Dia 07
Hoje foram apenas três filmes, já que um tinha quase três horas de duração.
27) MEU IRMÃO SE CHAMA ROBERT E É UM IDIOTA (MEIN BRUDER HEIßT ROBERT UND IST EIN IDIOT)
“Se considerarmos apenas o presente, o agora, melodias não existem”. Estou citando de memória, mas é basicamente isso que Elena (Julia Zange), a jovem protagonista de Meu Irmão se Chama Robert e é um Idiota, diz em certo momento depois de muito refletir sobre a natureza do tempo. É uma abordagem filosófica que, em essência, é o centro temático do novo filme do alemão Philip Gröning, que basicamente acompanha um casal de gêmeos, Elena e Robert (Josef Mattes) durante um fim de semana enquanto a garota se prepara para uma prova de filosofia no colégio.
Descrevendo assim, o longa parece mais linear e convencional do que é na verdade. O problema, percebam, é que vocês não aplicaram, ao ler o parágrafo acima, a lógica defendida por Elena na frase inicial. A melodia não existe no tempo presente porque no agora só existe uma nota; a anterior ficou no passado e a próxima está no futuro. E uma melodia só é enquanto uma sucessão de notas musicais. Assim, no presente, cada palavra deste texto é a única em seu “presente”; não há frase, só vocábulos isolados. Ou poderíamos ir ao extremo e dizer que não há vocábulos, apenas letras. No entanto, se você tiver que cantarolar a tal melodia ou citar este texto, você conseguirá fazê-lo usando a memória de todos os seus elementos individuais.
O que cria um paradoxo: você está se lembrando de algo que, a rigor, nunca existiu.
Esta é, obviamente, uma discussão ontológica que fascina o cineasta, cujo roteiro (escrito com Sabine Timoteo) traz dois adolescentes falando sobre Heidegger como se debatessem algo trivial.
Passando boa parte das três horas de projeção caminhando pelos campos de trigo, pela alta grama verde e pelo bosque da região, Elena e Robert são próximos a ponto da estranheza, irritando-se mutuamente, agredindo-se, mas também trocando carícias em meio a reflexões sobre questões maiores do que o limite de sua maturidade. Particularmente interessados no conceito do tempo, eles ponderam sobre como sua passagem é que permite a existência do amor, já que, sem ele, não há urgência, ausência ou mesmo “relacionamento”. O que possibilita que façamos escolhas é o reconhecimento de causas e consequências – e é por não compreenderem o tempo que animais e crianças ignoram a possibilidade de “escolha” e só se interessam pelo agora.
Se boa parte dos cineastas faria o possível para se manter longe de temas complexos e abstratos como estes, Gröning vai no caminho oposto e os abraça completamente, não só como discussão, mas como experiência narrativa. Para isso, ele transforma o próprio filme em uma reflexão prática sobre como percebemos o tempo, desafiando o espectador através de seu próprio conceito enquanto Cinema. Não é à toa, por exemplo, que a obra tem quase três horas de duração e traz uma infinidade de planos-detalhe que enfocam os dedos dos personagens se tocando, partes isoladas de seus corpos (outra discussão filosófica central no filme é o conceito de “ser”) e, graças ao belo uso de lentes macro, imagens de formigas, abelhas, grilos e outros seres que, normalmente minúsculos, tornam-se gigantes na tela. Enquanto isso, o design de som contribui para a natureza sensorial da narrativa, cercando o público com o canto de pássaros, o uivar do vento, o ruído da chuva batendo no chão e assim por diante.
Do mesmo modo, é claro que a montagem, feita pelo próprio diretor ao lado de Hannes Bruun (ao longo de cinco anos; as filmagens ocorreram em 2013), experimenta com estes conceitos – algo que o Cinema já faz naturalmente, mas que aqui é explorado de forma particular: brincando com as distinções entre o tempo da história, da narrativa e da projeção (respectivamente: em torno de alguns dias; 48 horas e 174 minutos), Gröning nos leva a perceber a duração do filme nos três termos, não temendo a rejeição que certamente provocaria em muitos em função da percepção de “lentidão” no ritmo (e, de fato, considerando o número de pessoas que abandonaram a sala durante a exibição no Festival de Berlim, este não foi um experimento exatamente popular). Aliás, os próprios personagens fazem sua brincadeira privada com o tempo ao assistirem ao pôr-do-sol e, então, correrem morro acima para vê-lo desaparecer novamente (eles repetem o jogo na manhã seguinte, mas desta vez disparando morro abaixo para testemunharem um duplo nascer do sol).
Já a fotografia – também de Gröning – investe em uma paleta quente e saturada que traz os irmãos em um mundo de sensações e cores intensas, removendo aos poucos a força desta saturação à medida que a narrativa avança e a postura da dupla vai mudando para algo mais sombrio. Zange e Mattes, por sinal, fazem um belo trabalho na maneira como concebem os personagens, que, infantis e impulsivos, se divertem e se irritam com a mesma frequência, demonstrando ciúmes mútuos, mas também uma submissão curiosa um ao outro e que se manifesta constantemente através da desculpa proporcionada pelas “apostas” que fazem.
Eventualmente entregando-se ao niilismo absoluto que pode ser visto como resultado da crença de que não há consequências quando se considera apenas o presente, Meu Irmão se Chama Robert traz um ato final bem mais pesado do que os anteriores – e se justapusermos o lirismo do início ao horror do fim, o resultado é um cruzamento entre Terrence Malick e Paul Verhoeven, o que não deixa de ser curioso. E, sim, tenho consciência de que apenas esta descrição afastará alguns setores específicos da cinefilia.
Mas este é um filme que nasceu para ser odiado possivelmente pela maioria das pessoas – e compreendo essa reação. No meu caso, tenho sentido uma admiração cada vez maior à medida em que o tempo passa e reflito sobre a obra. Ou talvez eu esteja apenas pensando sobre algo que nunca existiu, sendo uma mera sucessão de “presentes” pausados e incômodos.
28) O FILHO (SYN)
Documentários que lidam com questões pessoais e familiares de seus realizadores não são incomuns, já tendo gerado grandes obras. No entanto, há um cuidado fundamental que este tipo de projeto deve tomar: compreender que, por mais particular que uma história seja, quase sempre é possível extrair dela algo universal. Há filmes que fazem isso maravilhosamente bem (Na Captura dos Friedman) e outros que desmoronam sob o narcisismo de seus realizadores (Em Busca de Iara). E há aqueles como O Filho, que tentam enxergar algo além do próximo aos seus diretores, mas falham não por egocentrismo, mas pela pasteurização completa do tema.
Dirigido pelo russo Alexander Abaturov, o documentário parte da morte do primo do diretor, baleado enquanto atuava como soldado do exército russo, e se propõe a fazer uma análise do militarismo como um todo, retratando o cotidiano dos recrutas, a rotina de ordens e exercícios, e o trabalho excruciante que são obrigados a realizar. E, no entanto, sempre que Abaturov começa a desenvolver sua discussão com um pouco mais de profundidade, a morte do primo e os efeitos desta sobre sua família voltam a atormentá-lo, o que é compreensível de um ponto de vista pessoal, mas prejudicam suas ambições como cineasta.
E como o ritmo do longa é também instável, provocando um tédio descomunal com apenas 71 minutos de duração, desenvolver um argumento coerente e eficaz se torna praticamente impossível.
29) O PROCESSO (IDEM)
Assistir a O Processo é reviver um pesadelo – ou uma série deles. Dirigido por Maria Augusta Ramos, o documentário é um trabalho que, como os anteriores da cineasta (a excelente trilogia sobre a Justiça brasileira e o ótimo Futuro Junho), evita a editorialização excessiva, buscando retratar com o menor número possível de intromissões toda a trajetória legal do “impeachment” no Senado, desde o recebimento da denúncia vinda da Câmara dos Deputados até a votação final que removeu a presidenta Dilma Rousseff do cargo. Neste sentido, uma diretora com o estilo de Ramos representa a opção ideal para o projeto, que já traz muitos discursos dos personagens (de ambos os lados) para ter que incluir também os da cineasta.
Aliás, é um reflexo da polarização absoluta do Brasil contemporâneo que só o fato de eu ter escrito “presidenta” e colocado “impeachment” entre aspas seja o suficiente para que qualquer um saiba imediatamente minha posição sobre os eventos retratados no filme – e, portanto, não creio que O Processo vá mudar muitas mentes, o que é resultado direto do esforço por objetividade feito pela realizadora (a projeção tem início com o “muro” construído em Brasília para separar manifestantes pró e anti-Dilma e que já gerou seu próprio documentário, o ótimo O Muro). Sim, os fatos estão no filme e são inegáveis, mas se há algo em que o Brasil vem se especializando é a negação da realidade, que transforma a perda de direitos em “avanços” e uma intervenção militar em um estado em “agenda alternativa de segurança”. Assim, talvez O Processo seja, em essência, uma obra para consumo externo, uma apresentação para a comunidade internacional de um rito que, disfarçado como algo legítimo, tinha um objetivo meramente político de remover um governo eleito democraticamente.
(Não acho que seja absurdo supor que acabei de perder uns 40% dos leitores que chegaram até o fim do parágrafo anterior sem gritar “comunista maldito” e socar a tela do computador ou do dispositivo móvel; portanto, um abraço revolucionário mortadelístico bolivariano para os que seguem a leitura.)
Enriquecida pelo acesso obtido por Ramos aos bastidores do julgamento, o documentário leva o público para as reuniões nas quais os senadores que atuavam em defesa de Dilma discutiam e traçavam suas estratégias e argumentações, estudando os pontos da acusação e rebatendo-os articuladamente. Não que tivessem qualquer ilusão quanto ao desfecho do processo – fica claro, no filme, que os esquerdistas sabiam (como todos sabíamos) que “culpa” não era algo com o qual os julgadores se encontravam preocupados. Ainda assim, é com choque e frustração que figuras como Gleisi Hoffmann e Lindbergh Farias recebem as decisões arbitrárias da comissão presidida por Raimundo Lira e que impedem sem quaisquer disfarces que a defesa possa ser exercida de forma plena.
Ciente de que os detalhes do julgamento provavelmente não chegaram à maior parte da população, a diretora emprega um bom tempo do filme para explicar o que eram as tais “pedaladas” e como, essencialmente, a justificativa para depor Dilma vieram de três decretos de crédito suplementar – e, até para equilibrar um pouco a narrativa, Ramos inclui imagens do Cássio Cunha Lima (PSDB) detalhando para a imprensa as acusações. Aliás, O Processo traz imagens de arquivo de elementos como Eduardo Cunha, Romero Jucá, Álvaro Dias e, claro, Aécio Neves, sendo interessante notar como, por outro lado, Michel Temer permanece fora da tela, refletindo sua atuação nos bastidores do rito. (Vale apontar, também, que a maior parte dos senadores da direita se recusou a dar acesso à equipe do filme.) Do mesmo modo, Dilma também mal aparece – e, quando a vemos, são em instantes nos quais teve que se manifestar oficialmente sobre o processo, seja ao depor no Senado, seja ao discursar depois de derrubada – e, em seu lugar, Hoffmann, Farias e José Eduardo Cardozo assumem o centro da narrativa ao desempenhar papéis específicos: a primeira, como líder estratégico do grupo; o segundo, como o combatente mais ferrenho; e o terceiro, como o eloquente e inteligente responsável oficial pela defesa.
Sem jamais identificar os “personagens” com legendas e sem incluir entrevistas exclusivas (as que estão no filme foram concedidas a outros veículos), O Processo extrai seu nome da obra de Kafka por motivos patentes, já que a frustração provocada pelo absurdo de um sistema que acusa sem transparência, que impede a defesa de trabalhar e usa tecnicalidades para tentar condenar reflete todos os obstáculos enfrentados por Joseph K. naquele livro. Chega a ser motivo de piada, por exemplo, o espanto de Cardozo diante de argumentos estapafúrdios da acusação e de deturpações óbvias da lei (como considerar subsídios agrícolas como empréstimos). Aliás, por falar em piada, boa parte das risadas provocadas pelo longa – e na sessão em Berlim houve muitas – são originadas pelas ações da advogada Janaína Paschoal (como seus aquecimentos físicos antes do julgamento), por suas falas (como ao usar uma sessão do Senado para tirar satisfações pessoais) e por seus trejeitos e maneirismos. Curiosamente, um efeito interessante desta proximidade é tornar Paschoal uma figura quase simpática em função de suas excentricidades – e eu não ficaria espantado caso ela aprove a maneira como é retratada por Ramos.
Enquanto isso, a montagem de Karen Akerman, além de organizar a quantidade absurda de material em uma forma didática e elucidativa, inclui sequências que funcionam quase como vinhetas que permitem uma pausa no excesso de informações, mostrando, em planos gerais, o cotidiano de Brasília (e ilustrando, com isso, como a vida seguia normal para boa parte da população). Em contrapartida, os momentos nos quais apenas seguimos senadores ou Cardozo em carros ou enquanto caminham acabam quebrando um pouco o ritmo da projeção, o que é uma pena, mas também um pecado menor.
Revelando uma Dilma que, mesmo na posição de acusada, revela mais serenidade do que seus algozes, O Processo termina apropriadamente com uma literal cortina de fumaça, que funciona como lembrança dos conflitos que dominaram o país nos últimos anos e do verdadeiro propósito do “impeachment”: permitir, no caos que dominou a sociedade (e comprovando pela enésima vez o que Naomi Klein escreveu em seu “A Doutrina do Choque”), “reformas” que levam mais a quem tem tudo e tiram de quem já pouco tinha. Esta imagem, aliás, é a única que realmente se apresenta como uma posição editorial sem ambiguidades.
No restante do tempo, quem faz a editorialização de O Processo é a História.
22 de Fevereiro de 2018