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Karim Aïnouz: "A Vida Invisível é um filme sobre a permanência do machismo" Brasil em Cena

O diretor de cinema Karim Aïnouz teve que aprender a fazer a barba sozinho, porque não tinha nenhum homem em sua casa que o pudesse ensinar. Foi criado pela mãe, no Ceará, em uma casa onde ele era o único homem, enquanto o pai, argelino, vivia na França. Sozinho, também, foi do Ceará para Brasília, onde estudou arquitetura. A chegada ao mundo do cinema se deu pela fotografia e por projetos experimentais. O primeiro emprego na área surgiu, em 1989, como assistente de montagem. Exatamente trinta anos depois, Karim subia ao palco do Festival de Cannes para receber o prêmio da mostra "Un certain regard", que já consagrou nomes como Hong Sang-soo e Yórgos Lánthimos. Seu filme "A Vida Invisível", que conta a história de uma família de classe média no Rio de Janeiro dos anos 1950, também foi escolhido como representantes brasileiro no Oscar.

Atualmente morando em Berlim, Karim falou ao Cinema em Cena com exclusividade no início de novembro, em São Paulo, dias antes da estreia nacional de "A Vida Invisível" (a crítica de Pablo Villaça pode ser lida aqui). O momento político brasileiro, pontuado pela ameaça conservadora contra as artes, tem sido abordado pelo diretor com lógica e coragem. "Tivemos dois filmes brasileiros premiados em Cannes. O cinema brasileiro é uma força da nossa cultura e precisa ser respeitado", diz Karim. Quando instigado sobre a necessidade de resistência do cinema nacional, ele não se recolhe à posição de defesa. "A arte é transformadora. Eles que têm que resistir a nós", decreta o diretor que, entre outros temas, falou sobre a criação, em seu filme, de um Rio de Janeiro bem diferente da cidade-cenário daquele período pré-Bossa Nova, do tipo de ator com que gosta de trabalhar e do desafio de, sendo homem, falar sobre machismo e sobre a condição da mulher.

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Cinema em Cena – Rio de Janeiro, anos 1950, o amor, o sorriso e a flor, um cantinho, um violão... "A Vida Invisível" não é nada disso!

Karim Aïnouz – (Risos) Que bom que você está falando assim! 

 

Cinema em Cena – O Rio de “A Vida Invisível” é nublado, abafado, não tem leveza, tom pastel. Pelo contrário: as cores surgem fortes. Você pode explicar, em termos de lentes, de filtros, de iluminação como foi criar tecnicamente esse Rio opressivo do filme?

Karim Ainouz – Essa foi a primeira vez em que eu fiz uma ficção em digital, eu só havia feito um documentário em digital. Tinha uma coisa da película que me interessa muito porque a película nunca o que você fotografa é o que você vê. A película “interpreta” a imagem, por processos químicos, óticos etc. Uma das coisas que me incomodavam no digital, na verdade me incomodam ainda, é o fato de que o digital foi meio inventado para cobrir guerra, notícia, coisa rápida e esse é o histórico dele. Claro que ele tem vários recursos, mas eu queria criar uma sensação de mistério que se tem na película, além dessa característica da interpretação da imagem. Então, a gente fez duas coisas muito simples. Primeiro foi definir qual o tipo de película que me interessa mais? O Super 8 é uma coisa que me interessa muito, porque tem muito mais mistério, menos resolução. Que elemento tem no Super 8? O grão, que é algo muito vivo. Então, eu pensei: o que é o grão no digital? É o noizy, então a gente aumentou muito esse recurso, porque eu queria uma imagem que fosse meio vibrante. Além disso, o noizy é vermelho, não é preto. E eu achei que isso ficaria bonito, justamente para desconstruir o conceito de história de época, que normalmente é meio fofa, meio doce, e esse filme é muito cruel. A imagem tinha que trazer isso.

 

Cinema em Cena – E a outra coisa?

Karim Aïnouz – E a outra coisa foi que a gente filmou com uma Alexa Mini e para mim era muito importante esquecer essa minha implicância com o digital e entender que grande parte do que se tem na imagem vem da ótica. Tinha que ter uma lente que desse conta de fazer isso de um jeito a criar essa imagem com mistério. Eu queria muito filmar em anamórfico. O filme não era para ser em scope, era para ser um filme em 1,85, mas eu queria filmar em anamórfico e recortar para 1,85. Eu queria tirar essa ideia de um filme de época como algo muito pomposo. Pegamos umas lentes russas chamadas LOMO, lentes fixas que tinham sido reformadas, então elas estavam meio descolimadas, tinham umas falhas na hora em que o flare entra e como eu estava muito atrás dessa organicidade, dessa ótica que não era perfeita, foi o caminho.

Julia Stocker (Guida) e Carol Duarte (Eurídice)

 

Cinema em Cena – Teve um trabalho especial também em termos de luz?

Karim Aïnouz – Teve. Nós trabalhamos muito com um desenho de luz que não fosse uma luz naturalista. Usamos muita gelatina. Acho que usamos o estoque inteiro de gelatina do Rio de Janeiro durante as filmagens! A gente acendia o HMI e de repente pensava: por que não jogar um roxo aqui nessa imagem? Então, também tinha uma opção de narrar com a luz e com a cor da luz.

 

Cinema em Cena – E isso também tem a ver com a intensidade das cores, que é sempre alta no filme?

Karim Aïnouz – Sim, porque eu queria que fosse um filme muito vivo, muito sobre o corpo, a experiência física daquelas mulheres. De ter filho, de casar, e de ter lua de mel. É um filme sobre a condição feminina naquele momento, sobre o machismo naquele momento histórico. Não é que seja um filme cruel, mas ele retrata uma realidade cruel, de personagens vivendo situações muito cruéis. Mas era importante que o filme fizesse isso com uma certa graça. Para isso, eu me inspirei muito em melodramas de família. Em geral, eles são muito coloridos, não é que são agradáveis de ver, mas são sedutores na sua imagem, e ao mesmo tempo trazem ali um fígado que está doendo, algo que está ardendo.

Júlia: alta voltagem em um filme de cores quentes

Cinema em Cena – Tem alguma obra que tenha sido referência para “A Vida Invisível”?
Karim Aïnouz – Tem uma muito clara, “Imitação da Vida”, do Douglas Sirk, de 1959. E também “O medo consome a alma”, que é um filme do Rainer Werner Fassbinder, de 1974, no qual eles usam muita cor, muita luz e desenho de luz como um elemento dramatúrgico. Isso foi muito importante para mim, para resolver a questão: como falar de um tema tão cruel de uma maneira tão sedutora?

 

Cinema em Cena – Como você trabalhou com os atores em relação a esse roteiro? Teve espaço para improviso?

Karim Aïnouz – Nós trabalhamos muito em cima do roteiro, não como repetição, mas como uma procura. A gente vai para a sala de ensaio e geralmente eu proponho um exercício físico para a cena, que não tem necessariamente a ver com o diálogo. Se é uma cena sobre conflito, eu proponho uma cena de briga. Se é uma cena de carinho, eu proponho uma cena de carícia, e por aí vai. Eu leio o roteiro em voz alta e os atores e atrizes jogam com aquelas situações. Eu procuro evitar que os atores decorem as falas, porque meu interesse maior é que eles sintam as falas. Muitas vezes, o que eu faço é um relatório de ensaio e vejo as falas que surgiram no fluxo e trago para dentro do roteiro, fazendo um roteiro de filmagem, mas sempre deixando espaço para o que pode acontecer no improviso. Não sou o tipo de diretor que improvisa sem parar, acho que tem que ter um desenho para seguir, mas não vou para o set para cumprir uma cena. Vou para descobrir a cena.

Antenor (Gregório Duvivier) e Carol Duarte (Eurídice): machismo estrutural

 

Cinema em Cena – E onde entram, nesse contexto, as características e experiências de cada ator?

Karim Aïnouz – Tento trazer isso para a dramaturgia. Sempre tento trazer o que o ator tem e como ele pode se encaixar dentro dessa história. Por exemplo, a Julia (Stockler) tem uma voltagem muito alta, pulava de um lado para outro. Como trazer isso para o personagem da Guida? Isso não estava no texto, mas eu nunca tento apagar o ator. Eu acho que o ator tem uma matéria viva e quero usar isso. Que tipo de ator não me interessa? Nicole Kidman, por exemplo: aquela atriz que pode fazer qualquer papel, quase uma folha em branco. Para mim, não pode ser uma folha em branco. É como locação: eu acho que eu não conseguiria filmar em um estúdio. É estranho para mim. “A Vida Invisível” foi todo filmado em locação e, talvez por ter vindo da arquitetura, eu tenho muito forte essa relação com o lugar. Tem que ter uma cor, um cheiro. A casa da Eurídice, por exemplo. Tínhamos uma casa ótima antes, mas quando entrei na casa que terminou sendo escolhida, fui para o quintal – e nem tinha nenhuma cena de quintal no roteiro! – mas eu vi aquele quintal e falei que aquilo era um presente, essas plantas, esse vento, esses corredores, essa arquitetura que a gente não entende direito, e assim escolhi aquela casa, por conta de todas essas sensações que ela provocava.

 

Cinema em Cena – Você definiu “A Vida Invisível” não como um filme “de época”, mas sobre uma época. O que isso significa?

Karim Aïnouz – Eu acho que o filme de época vira um gênero, onde o figurino e o cenário são mais importantes que a dramaturgia, e eu queria evitar um pouco isso porque eu acho que isso é um ornamento. E a outra coisa é que eu sempre aproveito o fato de não estar fazendo um filme do momento atual para estudar o tempo a que ele se refere, então eu sempre estudo muito coisas que a gente não estudaria numa sala de escola, que é a vida privada. Nesse filme, eu queria entender que tipo de luz era usada para iluminar as casas de classe média no Rio de Janeiro. Aí eu fui na Light, fiz uma pesquisa para entender se era tungstênio ou se era outro tipo de filamento, e isso calca tudo com muita propriedade. Os diálogos médicos são transcrições de fontes primárias sobre medicina, medicina da mulher, ginecologia, psiquiatria. O termo PMD, de psicose maníaco-depressiva, que aparece no filme, era utilizado na época, hoje se usa bipolar. Isso tudo foi pesquisa.

 

Cinema em Cena – Mas isso não tem uma preocupação com verossimilhança, tem?

Karim Aïnouz – Não, mas em calcar tudo com muita propriedade. Aquela era busca pelas paletas da minha tela. E, ao mesmo tempo, ter a liberdade de mudar coisas. Teve uma situação em que eu achei uma determinada cena muito tristonha, e o diretor de arte trouxe uma cortina azul, de um tecido sintético, que nunca se usaria naquela época, mas trazia a cor que a gente estava buscando e justamente por ser um filme sobre uma época, não um filme “de época”, não vi problema em usar, porque o que me interessava era o efeito, era criar aquela atmosfera.

 

Cinema em Cena – Este é um filme sobre machismo e você é um homem. Como você se posicionou para falar sobre esse tema?

Karim Aïnouz – Como homem. Não posso falar como mulher, mas como um homem olhando a situação da sua perspectiva. Me interessa muito fazer um filme sobre a permanência do machismo, esses personagens estanques, que não mudam, e essas outras personagens que estão em convulsão completa, essas mulheres tentando resistir a qualquer custo. Eu acho que esse filme é feito por um homem, olhando homens e mulheres, com a percepção de que os homens são os antagonistas. Outra coisa que eu acho importante falar é que, mesmo que eu nunca possa me colocar no lugar de uma mulher, tem algo que me é muito familiar, que é o universo doméstico feminino, pela maneira como eu fui criado, pelo universo que eu habitei desde que eu nasci até os 20 anos de idade, que é quando eu mudo do Ceará para Brasília. Ninguém nunca me ensinou a fazer a barba, porque eu era o filho único de uma casa onde só havia mulheres. Claro que eu tenho mais familiaridade com o ambiente feminino do que com o masculino. Eu era aquele menino que não tinha muito o que falar em grupos de homens, porque eram conversas que não me interessavam, o negócio do futebol etc. Eu tenho familiaridade com o universo feminino, mas eu falo do ponto de vista do homem. Tanto é que esse filme pega a mesma matéria – a saga de uma família durante uma determinada época – do livro, escrito por uma mulher, e são visões diferentes, porque é a visão de uma mulher, no livro, e é a visão de um homem, no filme.

 

Cinema em Cena – E resultou em uma obra muito diferente do livro, não?

Karim Aïnouz – São dois objetos muito diferentes, e eu acho que isso tem a ver com o lugar de fala. E tem a ver com uma coisa que eu acho fascinante que são vivências que eu tive dentro da minha casa com o masculino. Nunca foi uma casa onde houve agressão, mas era a dor da ausência, do fato de uma mulher ter que sustentar uma casa sozinha, em um lugar onde isso era adverso, e eu me interessei muito por esse lugar, que estava no livro, mas com pinceladas de leveza e humor, que eu acho absolutamente legítimo, porque é um jeito de olhar. Mas, para mim, era muito importante falar da dor que a minha mãe sentia, por exemplo. O lugar de acesso que é muito diferente, que eu acho que tem a ver não só com lugar de fala no sentido essencial de identidade, mas com experiência e contexto.

Gregório Duvivier (Antenor): truculência e vulnerabilidade

Cinema em Cena – O personagem Antenor (Gregório Duvivier) é ao mesmo tempo truculento e frágil...

Karim Aïnouz – Patético...

 

Cinema em Cena – Sua vivência nesse universo feminino ajudou a construir a humanidade desse personagem?

Karim Aïnouz – Ajudou muito! Quando estávamos construindo o projeto e o apresentamos em alguns editais, algumas vezes o filme foi visto como “androfóbico”. E eu fiquei com medo que isso pudesse ser usado contra o projeto político do filme, como se as atitudes das mulheres tivessem sentido por serem dirigidas contra homens construídos para serem maus. Então, eu encarei esse desafio de construir personagens que são, de fato, tóxicos, extremamente tóxicos, mas que são produtos do tempo deles. Nenhum homem nasceu machão. A gente nasce macho, mas o machão é um ser construído, e para mim era muito importante entender como essa construção se dava. No caso do Gregório, eu tentei fazer isso com uma certa ironia. Ele é menor que a Carol (Duarte), tem um jeito de garoto e uma característica própria: se eu quiser apertar um botãozinho, ele se torna muito engraçado. Como pode um menino daquele ser chefe de família, dizer o que a mulher faz ou não faz? Então, eu queria traduzir essa dimensão do que o machismo é capaz de fazer de tóxico nas relações. Seria um filme completamente diferente se o Antenor fosse alto, se ele falasse grosso. Chegamos a filmar uma cena em que ele é violento com ela, e eu não podia ter essa cena no filme, porque eu desqualificaria qualquer coisa pela qual ela está passando.

 

Cinema em Cena – Ainda que a noite de núpcias seja de fato um estupro, a sociedade entendia aquilo como normal.

Karim Aïnouz – Exatamente. Era uma violência naturalizada, como a mancha de óleo no Nordeste é naturalizada, queimada na Amazônia é naturalizada. O machismo era naturalizado: uma mulher tinha que passar o resto da vida com o mesmo homem, não podia viajar sozinha. Não podia porque não podia. Na escolha do Antenor, não sei bem por que, pensei muito no Nelson Rodrigues, acho que porque ele tinha essa contradição: uma compreensão profunda do humano, mas um homem alfa, chefe de família, só que ao mesmo tempo tinha algo muito vulnerável, e o Antenor tem isso. Isso tudo para mim é muito chocante: como a gente permite que uma pessoa daquela domine outra desse jeito? Isso me remete a uma conversa que eu tive uma vez, com uma amiga da Índia. Estávamos em Londres e ela me perguntou: ‘Karim, não é inacreditável que o inglês, esse povo branquelo, que mal consegue sair no Sol, tenha conquistado a Índia?’ Pela força, eles dominaram uma cultura milenar. Foi mais ou menos nessa linha que eu pensei o personagem do Antenor. Isso é estrutural: não era ele, particularmente, a sociedaede era assim.

Eurídice (Carol Duarte): a música como passaporte para o sonho

Cinema em Cena – Em dado momento, Eurídice refere-se ao ato de tocar piano dizendo: “quando eu toco, eu desapareço”. O filme é sobre machismo, mas também é sobre o fazer artístico e o quanto ele é transformador?

Karim Aïnouz – Engraçado você perguntar isso, porque essa foi a única frase de doze versões do roteiro que nunca mudou. Acho que é uma frase-bússola: porque ali ela pode desaparecer, ser invisível, ser quem ela é, sonhar, e ao mesmo tempo fugir. E faz isso através da música, que é abstrata, não é matéria, é algo fluido. Muitas coisas mudaram no filme, refizemos o roteiro muitas vezes, mas sem essa frase, o filme não ficaria de pé.

20/11/2019

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Sobre o autor:

Alessandra Alves é jornalista com múltiplos interesses. Além do amor pelo cinema, pela música e pela literatura, também atua no jornalismo esportivo e na comunicação corporativa. Paulistana, corintiana, feminista e inimiga de fascistas, assina a coluna "Brasil em Cena", de entrevistas e reportagens sobre o cinema brasileiro contemporâneo.
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