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Festival de Cannes 2018 - Dias #07 e #08 Festivais e Mostras

Dias 07 e 08

26) “Eu tenho um bom pressentimento sobre isso”, diz o jovem Han Solo em certo momento desta prequel, expressando uma sensação contrária aos vários maus pressentimentos anunciados ao longo das duas trilogias (quase três) da saga criada por George Lucas. Este otimismo diz muito sobre a proposta de Solo: Uma História Star Wars, cuja atmosfera leve, de aventura descompromissada e bem-humorada, talvez reflita o fato de este ser o primeiro filme da série a se ver completamente livre dos dramas da família mais problemática da galáxia – dos quais nem Rogue One conseguiu escapar.

Escrito por Lawrence Kasdan (O Império Contra-Ataca, O Retorno de Jedi, O Despertar da Força) ao lado de seu filho Jonathan, o roteiro nos apresenta a Han (Ehrenreich) enquanto este, fugindo de criaturas perigosas, faz ligação direta em um veículo que, mesmo voador, traz o chassi de linhas clássicas que poderia ter pertencido a algum carro saído da década de 50 (o que não deixa de ser apropriado, já que o diretor Ron Howard atuou no Loucuras de Verão de um Luca pré-Star Wars). Obrigado a trabalhar para a impiedosa Lady Proxima (voz da veterana Linda Hunt), o sujeito sonha em fugir daquele planeta com a namorada Qi’Ra (Clarke), mas quando seus planos são frustrados, levando-o a partir sozinho, ele promete retornar com sua própria nova a fim de resgatar a garota. É então que ele conhece uma quadrilha de contrabandistas composta por Tobias Beckett (Harrelson), Val (Newton) e Rio Durant (Favreau), juntando-se a estes para conseguir o dinheiro necessário para cumprir sua promessa. Mas não antes de conhecer um certo wookie, claro.

Menos ambicioso visualmente do que todos os longas anteriores, Solo é um filme cujo design de produção se concentra mais em interiores do que em amplas paisagens alienígenas. Sim, há breves tomadas que estabelecem um planeta-mina ou uma cidade-fábrica, mas, de modo geral, estas são apenas tradicionais establishing shots que logo dão lugar a cantinas escuras, a mesas de um tipo de pôquer espacial, a espaços abafados e poeirentos e – não menos importante – às cabines e corredores de determinadas naves com sobrenome de pássaro. Não que Solo não tenha um momento ou outro de ação em escalas mais amplas, como aquela que envolve um trem girando em trilhos suspensos ao redor de montanhas, mas estas não são a regra e sim a exceção. Aliás, há instantes em que se torna possível até mesmo questionar se o projeto contou com o orçamento habitual da franquia, já que suas criaturas digitais (como o Rio dublado por Jon Favreau) jamais soam convincentes como seres similares vistos em Rogue One, O Despertar da Força e Os Últimos Jedi.

Encarregado da desafiadora tarefa de reviver um personagem icônico que passou a fazer parte do imaginário coletivo, o jovem ator Alden Ehrenreich, hilário em Ave, César!, faz um trabalho mais do que adequado: jamais se preocupando em imitar diretamente a caracterização de Harrison Ford, ele ainda assim inclui pontualmente determinados trejeitos do ator, como o sorriso de canto de boca, o dedo apontado como forma de intimidação e até a postura meio encurvada ao disparar suas armas. Dito isso, sua diferença física do “original” dificulta um pouco a aceitação de estarmos vendo o mesmo personagem, já que seu sorriso lembra mais o de Dennis Quaid e sua voz anasalada está timbres e timbres à distância do tom grave de Ford. Aos poucos, contudo, a natureza jovial desta versão de Han Solo vai se tornando mais familiar mesmo que não totalmente persuasiva (e confesso que gostaria de ter visto o que Anthony Ingruber – que chegou a interpretar um jovem Ford em Adaline – ou Jamie Costa fariam com o papel).

Seja como for, a preocupação primordial de Solo é a de revelar as origens de cada elemento da mitologia em torno do anti-herói-convertido-em-herói, desde a razão por trás de seu sobrenome (eu nem sabia que era necessário haver uma) até as circunstâncias específicas que o levaram a completar o Percurso Kessel em menos de 12 parsecs. Aliás, o diretor Ron Howard chega a exagerar em sua insistência de tratar cada “primeira vez” com reverência absoluta, praticamente parando o filme para ressaltar a primeira vez que Han vê a Millennium Falcon, entra em seu cockpit, toca em seus controles e... pois é, como é possível perceber, a abordagem chega a ter um quê de fetiche em sua solenidade. Já outros elementos (como os dados metálicos) já se encontram presentes desde o princípio, incluindo a cicatriz no queixo de Ford.

Enquanto isso, Joonas Suotamo concebe a movimentação e os trejeitos de Chewbacca de uma forma significativamente diferente daquela criada por Peter Mayhew, o que é curioso, ao passo que Donald Glover absorve os modos descolados e a arrogância de Billy Dee Williams com seu Lando Calrissian. Já Woody Harrelson, sem ter que se preocupar em resgatar as escolhas feitas por outro ator, já que seu personagem é inédito na franquia, rouba a cena na maior parte do tempo, assumindo o papel de mentor ambíguo perfeito para alguém como Han Solo. E se Paul Bettany se torna um dos vilões menos interessantes da série (culpa mais do roteiro do que do ator), Emilia Clarke transforma Qi’ra em uma mulher forte e complexa que revela como a Princesa Leia não foi a primeira experiência de Solo com uma parceira predisposta (corretamente, na maior parte das vezes) a subestimá-lo. Para finalizar, é sempre bom ver Warwick Davis em Star Wars, coberto de próteses ou não – e, como não poderia deixar de ser, Ron Howard mais uma vez encontra uma ponta para seu irmão Clint, o que é divertido por si só. (Ah, sim: não me perguntem por que os Kasdan decidam usar os nomes Beckett e Dryden para os personagens de Harrelson e Betanny; o primeiro pode até encontrar alguma justificativa em sua postura pessimistas, mas o segundo é um mistério).

Mais colorido do que o habitual nesta galáxia muito, muito distante, Solo é uma produção que não teme reproduzir os tons das várias capas de Lando nos cenários e nos demais figurinos e personagens – o que, mais uma vez, é justificável em uma narrativa com propósitos mais juvenis (ainda que uma insinuação sutil sobre o tamanho do pênis de Lando encontre espaço nos diálogos. Sim, você leu corretamente). Além disso, ao saltar entre gêneros clássicos (do western aos heist movies, incluindo uma referência ao seminal O Grande Roubo do Trem), Howard mantém o ritmo e a abordagem sempre fluidos e envolventes, jamais deixando de prender e divertir o espectador.

Usando a Marcha Imperial como música diegética pela primeira vez na franquia (em um vídeo de recrutamento, claro), Solo: A Star Wars Story não embaraça a saga nem subestima os fãs – que provavelmente terão pequenos orgasmos ao notar referências breves e orgânicas a instantes inesquecíveis como a troca de diálogos entre Leia e Solo (“I love you” -“I know.”, aqui com uma variação interessante) e, especialmente, a uma questão que se tornou controversa no que diz respeito à tendência do herói de esperar ou não que seus inimigos atirem primeiro.

E o fato de ter escrito esta última frase com um sorriso de canto de boca me leva a constatar como Solo me encantou bem mais do que o esperado.

 

27) Há três anos, o cineasta Stéphane Brizé e o ator Vincent Lindon tomaram o festival de assalto com seu poderoso O Valor de um Homem, que investigava a luta de um indivíduo demitido depois de décadas de dedicação à empresa para manter a própria dignidade diante da impossibilidade de encontrar um novo emprego. Agora, a dupla retorna a Cannes com uma obra cuja ambição social e política – mesmo que com resultados inferiores – é igualmente admirável.

Desta vez, Lindon interpreta Laurent Amédéo, um líder sindical que, responsável por representar os interesses de mais de mil funcionários de uma fábrica, tenta impedir que esta seja fechada por executivos insatisfeitos com a dimensão dos lucros alcançados. (Percebam: não com possíveis prejuízos, mas com a natureza “modesta” dos lucros.) Ciente de que suas melhores estratégias residem em tentar adiar ao máximo o inevitável, Laurent enfrenta a resistência de alguns dos próprios companheiros que, aos poucos, se sentem exauridos pelas táticas da corporação e não conseguem compreender como a persistência do líder poderá trazer benefícios palpáveis à causa.

Devendo muito à abordagem realista que encontra hoje nos irmãos Dardenne seus principais representantes, At War desenvolve sua narrativa a partir de longas cenas, de elipses simples e sem depender de uma trilha não-diegética, buscando alcançar um caráter estético documental que traz urgência e força à projeção. Enquanto isso, Lindon concebe Laurent como um homem dotado de uma perseverança admirável, mas que muitos enxergam como pura teimosia e orgulho, falhando em perceber que são apenas indivíduos irredutíveis como ele que conseguem provocar rachaduras – mesmo mínimas – em corporações que contam com milhões e milhões de dólares apenas para manter seus trabalhadores derrapando nos tribunais.

Interessado em investigar todos os trâmites da complexa situação legal enfrentada pelos trabalhadores, o roteiro acompanha o protagonista e seus companheiros em reuniões de sindicato, passeatas, reuniões frustrantes com políticos e empresários e, claro, em seus raros momentos de lazer. Aos poucos, o que surge é um retrato enlouquecedor de uma sociedade que parece achar lindo quando o Estado oferece milhões de subsídios a empresários e corporações bilionárias, mas imediatamente protesta quando tenta proteger minimamente o cidadão comum, quando, então, não hesita em condenar o “intervencionismo” que, quando voltado para os milionários, era tão admirável.

Atual e importantíssimo, At War ainda assim acaba soando cansativo não por qualquer equívoco de seus realizadores, mas justamente por retratar tão bem a natureza ingrata da luta daqueles trabalhadores. E se o espectador mal consegue conter duas horas de irritação, imaginem a dedicação e o esforço que a batalha exige na vida real.

 

28) Depois de surgir como uma revelação há quatro anos com seu tenso e fantástico terror Corrente do Mal, o cineasta norte-americano David Robert Mitchell não demonstrou pressa para lançar seu trabalho seguinte, este Under the Silver Lake. Infelizmente, a espera não trouxe boas recompensas para aqueles que passaram a admirá-lo, já que, obcecado por sua própria fascinação pelo noir e por Hollywood (sim, eu disse “obcecado pela própria fascinação”, já que Mitchell parece mais encantado consigo mesmo do que com aquilo que supostamente o interessa), o diretor consegue apenas comprovar como Paul Thomas Anderson foi novamente genial ao extrair um resultado infinitamente superior em uma narrativa com interesses similares em Vício Inerente.

Estrelado por Andrew Garfield, o filme segue Sam, um rapaz que passa os dias se drogando e as noites imaginando cenários improváveis com mulheres lindas e o universo em que habitam. Depois de uma noite intensa com a misteriosa Sarah (Riley Keough), o sujeito descobre que a moça desapareceu e passa a buscá-la em meio às paranoias despertadas pelas drogas, à confusão mental constante e ao pendor para teorias de conspiração.

O propósito de Mitchell é claro: levar o espectador a se divertir da jornada (ou “jornada”) do protagonista ao mesmo tempo em que questiona a possibilidade de que, afinal, haja algum fundo de verdade por trás das ideias insanas do rapaz. Infelizmente, a graça da situação se esgota rapidamente e a tensão em potencial jamais se concretiza. Aspirando a uma atmosfera noir regada por alucinógenos, Under the Silver Lake aos poucos se torna apenas irritante, mesmo que, é preciso reconhecer, Garfield se entregue completamente à lógica (ou falta de) do personagem, abraçando sua tosquice com vigor.

Uma decepção.

 

29) Dogman é um estudo de personagem cujo sucesso reside essencialmente na fisicalidade de seu protagonista e em sua capacidade de projetar fraqueza (e uma certa carência) sem se tornar uma caricatura. Por sorte, este novo trabalho do italiano Matteo Garrone (Gomorra, O Conto dos Contos, Reality) conta com um verdadeiro trunfo na figura de Marcello Fonte, um ator cuja constituição frágil e traços marcantes são ecoados por um dom inquestionável para sugerir dor, medo e confusão.

Dono de uma pequena pet shop especializada em cuidados estéticos para cachorros, o sujeito demonstra um amor autêntico pelos animais, demonstrando uma alegria ao lado dos bichos que é rivalizada apenas por aquela que exibe durante as visitas da filha, que agora mora com sua ex-esposa. No entanto, o cotidiano de tranquilidade de Marcello é frequentemente perturbado pelo brutamontes Simoncino (Edoardo Pesce, cuja imponência física encontra-se no extremo oposto ao do protagonista), que demonstra verdadeiro prazer em intimidar os comerciantes locais – e não demora muito até que ele obrigue o diminuto herói a permitir que use sua loja para entrar na joalheria ao lado, envolvendo-o em um crime com consequências cada vez mais sérias.

Tenso e tocante ao retratar o desespero crescente de Marcello para se livrar do bully e tentar recuperar alguma dose de respeito por parte dos amigos que agora o desprezam, Dogman é um retorno de Garrone à boa forma depois do tropeço (ok, tropecinho) representado por O Conto dos Contos, no qual a magnitude fabulesca da produção parece ter levado o cineasta a sacrificar o cuidado com os personagens – exatamente o contrário do que ocorre aqui, já que a relativamente moderada escala da produção permite que o centro narrativo seja ocupado pelos personagens e sua dinâmica.

Ainda assim, nada disso funcionaria sem Marcello Fonte.

 

30) O thriller erótico tem seus apelos óbvios: há a natureza lúrida da sexualidade de personagens que encontram no prazer o que lhes falta no caráter; há a tentação gráfica da nudez e do toque; e há, claro, a expectativa do mistério e da surpresa. Tudo isso é elevado à enésima potência em Faca no Coração, já que o diretor Yann Gonzalez parece determinado a provar que investir nestas convenções nunca é demais.

Infelizmente, é.

Estrelado por Vanessa Paradis numa performance que poderia ser considerada terrível caso não fosse obviamente o que o diretor exigiu da atriz, o longa traz a francesa como uma cineasta que, especializada em pornografia voltada para o público LGBTQ, encontra-se deprimida desde que a companheira – e montadora de seus filmes – decidiu deixá-la. Determinada a produzir um projeto mais ambicioso, ela é logo frustrada, porém, quando os atores de sua obra começam a ser assassinados, o que ao mesmo tempo a transforma em suspeita e em vítima em potencial.

Fracassando tanto no erotismo quanto no suspense, Faca no Coração aposta no excesso como forma de compensar um roteiro raso e que só não é previsível quando parte para o absurdo completo, eventualmente tornando-se tão entediante que até mesmo os filmes da claramente péssima protagonista representariam uma experiência melhor.

24 de Maio de 2018

Assista também à cobertura diária em vídeo:

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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