrescente – e fica óbvio como o ator em questão rodou todas as suas cenas separadamente, sem a presença de Foy embora supostamente contracene com esta.

Repleto de clichês e, como já dito, bem limitado em seus aspectos visuais, Unsane demonstra que, ao contrário do que Soderbergh parece ter passado a acreditar, há bons motivos para se investir um tempo considerável na produção de um projeto.

21 de Fevereiro de 2018

(Dias anteriores: #01#02#03#04, #05.)

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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