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Festival de Cannes 2022 - Dia #06 Festivais e Mostras

Dia 06

17) Os três últimos filmes do sueco Ruben Östlund têm algo importante em comum: ambientados totalmente (ou em sua maior parte) em espaços bastante específicos e limitados (os alpes franceses, um museu de Estocolmo, um iate de luxo/uma ilha), Força Maior, The Square: A Arte da Discórdia e Triângulo da Tristeza empregam estes espaços para delimitar microcosmos sociais e analisar o comportamento, as expectativas e as posições de seus personagens nestes contextos. Não que o objetivo do cineasta seja criar algum tratado sociológico, já que, extrapolações à parte, seus interesses principais residem no ridículo da natureza humana, no sentimento de autoimportância que muitas de suas criações exibem e na sátira.

Adotando o estilo de uma metralhadora giratória, o roteiro escrito pelo próprio Östlund inicia seu massacre pelo mundo da moda, apresentando-nos ao modelo Carl (Harris Dickinson), que, onipresente em capas de revistas apenas dois anos antes, agora experimenta os efeitos de uma indústria que cospe “ícones” com a mesma facilidade com que os cria, vendo-se forçado a se submeter a audições para marcas que há pouco o considerariam caro demais para suas campanhas (um lembrete de que ícones instantâneos são menos “ícones” do que produtos com tempo de validade reduzido). O mais interessante desta introdução, contudo, é a maneira irreverente com que o diretor aponta o contraste entre o marketing de marcas populares e aquelas mais caras: enquanto as primeiras habitualmente trazem modelos sorridentes, as últimas praticamente esperam que seus manequins expressem em sua postura um quase desprezo por seus consumidores, numa sugestão de que parte do impulso da compra reside talvez num desejo inconsciente de conquistar o respeito dos oráculos da moda (leia-se: dos que ditam as regras da alta sociedade).

Numa sociedade na qual a imagem é mais importante do que a realidade e este “respeito” está diretamente associado ao glamour exibido nas redes sociais (no universo digital, a máxima de O Homem que Matou o Facínora seria “para que a lenda se torne fato, instagrame a lenda”), Carl é também um mero personagem secundário na existência virtual da namorada, a influencer Yaya (Charlbi Dean), que ostenta viagens que não tem condições de fazer, pratos que não pode degustar e roupas pelas quais não pode pagar enquanto convence seus seguidores de que leva uma vida que, como certamente sabe, deixará de existir até mesmo como fantasia caso suas fotos deixem de gerar o engajamento necessário – e neste sentido é irônico constatar como ela se esforça para “produzir conteúdo” (suspiro) continuamente para manter um cotidiano que não é o seu, como se tivesse passado a acreditar na ficção apresentada em seu próprio perfil no Instagram.

Mestre em criar desconforto no espectador ao expor a hipocrisia dos personagens que acompanha, Östlund também emprega o jovem casal em uma longa sequência na qual, sob o pretexto de desafiar convenções de gênero, Carl expõe sua frustração com o teatro criado por Yaya sempre que chega o momento de pagar a conta ao fim de uma refeição, sendo patente como seus protestos de que a discussão “não é sobre dinheiro” nada mais é do que sobre dinheiro e que sua defesa da “igualdade” não ocorreria caso seu cartão de crédito não estivesse sobrecarregado. É notável, diga-se de passagem, como o realizador acentua a patetice e o incômodo da situação através de recursos como o som do limpador de para-brisas durante o trajeto até o hotel e de como, logo depois, a tentativa de Carl de apresentar seus argumentos de forma convincente é sabotada pelas portas do elevador que insistem em interromper seu discurso.

Porém, por mais eficiente que seja este primeiro ato de O Triângulo da Tristeza, a base temática do filme é de fato estabelecida no segundo, que ocorre durante o luxuoso (em um contexto de decadência ocidental) cruzeiro no qual somos apresentados a vários outros personagens – ou melhor: tipos – que serão utilizados para debater as obsessões do cineasta: o oligarca russo Dimitry (Zlato Burić), o desenvolvedor de apps Jarmo (Henrik Dorsin), a faxineira Abigail (Dolly De Leon) e a chefe desta, Paula (Vicki Berlin) – além do capitão Thomas (Woody Harrelson) e dos já mencionados Carl e Yaya. Explorando o absurdo intrínseco ao simples conceito deste tipo de produto turístico (centenas de pessoas pagando pequenas fortunas pela hospedagem em um hotel flutuante), Östlund encontra a metáfora visual perfeita para esta sociedade insustentável em seus excessos e desigualdades ao enfocar os passageiros sempre inclinados graças à instabilidade do navio, completando a imagem com os ângulos holandeses que reforçam o desequilíbrio (ou seja: quando as pessoas não surgem em posição oblíqua, é o próprio mundo que está fora de prumo).

O que nos traz a uma sequência que, perdoem-me o clichê que creio nunca ter utilizado em quase três décadas de carreira, é uma verdadeira tour de force: o longo jantar perturbado pelo mar revolto e suas consequências sobre a saúde dos turistas. Construída com paciência e disciplina pelo diretor, que inicialmente utiliza o desenho de som para sugerir o caos que se instala pelo salão, a passagem culmina em um vômito coletivo que faz jus à competição de devoramento de tortas de Conta Comigo, mas com um propósito maior do que a mera escatologia: a princípio, ao retratar como os demais passageiros se esforçam ao máximo para ignorar o que está acontecendo ao redor, há a sensação óbvia de estarmos vendo pessoas que há muito se convenceram de que nada pode atingi-las – e à medida que o enjoo chega para todos, o filme não tenta ser sutil (e nem deveria, pois a abordagem funciona bem para a sátira) ao ilustrar como, mesmo no meio do desastre, há o condicionamento (ou melhor: imposição) sócio-econômico dos papeis pré-determinados em que os proletários são forçados a se prostar e a limpar a sujeira da elite mesmo que esta seja exposta por Östlund em toda sua fragilidade (sim, estes indivíduos podem estar na lista de bilionários da Forbes, mas isto não os ajuda quando estão reduzidos a espasmos de vômito e diarreia em suas cabines suntuosas).

Mas se Triângulo da Tristeza já mereceria todos os créditos pela insanidade desta sequência (que, vale lembrar, inclui ainda uma troca de citações entre – como se definem – “um russo capitalista e um americano socialista”), o terço final do longa completa a discussão de maneira inspirada ao atirar alguns de seus personagens em uma situação que os despe do que possuem e os resume ao que são. Qual o valor de uma influencer de estilo de vida ou de um modelo num cenário em que todos precisam contribuir para o bem geral? Não por acaso, é aqui que a faxineira Abigail (De Leon deveria ter sido indicada a todos os prêmios possíveis) subitamente se vê no topo da pirâmide depois de uma existência de oportunidades negadas e de limitações profundas que expõem a ideia de “meritocracia” como a canalhice autocongratulatória que aqueles que já nasceram com os caminhos abertos adoram berrar.

Pois é muito fácil endeusar Reagan, Thatcher e o neoliberalismo quando são os outros que sustentam a utopia em que você vive: programa social é “esmola para preguiçosos”, enquanto subsídios e isenção de impostos “fazem a economia girar”. Bastaria que a situação se invertesse levemente, porém, para que os mesmos que citam Milton Friedman adotassem Marx como guru e defendessem que “de cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”. Enquanto isto não ocorre, para esta elite a necessidade do outro será apenas um privilégio exigido por quem cometeu o equívoco de ter uma família humilde.

18) Dirigido pelo romeno Cristian Mungiu (responsável pela obra-prima 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias) R.M.N. concentra a maior parte de sua ação em um pequeno vilarejo situado aos pés de uma montanha que, numa Europa (pior: num mundo) cada vez mais tomada pela xenofobia, se vê numa situação carregada de tensão quando a administradora de uma panificadora local – a maior fábrica da região -, num esforço para preencher os requisitos burocráticos necessários para se qualificar a um crédito na União Europeia, contrata dois imigrantes que despertam a revolta dos moradores. A ironia: a busca por trabalhadores estrangeiros foi provocada pela recusa dos locais de trabalhar na empresa por julgarem os salários muito baixos.

Assim, enquanto muitos dos moradores da cidade a abandonam para buscar empregos em outras regiões nas quais serão eles os explorados, seus antigos vizinhos oprimem os recém-chegados – deixando de imaginar, certamente, como lamentariam que o mesmo fosse feito com seus parentes e amigos. A partir daí, Mungiu cria uma narrativa cujo subtexto político e econômico se torna motor do drama (mais do que os dramas pessoais – amorosos, por exemplo – dos personagens), discutindo não só a crise econômica global (e, em parte, fomentada pela própria globalização), mas também a hipocrisia e a ganância embutidas num sistema viciado que sempre privilegiará suas elites. Neste aspecto, não é surpresa que a dona da fábrica, por exemplo, negue a possibilidade de pagar bons salários aos seus trabalhadores enquanto desfila pela região em seu recém-adquirido BMW.

Menos eficiente ao lidar com relações específicas daqueles indivíduos, o longa parece enfrentar dificuldades para se equilibrar entre suas discussões mais amplas e aquelas, pontuais, que lidam com as contradições de Matthias, protagonista vivido por Marin Grigore, por exemplo – um sujeito profundamente falho que, fica subentendido, agredia a ex-esposa e o filho pequeno. Mais interessante, por outro lado, é a administradora interpretada por Judith State, que, forçada a lidar com vários incêndios simultâneos (incluindo o interesse insistente de Matthias e seus próprios sentimentos por este), parece estar sempre lutando para não desapontar os vizinhos, a patroa e, não menos importante, os imigrantes que ajudou a contratar.

Adotando uma câmera mais fluida que em seus trabalhos anteriores (um aspecto típico do Novo Cinema romeno que em geral funcionava muito bem), Mungiu ainda assim demonstra um controle impressionante em determinados planos mais extensos, destacando-se aquele que, durando cerca de dez minutos, prova uma intensa imersão na realidade do vilarejo ao acompanha uma assembleia da população para discutir a presença dos imigrantes, levando o espectador a experimentar quase como participante a tensão da situação.

Ambicioso ao estudar as complexas dinâmicas sociais e políticas da pequena comunidade que retrata, R.M.N. pode não ser tão coeso quanto 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, Além das Montanhas ou Graduation, mas segue comprovando a competência de um diretor sempre interessante.

19) Quando Gabriel (Johan Heldenbergh) decide dirigir seu primeiro filme já se aproximando da meia-idade, suas intenções e motivações soam nobres no papel: ambientando sua história numa vizinhança humilde, ele busca a honestidade (teórica) da realidade ao escalar atores amadores – em sua maior parte, crianças locais – em todos os papeis, incluindo o pequeno Ryan (Timéo Mahaut), que, rebelde e explosivo, possui um temperamento que o destinará a ser um astro-revelação ou um futuro presidiário. Enquanto tenta manter o controle da produção diante de vários obstáculos – incluindo a imprevisibilidade de seu elenco, Gabriel vê sua falta de experiência se refletir na abordagem ética do projeto ao potencialmente arriscar a saúde emocional de seus intérpretes.

Isto, claro, é o que ocorre no filme-dentro-do-filme, que na realidade é o longa-metragem de estreia da dupla de realizadoras formada por Lise Akoka e Romane Gueret a partir de um roteiro co-escrito por estas ao lado de Elénore Gurrey e Catherine Paillé e que felizmente exibem um controle criativo claramente maior do que o do diretor ficcional que retratam aqui. Sim, há sempre a possibilidade de que os bastidores reais reflitam o mesmo tipo de dilema ético da dramatização, mas o simples fato de este cenário me ocorrer é menos evidência da plausibilidade deste temor e mais da competência das cineastas ao nos convencerem da verossimilhança da narrativa que criam. Além disso, se Gabriel frequentemente parece ignorar o conflito entre seus impulsos criativos e morais, mostrando-se fascinado, por exemplo, com a parede arruinada de um edifício por encará-la apenas como elemento estético em vez de como símbolo da decadência econômica da comunidade, o mesmo erro não pode ser atribuído a Akoka e Gueret, que obviamente enxergam de modo cristalino as implicações do que registram.

Sensível também às atribulações adolescentes, com todos os seus despertares dolorosos, Os Piores investiga os pequenos dramas gerados no grupo pelo filme-dentro-do-filme – como as tensões internas das famílias dos atores e entre estes e os colegas de escola excluídos do projeto. Do mesmo modo, ao revelar a situação humilde daqueles jovens em suas casas pequenas e superlotadas, o longa ganha um subtexto político que faz eco a tantos outros projetos presentes nesta edição do festival.

Hábil ao provocar um desconforto no público que encontra eco naquele vivido pelos personagens – especialmente numa passagem em que Gabriel dirige o jovem casal formado por Lily (Mallory Wanecque, fantástica) e Jessy (Loïc Pech) numa cena de sexo, Os Piores ainda traz, em seu desfecho, um plano soberbo que o pequeno Timéo Mahaut carrega com brilhantismo, encerrando a narrativa de forma poderosa e surpreendente.

24 de Maio de 2022

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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