DIA 04
12) Nahla é uma jovem síria que parece sempre irritada com o mundo ao seu redor, da mulher que, preocupada com um bebê, pede que feche a janela do transporte coletivo para evitar o vento até o expatriado que volta ao país para lhe propor casamento, já que quer uma esposa que seja sua conterrânea. Além disso, há o fato de estar experimentando um despertar sexual intenso que a leva a fantasias constantes com um homem ideal em um cenário erótico que parece mais uma versão de um romance adolescente feito para a tevê do que algo verdadeiramente carnal, já que consiste em trazê-la em vestidos rosas e cenas iluminadas quase ao ponto da superexposição (com direito a flares e tudo mais) enquanto acaricia os cabelos do amado que, por sua vez, abraça sua coxa de forma pudica e assexual.
Estreia na direção da síria Gaya Jiji – uma rara mulher a desempenhar a função em seu país -, Meu Tecido Favorito se passa em 2011, quando o atual pesadelo da guerra civil que destrói a nação estava em seus estágios iniciais. Pontuando a narrativa através de boletins de rádio ou noticiários de tevê, o agravamento da crise vai se desenvolvendo paralelamente às atribulação da protagonista, logo evidenciando que a trajetória emocional e psicológica de Nahla (Manal Issa, do excelente Nocturama) é, ao seu próprio modo, uma alegoria política (e que a política, por sua vez, é um comentário sobre a personagem).
Isto é algo fácil de constatar, por exemplo, quando analisamos as personalidades da jovem, de suas duas irmãs e de sua mãe: enquanto Myriam (Mariah Tannoury) observa os conflitos com indiferença, a caçula Line (Nathalie Issa) logo se coloca do lado da insurreição, ao passo que a matriarca (Souraya Baghdadi) defende a repressão promovida por Bachar el-Assad. Do mesmo modo, o homem idealizado por Nahla é um ser apolitizado (basicamente mudo, aliás), o pretendente expatriado critica a Síria como um todo e o cliente regular que visita o bordel mantido por sua vizinha é um militar fiel a el-Assad, mas atormentado pelo que vive.
Ah, eu não havia mencionado a cafetina Madame Jiji (Ula Tabari)? Bom, é porque seu papel no filme é introduzido de forma forçada, desenvolvido sem sutileza e concluído sem deixar qualquer impacto.
Um resumo do próprio filme, por sinal.
13) O Anjo é um filme cujos melhores atributos poderiam facilmente ser usados para questionar a moralidade de sua abordagem: contando a história real de Carlos Robledo Puch, o maior assassino serial da história da Argentina, o longa começa a acompanhar seus passos em Buenos Aires, em 1971, quando ainda era um jovem de classe média que estudava em uma boa escola particular, namorava e tirava boas notas. Ao mesmo tempo, ele tinha o hábito de entrar em residências desocupadas e roubar qualquer coisa lhe despertasse a atenção, sentindo um prazer óbvio não necessariamente no valor do que levava, mas na transgressão em si.
Ao conseguir uma arma de fogo, era apenas uma questão de tempo até dar o passo seguinte e matar alguém – algo que fez com afinco ao longo do ano seguinte, executando mais de uma dezena de pessoas, sendo cúmplice de estupros (e tentando praticar um), sequestros, assaltos e por aí afora. Em outras palavras: era um sociopata inquestionável, um jovem que matava por diversão ou curiosidade e que jamais registrava a gravidade do que fazia.
O que torna ainda mais curiosa a decisão do cineasta Luis Ortega de optar por construir uma narrativa tão divertida a partir destas tragédias. Trazendo interlúdios musicais e investindo num tom frequente de humor – até mesmo ao retratar certos atos de violência, como o primeiro assassinato cometido pelo protagonista -, O Anjo é um filme dinâmico, envolvente e visualmente interessante (o design de produção, com suas cores fortes, é fantástico) e confesso ter saído da projeção com vontade de vê-lo de novo.
Aos poucos, porém, as questões éticas relacionadas a este sentimento passaram a me incomodar: não seria mais apropriado que eu houvesse deixado o cinema com uma sensação pesada, angustiante? Lamentando as vidas perdidas gratuitamente em função da crueldade sem propósito de um adolescente mimado? Como os familiares das vítimas se sentirão vendo sua perda sendo tratada como puro entretenimento? São perguntas com implicações sérias que, como crítico, não posso deixar de fazer. E tão importante quanto as indagações anteriores: a abordagem de Ortega traz algo de positivo? É eficaz em seu propósito? Ela se justifica ao longo da projeção?
E aqui as respostas são mais simples: sim, sim e sim.
Para começar, o humor adotado por O Anjo tem o efeito de tornar o protagonista mais ameaçador. Pois o filme – e isto é essencial – não tenta justificar ou relativizar seus crimes: ele mata a sangue frio, sem necessidade (as vítimas não representam ameaça real) e não sente qualquer remorso. Ninguém deixa a sala de exibição concordando ou mesmo “compreendendo” com o que o sujeito faz. Por outro lado, o humor atua simultaneamente para evitar que a experiência se torne insuportável e para ressaltar como Carlos não pensa duas vezes sobre aqueles que destruiu, chegando a ignorar o papel que desempenhou em seus próprios crime. Em certo instante, por exemplo, quando alguém comenta seu primeiro assassinato, o rapaz responde que a vítima “morreu sozinha” – algo que leva seu interlocutor a observar: “Mas você ajudou com o tiro”. Sim, na superfície, é uma troca de diálogos engraçada, mas que colabora para ilustrar a completa falta de empatia do jovem.
Vivido pelo estreante Lorenzo Ferro em uma daquelas performances que podem alavancar uma carreira imediatamente, o protagonista extrai prazer de todo tipo de destruição – e quando o mandam incinerar um carro, ele não consegue resistir ao impulso de jogá-lo primeiro contra uma árvore (com ele próprio na direção) ainda que isto não seja necessário. Monstruoso como é, Carlos é um personagem fascinante, estabelecendo também uma boa química com o Ibáñez bem encarnado por Chino Darín (filho de Ricardo).
Mas eu não recomendaria este fantástico filme aos familiares daqueles que pereceram sob as mãos canalhas do protagonista.
14) A experimentação com a linguagem é um elemento fundamental em evolução e, neste sentido, é admirável que, aos 87 anos de idade, o lendário Jean-Luc Godard continue se dedicando à tarefa de desafiar o Cinema e a si mesmo em busca de novas possiblidades – algo que, afinal, faz desde sua estreia na direção com o clássico Acossado. Esta é a boa notícia; a má é que nos últimos anos os resultados alcançados por ele soam mais pretensiosos e arrogantes do que instigantes e inovadores. Sim, sempre haverá aqueles que aplaudirão com entusiasmo qualquer coisa que a grife Godard produza, mas é difícil não apontar como os filmes mais recentes do francês parecem projetos estudantis que impressionam apenas os próprios e o séquito que conquistaram por agirem como “bad boys”.
Este é o caso de O Livro de Imagens, que trouxe o cineasta de volta à mostra Competitiva do Festival de Cannes: construído a partir de recortes e colagens de filmes, quadros, retratos e imagens de arquivo que são acompanhados por sons que podem ou não pertencer aos trechos utilizados e estarem ou não em sincronia com o que vemos, a obra é um esforço dedicado a discutir a força e o peso das imagens e como estas são capazes de criar/destruir ideias, mover/alienar o espectador e forjar mundos e formas de pensamento. Ou não. O fato é que, como narrativa, o longa raramente apresenta algum centro estrutural que lhe confira coesão (ser experimental não significa utilizar os elementos aleatoriamente), embora aqueles interessados em manter a aura de gênio em torno de Godard possam facilmente criar textos que supostamente oferecem análises de suas intenções quando são meros tiros no escuro. Seria muito simples, por exemplo, desenvolver nesta crítica uma tese sobre como a fragilidade imagética sugerida pela recontextualização de planos – ou mesmo frames – clássicos aponta para o potencial da desconstrução como modelo de discurso, mas esta seria apenas uma forma hermética e presunçosa de dizer que o diretor bagunça tudo para mostrar como o espectador acaba se esforçando para encontrar algum significado. Pior: seria um artifício de retórica extremamente desonesto de minha parte que me igualaria ao que o próprio filme faz.
Na verdade, o que O Livro de Imagens faz é acrescentar filtros monocromáticos a cenas famosas ou transformá-las em suas versões em negativo; deformar a razão de aspecto aqui e ali ou alterar o frame rate, acelerando-as ou invertendo o movimento; usando rápidos fades abruptos para pontuá-las e intercalando-as com intertítulos que nada dizem ou mesmo que se entregam a jogos de palavras estúpidos (“REMAKES” vira “RIM(AK)ES”). A mesma abordagem e dada à banda sonora, que surge fora de sincronia ou com vários diálogos empilhados a ponto de não compreenderemos uma palavra do que é dito, empregando também um dos recursos mais irritantes da História do Cinema: um vai-e-volta de falas e músicas, como se as caixas de som da sala estivessem falhando ou seus fios estivessem com mau contato e que dura toda a projeção. Além disso, há passagens que são legendadas e outras não, como se ao cineasta interessasse mais a sonoridade dos diálogos do que seu significado (olhaí outra forma bacaninha de dizer que Godard gosta de ruído). Para completar, o mestre (e, apesar desta última fase, ele é um mestre) parece ter descoberto o conceito de surround outro dia, já que distribui falas e efeitos sem qualquer lógica pelas caixas ao redor da sala de exibição, chegando a apresentar simultaneamente falas diferentes em cantos opostos do espaço – o que, em teoria, pode, sim, ser um recurso interessante como a estratégia apresentada em Adeus à Linguagem de usar o 3D para revelar imagens diferentes dependendo do olho que o espectador mantenha cerrado.
Mas é mesmo o vazio filosófico/temático/ideológico de O Livro de Imagens que desaponta: por mais que insista em citar Malraux, Göethe, Rimbaud e vários outros, Godard salta de uma ideia a outra como uma criança que logo perde o interesse pelas próprias histórias – e quando articula uma ideia completamente, estas são óbvias e superficiais: então os ricos estão destruindo o planeta, Godard? Não me diga. O que revelará a seguir? Que Trump representa a vitória da intolerância?
A impressão que fica é a de que o cineasta faz um esforço consciente para ter seu trabalho vaiado, como se isto servisse para reforçar sua fama de rebelde transgressivo, falhando em identificar a importante diferença entre os verbos irritar e provocar. Exemplos do primeiro há muitos em O Livro de Imagens; do segundo, pouquíssimos.
Sou capaz de apostar que o filme ganhará algum prêmio importante nesta edição do Festival.
15) Não sou grande fã do cineasta chinês Zhangke Jia. Aliás, há três anos, durante o Festival de Cannes, escrevi sobre seu Mountains May Depart com frustração, comentando como o diretor fazia alterações na razão de aspecto sem propósito aparente, investia em saltos na cronologia que serviam apenas para diminuir a força de seus personagens e empregava músicas cafonas para contar uma história de amor piegas.
Pois adivinhem só? Ao escrever sobre aquele filme, eu poderia estar falando sobre Ash Is Purest White, cuja cafonice já começa no título, traz uma introdução em 1.33:1 porque Jia deve achar que isto indica alguma genialidade artística e um casal cuja felicidade ou tristeza não faz qualquer diferença para o público. Investindo a primeira metade da projeção para nos apresentar à protagonista interpretada por Zhao Tao, namorada de um mafioso local vivido por Liao Fan, o filme se concentra nas interações do casal, na admiração que a mulher nutre pelo companheiro e na preocupação que exibe para com o pai. Ao mesmo tempo, alguns atos de violência no submundo do crime tornam a posição do mafioso instável, levando-o a uma emboscada da qual escapa apenas graças à ação da namorada, que é então enviada para a prisão por cinco anos.
E é aqui que Zhangke inclui a inevitável elipse, concentrando-se na determinação da ex-prisioneira para encontrar o amado, que, por sua vez, entrega-se ao mais extremo exemplo de ghosting possível. O resto é o de hábito: confrontos, reconciliações, decepções, longos planos que acompanham conversas em tom monótono e blábláblá. Há um subtema promissor envolvendo a submersão de uma cidade inteira e a fundação de outra que atua como uma metáfora interessante sobre o estado emocional da protagonista (além de funcionar como puro comentário social), mas até esta discussão é descartada em prol de mais pieguice e clichês.
O curioso é que as duas ótimas atuações centrais aos poucos vão superando os problemas de ritmo e a trama óbvia, tornando o destino da heroína relevante para o espectador mesmo que o diretor não pareça realmente preocupado com esta, resultando em uma experiência frustrante, mas jamais entediante.
16) Um festival com a dimensão do de Cannes é um paraíso cinéfilo por vários motivos: a projeção encontra-se entre as melhores do mundo, é possível assistir aos novos trabalhos de grandes autores (ou a estreia de novas vozes) meses antes de chegarem aos cinemas (se chegarem) e há um clima constante de excitação em torno do próprio Cinema. Por outro lado, se há algo que me incomoda terrivelmente é a “tradição” de vaiar certos filmes – uma demonstração imatura, tola, desnecessária e deselegante. Para piorar, é perfeitamente possível antecipar a disposição da plateia antes mesmo que as luzes se apaguem, pois há obras que não têm chance alguma de saírem ilesas do Palácio dos Festivais.
Dois exemplos recentes que me ocorrem são The Last Face, de Sean Penn, que começou a ser ridicularizado pela plateia com menos de um minuto de exibição, e É Apenas o Fim do Mundo, de Xavier Dolan, que foi tão (injustamente) hostilizado pela imprensa que o júri daquele ano não conteve o impulso de premiá-lo como compensação. Infelizmente, o mesmo se repetiu em 2018 com o francês As Filhas do Sol, que inspirou reações desproporcionais de ódio, incluindo gritos de “Imoralidade!” partidos de jornalistas espanhóis logo após o término da sessão (o que não quer dizer nada; os italianos e os espanhóis são particularmente afeitos a manifestações do tipo nestes festivais – e o mesmo grito foi lançado no Festival de Berlim após Mar de Fogo, um documentário que nada tinha de ofensivo).
O pecado de As Filhas do Fogo, ao que parece, foi se atrever a contar uma história sobre guerrilheiras no Curdistão e ter mulheres à frente e atrás das câmeras, o que lhe rendeu acusações de explorar uma tragédia para criar uma obra que, associada ao movimento #MeToo, trouxesse reconhecimento à sua diretora. Em outras palavras: o que estava sendo julgado não era o filme em si, mas suas supostas intenções.
Inspirado em fatos reais, o roteiro (também escrito pela diretora Eva Husson) segue uma jornalista francesa, Mathilde (Emmanuelle Bercot), que se especializou em fazer coberturas de guerras, chegando a perder um olho durante uma de suas missões. Interessada na existência de um pelotão formado exclusivamente por mulheres que foram mantidas como prisioneiras/escravas sexuais pelos extremistas no Curdistão e que, depois de escaparem, juntaram-se à luta contra estes. A líder do grupo, Bahar (Golshifteh Farahani), que ainda testemunhou a morte do marido e teve seu filho levado para ser convertido em um guerrilheiro pelos inimigos, acaba tornando-se o foco da reportagem de Mathilde, que passa a acompanhá-la (e às suas subordinadas) em uma missão especialmente perigosa.
Anunciando suas intenções narrativas desde o princípio ao utilizar a trilha bombástica e tensa composta por Morgan Kibby, As Filhas do Sol conduz o espectador ao pesadelo vivido por aquelas mulheres, desde que um telefonema na madrugada e o latido dos cães anunciam o fim da realidade feliz que levavam até o horror das cidades que projetam fumaças densas em vários pontos indicando sua destruição. Ao mesmo tempo, Eva Husson se dedica a ilustrar a dinâmica do grupo de guerreiras, que se tratam com um carinho e apoio mútuo que seriam impensáveis naquela forma em um pelotão masculino, sugerindo como Bahar é madura e inteligente o bastante para saber que não é necessário tratar as subordinadas como lixo para que se tornem eficientes.
Impiedosas quando necessário, contudo, elas não hesitam em comunicar ao extremista cujo irmão foi morto em batalha que este pereceu nas mãos de uma mulher – o que, segundo a crença primitiva dos inimigos, significa que o sujeito não poderá entrar no “Paraíso”. Do mesmo modo, o canto de guerra que elas cantam é notável pelos versos que combinam características relacionadas ao feminino (como a amamentação) e sua força como guerreiras (“no lugar de leite, sangue cobre a terra”). Neste sentido, a performance de Farahani é instrumental ao combinar os dois lados, permitindo que vejamos sua faceta maternal e a militar. Em contrapartida, o roteiro tropeça feio ao também incluir um aspecto de maternidade mal resolvida na trajetória de Mathilde, o que acaba formando, mesmo que sem intenção, um padrão de “mulheres fortes que ainda assim são definidas pelo papel de mãe”.
Além disso, o roteiro comete um erro ainda mais grave ao adotar uma estrutura de flashbacks para recontar a trajetória de Bahar e como escapou dos extremistas, já que as longas sequências buscam uma tensão que por definição é impossível, já que já sabemos que ela e as companheiras conseguirão. Já a passagem envolvendo uma jornada claustrofóbica por um túnel repleto de minas terrestres é bem mais eficaz, sendo uma pena, portanto, que Husson sinta necessidade de amarrar a história de forma tão redondinha para evitar que o público saia deprimido do cinema (isto, sim, algo que considero merecedor de repreensão).
Mesmo longe de ser um grande filme, porém, As Filhas do Sol não é o tipo de obra que merecia ataques tão pesados. O que só comprova mais uma vez o que todos sabem e que o longa ilustra: que as mulheres são obrigadas a se dedicar muito mais do que os homens para conseguirem um reconhecimento menor do que estes obtêm apenas por fazerem o básico.
15 de Maio de 2018
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