Eu amo festivais de cinema. Amo a atmosfera que criam, as conversas que despertam, as oportunidades que apresentam para que conheçamos novas linguagens, estéticas e tendências culturais. Gosto também de ir descobrindo as personalidades de cada evento, que são moldadas não só pelas pessoas que realizam as curadorias, mas, frequentemente, pelas cidades que os hospedam – e um dos contrastes que mais curto é aquele que ocorre quando o Festival do Rio e a Mostra de São Paulo quase se sobrepõem, já que, embora seja cansativo saltar de um direto para o outro, sempre acho fascinante notar como até os papos entre sessões tendem a ter um caráter diferente.
Não à toa, uma das coisas das quais mais tenho sentido falta nesta pandemia são justamente estas viagens que promovem uma imersão completa no Cinema e durante as quais consigo até mesmo me desligar das notícias políticas que se tornaram tão alarmantes nos últimos anos, atravessando os dias correndo de uma sessão para outra e correndo para o hotel no fim da noite para escrever antes de dormir quatro ou cinco horas a fim de reiniciar tudo na manhã seguinte. (Em Cannes, as primeiras sessões chegam a começar às 8h30 da manhã, enquanto as últimas podem atravessar a meia-noite.)
Com a impossibilidade de realizar os eventos presencialmente, porém, os organizadores de vários festivais têm migrado para versões online que têm prós e contras: entre as perdas, estão a experiência inigualável de assistir a um filme ao lado de centenas de outros amantes da Sétima Arte em uma tela grande e as condições particulares que tornam a projeção numa sala de exibição tão mais eficaz emocional e psicologicamente do que ver um longa em casa (algo que discuti há muito tempo nesse vídeo); entre as vantagens, a possibilidade de que pessoas em outras cidades também possam participar e conhecer produções que dificilmente chegariam comercialmente ao Brasil.
Recentemente, vi alguns dos documentários apresentados no É Tudo Verdade (embora, em função de questões pessoais, bem menos do que eu gostaria) e agora estou acompanhando um festival que já visitei algumas vezes em Curitiba, chegando a fazer parte de seu júri oficial: o Olhar de Cinema. (Já falei sobre meu carinho pelo Olhar de Cinema aqui.)
Com sessões oferecidas por apenas cinco reais (mas atenção: os ingressos esgotam, já que os distribuidores limitam a quantidade de espectadores por “projeção”), a programação completa pode ser conferida aqui.
Aliás, vi o documentário Fakir, de Helena Ignez, que – como o título indica – aborda as atuações de faquires e faquiresas brasileiros em meados do século 20. Já de imediato, o tema do longa desperta interesse ao resgatar figuras praticamente esquecidas em nossa história cultural, seja pelo preconceito diante de sua Arte, seja pelo puro descaso com que nosso país tende a tratar seus artistas.
Baseado em uma pesquisa de imagens e registros notável, o filme nos apresenta às trajetórias de indivíduos como Silki, Lookan e Urbano, que, mesmo se especializando em áreas diferentes do faquirismo (pisar em brasas, crucificação, perfuração do rosto com longos alfinetes), competiam no esforço do jejum, disputando recordes mundiais com artistas indianos para estabelecer quem seria capaz de permanecer mais tempo lacrado em caixas de vidro, dormindo sobre pregos e cercado de serpentes. Estas competições ocorriam em público, com farta cobertura da imprensa e venda de ingressos para que os espectadores pudessem ver de perto os homens que definhavam por períodos que podiam passar dos 100 dias.
Com uma narração formal que não demonstra medo de flertar com o dramático e com vinhetas magistralmente fotografadas por Toni Nogueira e que trazem artistas veteranas recriando de modo estilizado suas antigas performances, Fakir encontra de fato seu centro narrativo ao se concentrar nas mulheres que passaram a protagonizar suas próprias competições de jejum e que eram geralmente apresentadas pela mídia como belezas exóticas que misteriosamente se mantinham atraentes mesmo depois de semanas trancafiadas ao lado de cobras em suas prisões de “cristal”. Vitimadas por um machismo inequívoco, elas tinham que se apresentar às delegacias das cidades nas quais iriam se apresentar, sendo frequentemente fichadas como “meretrizes” – o que representava apenas o início de seus problemas, já que eram também importunadas pelo público (quase todo composto por homens) que visitava o local das apresentações e as assediavam sem a intervenção de seguranças e policiais.
Porém, em vez de tratá-las apenas como um conjunto de nomes do passado, a cineasta Helena Ignez transforma cada uma daquelas pessoas em protagonista de seu próprio trecho do documentário, permitindo que conheçamos um pouco mais sobre as motivações, experiências e dificuldades de faquiresas como Rossana, Sandra, Mara e Verinha (destas, uma – Mara - viria a ser assassinada pelo marido, o também faquir Lookan, e outra – Rossana - cometeria suicídio aos 26 anos, tendo sua morte atribuída pelos jornais a “coisas do coração”). Além disso, o filme dedica um bom tempo à valente baiana Suzy King, que enfrentou sua cota de tragédias e morreu esquecida nos Estados Unidos, e, claro, a Luz del Fuego, que, embora não tenha sido faquireza, foi vítima constante dos ataques de conservadores ao longo da carreira por não envergonhar-se do próprio corpo e por defender, assim, o naturalismo, atuando também na luta contra o machismo institucional de uma sociedade que sempre enxergou o corpo e a inteligência femininos como ameaça (ela também morreria assassinada anos depois).
Sem ignorar a triste ironia de homens e mulheres que, num país tomado pela fome, deixavam de comer para que pudessem fazê-lo, Fakir é um filme triste pelas circunstâncias dos personagens que retrata, mas nobre por finalmente oferecer a estes o tratamento digno que sempre mereceram.
10 de Outubro de 2020
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