DIA 02
Antes de escrever sobre os filmes de hoje, aproveito para lembrar que, em função da pandemia, a Mostra de São Paulo está acontecendo inteiramente online este ano e que todos os filmes podem ser vistos aqui até o dia 5 de novembro.
05) Condenar o amor é coisa de sociopata. Se dois adultos se amam e se entregam consensualmente um ao outro, isto não é da conta de absolutamente ninguém; em um mundo cada vez mais tomado pelo ódio, sentimentos positivos, nobres, inspiradores, devem ser aplaudidos, não condenados e perseguidos. Parece óbvio, não? Quem poderia ler o início deste parágrafo e discordar, já que tudo ali deveria ser lugar-comum?
Infelizmente, muita gente. Com duas décadas já passadas desde o início do século 21, a perseguição a membros da comunidade LGBTQ+ segue ocorrendo de maneira sistemática, podendo ser constatada através das estatísticas de violência que vão da agressão ao assassinato pelos meios mais bárbaros imagináveis. Podemos, claro, discutir quais são os principais motores por trás da homofobia e da transfobia (religião, a extrema-direita, frustração sexual, etc), mas não há debate quanto aos seus efeitos e quanto ao fato de que países liderados por intolerantes veem um crescimento marcante da violência contra minorias.
Tomemos, como exemplo, o país que dá título ao documentário Welcome to Chechnya: governada por Ramzan Kadyrov, que foi chefe da milícia de seu pai (que também ocupou a presidência até ser assassinado em 2004), a Chechênia vem promovendo detenções em massa de homossexuais, com direito a campos de concentração e tortura para que “denunciem” outros membros da comunidade LGBTQ+ em um verdadeiro mccarthismo sexual. Como se não bastasse, o próprio Kadyrov já declarou, em várias entrevistas, que “não condenaria familiares que eliminassem um parente gay” – o que, segundo organizações de direitos humanos, teria de fato causado um aumento no número de “assassinatos em nome da honra” no país.
Não é surpresa, portanto, que o diretor David France (responsável pelo importante How to Survive a Plague) se preocupe em manter o anonimato da maior parte das pessoas vistas neste seu novo documentário, já que identificá-las poderia resultar em tragédia. No entanto, em vez de borrar seus rostos, como é o costume nestes casos, o cineasta decidiu usar a recente tecnologia de deepfake para substituir digitalmente as faces daqueles indivíduos – um recurso admirável por ao mesmo tempo proteger os participantes e evitar despersonalizá-los, já que, mesmo sendo importante, cobrir o rosto de vítimas com borrões ou sombras é algo que acaba por vitimizá-las pela segunda vez ao eliminar suas identidades.
Além disso, France inclui, ao longo da projeção, vídeos “interceptados” que expõem atos pavorosos de violência cometidos contra homossexuais – e se há quem tenha condenado a inclusão deste material como algo eticamente reprovável por “expor as vítimas” (como li em uma rede social), aponto apenas que, além de não identificá-las, o filme reconhece que o choque é uma das armas mais poderosas contra o preconceito, já que força o intolerante a encarar as consequências reais de seu ódio. Uma coisa é afirmar que um presidente homofóbico dá liberdade para que os cidadãos ataquem gays; outra é ver alguém sendo perseguido no meio da rua, em plena luz do dia, por uma horda de fascistas (e a prova de quem nem a fama serve como proteção é o desaparecimento ainda não esclarecido do cantor Zelim Bakaev, visto pela última vez sendo levado... por policiais chechenos).
Antes, porém, que nos sintamos orgulhosos por não sermos a Chechênia, é bom lembrar que o Brasil é o país com o maior número de assassinato de transsexuais (além disso, estima-se que haja por aqui uma morte por homofobia a cada 23 horas). E estes dados não incluem os suicídios relacionados à homofobia e à transfobia.
Mas Welcome to Chechnya não é um documentário que causa apenas desolação; há também esperança e inspiração na história de um rapaz que, depois de torturado pela polícia por ser gay, recebe o apoio de uma organização formada para proteger e tirar vítimas como ele da Chechênia (e cujo trabalho serve de guia para o filme) – e cuja mãe, inicialmente resistente à homossexualidade do filho, passa a demonstrar orgulho incontido de sua coragem ao expor os crimes de ódio cometidos no país. (O modo como sua identidade é revelada, por sinal, é algo que me causou arrepios mesmo tendo antecipado na metade do longa como ocorreria, tamanha sua força.)
Nenhuma inspiração, contudo, é tão eficiente para desestimular a homofobia e a transfobia quanto a punição àqueles que as praticam através de atos ou palavras. No dia em que escrevo este texto, por exemplo, um apresentador da tevê aberta responsável por um daqueles programas policialescos que corrompem a alma apenas por existirem fez uma declaração absurda ao basicamente tratar homossexualidade e pedofilia como a mesma coisa, sugerindo que o movimento LGBTQ+ está “destruindo a família brasileira”. (O fim da família brasileira é um tema recorrente da direita; as nossas estão sendo “destruídas” há décadas pelos movimentos progressistas.) Pois não apenas nenhum tipo de punição ou multa será imposta à emissora como uma hashtag estimulada pela fala odiosa viralizou no Twitter, recompensando o sujeito por sua falta de caráter.
A Chechênia, amigos, é aqui.
06) Em certo momento do documentário 17 Quadras, vemos a vitrine de uma gráfica/papelaria trazendo modelos de cartões, banners, panfletos e camisas ali produzidos – uma imagem que poderia passar despercebida se não fosse por um detalhe: todos são de memoriais dedicados a jovens negros assassinados.
Montado pelo diretor Davy Rothbart a partir de registros feitos ao longo de 20 anos pelos membros da família Sanford, cujo caçula, Emmanuel Durant, ele conheceu em uma quadra de basquete pública em Washington, o filme transforma as mais de mil horas gravadas pelo próprio Emmanuel e por seus irmãos Akil “Smurf” e Denice em um testemunho triste sobre como os jovens negros parecem fadados a morrer precocemente em função do racismo sistêmico, de suas condições econômico-sociais, da falta de oportunidade reais e, claro, da violência policial. Uma realidade na qual a execução de negros é obra da polícia ou por esta ignorada.
Usando as câmeras presenteadas pelo cineasta, a família – e Emmanuel em particular – eterniza passagens corriqueiras do cotidiano, como brigas entre irmãos, e outras mais impactantes, como o nascimento de novos integrantes, formaturas e, infelizmente, tragédias. Iniciando em 1999 e concluindo duas décadas depois, o filme provoca um efeito similar ao de Boyhood ao permitir que vejamos crianças se tornando adultos, filhas se tornando mães e sobrinhos repetindo histórias antigas sobre os tios que alcançam um tom quase folclórico, mas que testemunhamos quando ocorreram de fato.
Ainda mais comovente, no entanto, é acompanhar os efeitos do tempo e da vida sobre aquelas pessoas: quando vemos a matriarca Sheryl em um breve prólogo em 2018, por exemplo, encontramos uma mulher de voz infantilizada, pele marcada, andar trôpego e modos confusos – e, assim, quando voltamos vinte anos e a descobrimos alerta, bonita e feliz, o contraste representa um choque por sabermos de antemão o estrago que os anos seguintes trarão. De certo modo, aliás, 17 Quadras é um filme não só sobre as desigualdades brutais de nossa sociedade e suas consequências, mas também, em um nível particular, sobre arrependimentos e como todos tendemos a fantasiar sobre as vidas que não tivemos enquanto destruímos ou ignoramos a que temos.
A alma do longa, porém, reside mesmo em Emmanuel, que, da criança divertida e espontânea que fala sobre como será seu futuro (“Vou ganhar dois mil dólares por mês e morar numa mansão!”), se torna um jovem adulto gentil, dedicado à família e que mostra orgulhoso o diploma de formatura ao avô enquanto anuncia os planos de se tornar bombeiro. Carinhoso com o sobrinho Justin (que, mais tarde, também conquistará o espectador com seus modos doces) e paciente com a inconstância da mãe, foi Emmanuel quem inicialmente atraiu a atenção de Davy Rothbart e que aqui desperta nosso carinho.
E é através dele que passamos também a amar – sim, amar – cada membro daquela família e a torcer para que superem todos os obstáculos que a sociedade, a vida e seus demônios pessoais colocaram em seus caminhos e sejam felizes. Ou, nos casos em que isto já não é possível, que ao menos suas memórias sejam preservadas para que saibamos que existiram, sonharam e deixaram alguma marca no mundo.
07) A primeira coisa que notamos em João são seus olhos. Grandes e expressivos, eles denunciam um tumulto interno que permaneceria oculto se não vazasse através de seu olhar que combina raiva, desafio e dor. Por alguns momentos, contudo, João parece se esquecer de tudo que o atormenta para se concentrar na tarefa de libertar um boi magro que encontra emaranhado em uma cerca de arame, permitindo que notemos também a natureza gentil que as condições áridas de sua vida aparentam sufocar. E quando seu pai imediatamente o culpa pelo estado do animal, começamos a compreender estas condições.
Apelidado de “Filho de Boi” pelas crianças (na verdade, por toda a população) da pequena Tamboril, João tem uma relação tensa com o pai, que, vivido por Luiz Carlos Vasconcelos como um homem de poucas e ásperas palavras, parece estar sempre prestes a agredi-lo fisicamente, segurando-se apenas por uma hesitação que sugere... culpa? Afeto certamente não é a razão, já que o sujeito desperta a impressão de estar emocionalmente seco e de encarar o filho como uma lembrança daquilo que o drenou.
Dirigido pelo estreante em longas Haroldo Borges e fotografado por Remo Albornoz com uma câmera inquieta, nervosa, Filho de Boi é um filme de registro neo-realista que emprega não-atores em praticamente todos os papeis (além de Vasconcelos, o único outro profissional é o excelente Vinicius Bustani), usa as locações áridas e pobres como um comentário econômico-social que dispensa anúncio e investe num desenho de som que mergulha o público naquela realidade através do balir das cabras, do sopro do vento, dos badalos nos pescoços dos animais e, frequentemente, do silêncio – que acaba por ser quebrado pela música e pela agitação do humilde circo de lona rasgada que chega à cidade e sacode o protagonista ao permitir que sonhe com uma fuga de seu triste cotidiano.
Vivido pelo estreante João Pedro Dias em uma daquelas estreias que, num mundo ideal, resultariam numa carreira duradoura, o personagem-título (desculpa, João) é um pré-adolescente cuja introspecção soa mais como resultado da falta de carinho e estímulo externo do que como algo típico de seu temperamento. Visto de forma recorrente com o olhar perdido, como quem pensa na própria vida sem ter muito com o que preencher estes pensamentos, o garoto têm tanta prática em engolir suas dores que é impossível não ficar impressionado com a firmeza que mantém em sua expressão ao ser insultado pelas crianças locais ou ao ser agressivamente repreendido pelo pai, contraindo os lábios para impedir o choro mesmo que seus olhos não tenham o mesmo sucesso ao conter as lágrimas. Em contrapartida, quando João se permite sorrir (inicialmente, com uma contração quase imperceptível dos lábios; mais tarde, com todos os dentes à mostra), esta é uma visão tão inesperada que o espectador não consegue conter o seu próprio.
Sem se render a soluções fáceis e artificiais que diminuam tudo que construiu ao longo da narrativa, Filho de Boi é uma obra que respeita demais seus personagens para traí-los ou insultá-los com hollywoodianismos que poderiam até ser mais satisfatórios de imediato, mas que tornariam o filme vazio e esquecível. Em vez disso, o roteiro de Haroldo Borges e Paula Gomes demonstra que a resistência pode ser um sonho tão reconfortante quanto a fuga.
E é neste momento que notamos mais um sentimento no olhar de João: determinação.
27 de Outubro de 2020
(Leia também sobre os filmes do dia #01.)
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