Dias 09 e 10
Nos últimos três dias do festival, fui destruído por uma gripe que praticamente me deixou preso no hotel, com febre, tosse e a frustração de estar perdendo tantos filmes. Infelizmente, creio que foi um alerta do meu corpo para o fato de que já não tenho a mesma resistência de antes para assistir a cinco filmes por dia, escrever sobre todos, dormir por quatro horas e reiniciar o processo na manhã seguinte – repetindo a rotina por dez dias. Creio que vou ter que começar a limitar o número de longas vistos ou aceitar que não conseguirei produzir críticas sobre todos. Nesta Berlinale, foram 34 filmes, num total de mais de 21 mil palavras.
Em Cannes, tentarei manter um ritmo menos exaustivo.
Mas vamos aos dois últimos filmes que vi nesta 68a. edição do Festival de Berlim.
33) MUG (TWARZ)
Jacek tem cabelos compridos e barba, mora em uma pequeniníssima cidade polonesa extremamente católica e é operário na construção de uma estátua de Jesus Cristo que pretende ultrapassar o Cristo Redentor em dimensões. Não por acaso, vários de seus amigos o chamam de “Jesus” – até que, certo dia, ele sofre um acidente, despencando de um andaime e caindo no interior da estátua. Desfigurado pela queda, ele se torna o primeiro paciente a receber um transplante de face no país, mas a efêmera celebridade que isto lhe traz não chega nem perto de compensar o estranhamento que provoca nos parentes, o preconceito com o qual é tratado pelos vizinhos e o fato de sua noiva abandoná-lo.
Funcionando como alegoria da sociedade polonesa contemporânea, que, como boa parte da Europa, vem dando uma guinada para a direita, sendo marcada por xenofobia, racismo e a mais pura ignorância, Mug ressalta este caráter quase fabulesco da narrativa ao empregar, em sua fotografia, uma profundidade de campo reduzidíssima que tira o foco ora das laterais do quadro, ora em suas partes superior e inferior, remetendo à técnica do tilt-shift que confere uma aparência de miniatura aos cenários. Além disso, este foco reduzido acaba por isolar os personagens uns dos outros, salientando a solidão experimentada pelo protagonista.
Vivido com talento por Mateusz Kosciukiewicz e beneficiado pelo excepcional trabalho de maquiagem, Jacek é um jovem que jamais havia questionado seu lugar na hierarquia social da cidade, rindo sem autocrítica de piadas racistas e julgando-se perfeitamente feliz ao seguir todas as convenções passadas de uma geração a outra – e mesmo seu noivado com Dagmara (Malgorzata Gorol) parece resultar menos de amor do que de um passo inevitável e esperado por todos. Assim, quando ele “renasce” (olhaí o motif cristão mais uma vez), é com choque crescente que constata como dava por certo um respeito que era baseado mais em aparências do que em sentimentos.
Pecando aqui e ali pela obviedade das imagens que constrói (como a do Cristo sem cabeça), Mug é, de modo geral, um trabalho sólido que comprova a competência da cineasta Malgorzata Szumowska e também seu inquietamento diante de um país que reconhece cada vez menos como seu.
34) IN THE AISLES (IN DEN GÄNGEN)
In the Aisles é um filme que cria um microcosmo sem ter muita ideia de qual é o macrocosmo que quer representar. Seus personagens e o cenário que os abriga obviamente têm muito de alegoria, mas a inconsistência do roteiro pouco contribui para que a decifremos. Como resultado, é mais fácil apreciar a superfície do filme do que seus temas – sejam estes quais forem.
Protagonizado por Franz Rogowski, novo astro do Cinema alemão que também ancorou outro longa da mostra competitiva desta edição da Berlinale (Transit), Nos Corredores se passa em um mega supermercado e acompanha os funcionários de seu turno noturno, que têm o trabalho de repor os estoques e jogar no lixo os produtos que ultrapassaram a data de validade. Recém-empregado na empresa, Christian é escalado para trabalhar ao lado de Bruno (Peter Kurth) e logo se encanta por uma funcionária do departamento de confeitaria, Marion (Sandra Hüller, de Toni Erdmann). Interessado nas imensas empilhadeiras operadas por Bruno, Christian se esforça para aprender a conduzi-las enquanto se aproxima de seu superior, que aos poucos também vamos conhecendo melhor.
Melancólico e bem-humorado nas mesmas medidas, o longa aqui e ali assume um tom de realismo mágico ao criar balés com as empilhadeiras e ao acompanhar os movimentos da máquina com sons do oceano (que também se mostram presentes quando Christian conversa com a amada), mas estas peculiaridades em sua construção narrativa, mesmo contribuindo para que o filme se torne simpático, pouco oferecem além disso, resultando numa obra bonitinha, mas esquecível.
E agora, claro, é hora de registrar as premiações:
Urso de Ouro (Melhor Filme): Touch Me Not
Urso de Prata - Grande Prêmio do Júri): Mug
Urso de Prata - Prêmio Alfred Bauer): As Herdeiras
Urso de Prata de Melhor Diretor: Wes Anderson, por Ilha de Cães
Urso de Prata de Melhor Atriz: Ana Brun, de As Herdeiras
Urso de Prata de Melhor Ator: Anthony Bajon, de A Prece
Urso de Prata de Melhor Roteiro: Museo
Urso de Prata de Destaque para Contribuição Artística: Elena Okopnaya, pelos figurinos e design de produção de Dovlatov.
O Brasil, por sinal, se saiu maravilhosamente bem nesta Berlinale: O Processo foi um dos três vencedores do Prêmio do Público da Mostra Panorama, ao passo que Tinta Bruta e Bixa Travesty dominaram os prêmios Teddy (obras com temática LGBTQ), sendo os vencedores nas categorias Ficção e Documentário, respectivamente.
E... é isso. Espero que tenham curtido a cobertura do Festival!
Um grande abraço e bons filmes!
25 de Fevereiro de 2018
(Se você curte as críticas que lê aqui e as coberturas de festivais, é importante que saiba que o site precisa de seu apoio para continuar a existir e a produzir conteúdo de forma independente. Para saber como ajudar, basta clicar aqui - só precisamos de alguns minutinhos para explicar. E obrigado desde já pelo clique!)