Dia 05
16) Em sua superfície, Anatomia de uma Queda é um exercício de gênero – ou melhor, de gêneros: um drama de tribunal que reconhece a força da ambiguidade e que acaba funcionando também como um instigante estudo de personagem. Dirigido por Justine Triet a partir de um roteiro escrito por esta ao lado de seu companheiro Arthur Harari, o filme nos apresenta à escritora Sandra Voyter (Sandra Hüller), que abre a narrativa dando uma entrevista para uma jovem estudante enquanto seu marido Samuel Maleski (Samuel Theis) insiste em ouvir música em altíssimo volume no andar superior. Logo a conversa é suspensa em função da interrupção; quando o filho do casal, Daniel (Milo Machado Graner), sai para passear com seu cão-guia, o casal fica sozinho em casa. Pouco tempo depois, Samuel é encontrado morto, tendo despencado da janela do sótão por acidente, por vontade própria ou por ação da esposa.
Figura reservada e enigmática cuja natureza já é sinalizada em seus esforços para fugir de quaisquer perguntas pessoais na conversa que abre o filme, Sandra é uma mulher inteligente, bem sucedida e de personalidade forte – e, assim, não é surpresa quando os policiais, todos homens, passam a considerá-la suspeita. Ciente do risco que corre, a protagonista contrata o advogado Vincent Renzi (Swann Arlaud), um amigo do passado, envolvendo-se na construção de sua defesa ao descartar, em uma atitude que ao menos soa legítima, várias possíveis linhas de argumentação sobre sua inocência, sugerindo, assim, convicção de que a “verdade” a absolverá.
Se “verdade” encontra-se entre aspas no parágrafo anterior, é porque Triet faz questão de mantê-las ao longo de toda a projeção – especialmente durante a longa sequência do julgamento na qual promotoria e defesa argumentam com veemência a partir de testemunhos, registros em áudio e evidências circunstanciais. Aqui, por sinal, Anatomia de uma Queda já se diferencia de boa parte dos clássicos do gênero – na maioria norte-americanos – em função das características próprias do sistema judicial francês, que estrutura o julgamento sem a rigidez esperada na inquirição das testemunhas, já que os embates entre as partes são constantes, não importando de quem seja a vez de comandar o depoimento (ou mesmo de oferecê-lo, já que as perguntas saltam entre testemunhas e ré frequentemente). Assim, muitas vezes a impressão é a de um debate apaixonado, não de uma dissecação fria, o que acrescenta ao drama do que vemos na tela.
O centro deste julgamento, aliás, é uma passagem que, durando dez minutos, envolve a gravação de uma discussão entre Sandra e Samuel feita por este último sem que a esposa soubesse e que, descoberta pelos investigadores, é reproduzida durante a audiência: envolvendo ressentimentos antigos que dizem respeito ao sucesso da escritora, à paralisia criativa do marido, ao acidente que tirou a visão do filho do casal e a inúmeros outros desentendimentos que se acumulam ao longo de qualquer relacionamento, a briga é vista na tela em sua maior parte, voltando a ser apresentada apenas em áudio em seu desfecho, quando o que estamos ouvindo se torna ambíguo, podendo refletir uma altercação física ou um ato de autoagressão movido pela raiva. Seja como for, é nesta cena que a composição de Sandra Hüller, que já impressionava até então, se torna sublime, retratando uma mulher racional que trata as insatisfações (muitas vezes juvenis) do marido com mais paciência do que talvez devesse por amá-lo, finalmente atingindo um ponto de ruptura quando as afeições do filho são usadas como arma por Samuel (e Theis também merece aplausos pela convicção que seu personagem manifesta acerca das injustiças que acredita sofrer).
Em essência, porém, Sandra se encontra no banco dos réus por ser mulher – e isto independe do fato de ser culpada ou não; o que a torna um alvo é sua força, sua sexualidade e sua dominância familiar (e ser estrangeira não ajuda muito neste sentido, obrigando-a a saltar entre línguas dependendo da precisão com que deve se explicar em cada momento).
Tropeçando ao sentir a necessidade de criar algum clima romântico entre a protagonista e o advogado, Anatomia de uma Queda (o título é uma referência clara ao Anatomia de um Crime, de Otto Preminger) também se fragiliza ao depositar seu centro moral nos ombros do jovem Daniel, cuja cegueira se torna uma metáfora óbvia e tola da própria Justiça. A ideia, claro, é oferecer alguma resolução através do veredito ao qual o garoto chega e que é mais importante que aquele alcançado pelo judiciário, mas isto sugere apenas um receio por parte dos realizadores de deixar a questão central sem uma conclusão clara – sem perceberem que esta era absolutamente desnecessária.
18) Há rostos que contam histórias inteiras – o de Hassan é um deles. Interpretado pelo marroquino Abdellatif Masstouri, que jamais havia atuado profissionalmente, o sujeito traz as dificuldades que passou durante toda a vida retratadas em cada ruga, em cada linha de expressão e também em seu corpo magro, mas capaz. Vivendo de crimes e tarefas menores que lhe são delegados por criminosos muito acima de onde ele se encontra, ele recebe a incumbência de sequestrar um oponente de seu chefe, realizando o serviço ao lado do filho Issam (Ayoub Elaid). Infelizmente, durante a ação eles acabam sufocando acidentalmente a vítima, o que dá início a um dia e a uma noite intermináveis enquanto a dupla tenta encontrar um modo de se livrar do corpo.
Escrito e dirigido por Kamal Lazraq, Hounds (Les meutes) conta com uma narrativa enxuta que, ao longo de curtos 94 minutos, acompanha o desespero crescente de pai e filho, bem como as discussões que este nervosismo facilita e que refletem anos de mágoas por parte do jovem. Enquanto eles vão de um canto a outro da cidade seguindo promessas de ajuda, o cineasta lança um olhar entristecido sobre o próprio país, ciente de que a simples existência de personagens como aqueles dá margem a alegorias políticas inevitáveis.
Aos poucos, porém, o longa vai perdendo parte de sua força em função da repetição de becos sem saída e brigas, chegando ao fim menos como um comentário social do que como um suspense sem fôlego em busca de um desfecho aceitável.
19) Entre 1921 e 1926, estima-se que cerca de 60 membros da nação Osage tenham sido assassinados em função de interesses financeiros diretos ou indiretos de indivíduos brancos na região na qual haviam estabelecido residência depois de serem expulsos de vários outros estados em função de… interesses financeiros de indivíduos brancos. Aliás, se incluirmos também a década de 30 na conta, é possível que os assassinatos cheguem a centenas, não sendo surpresa que o período tenha ficado conhecido como “Reino do Terror” entre os indígenas. Tão espantoso quanto o número de vítimas, porém, é o fato de que trata-se de uma estimativa, o que sugere fortemente que o descaso para com aquelas mortes era tão grande que se nem suas causas eram investigadas, quais as chances de que os responsáveis fossem identificados e punidos?
E mais: como é possível que uma história tão chocante tenha sido adaptada para o Cinema apenas duas vezes em quase cem anos enquanto, digamos, os crimes cometidos pelo Assassino do Zodíaco há meio século inspiraram dúzias de filmes? Para piorar, dos dois títulos em questão, um é considerado perdido (Tragedies of the Osage Hills, de 1926) e o outro representa apenas um segmento de uma abominação produzida para louvar J. Edgar Hoover (A História do FBI, de 1959) e altera praticamente todos os fatos do caso. Ah, sim: para completar o padrão, adivinhem qual das duas obras foi dirigida por um nativo-americano (James Young Deer)? Se você respondeu “a que desapareceu”, compreendeu o problema.
Pois a terceira adaptação do caso, Assassinos da Lua das Flores, busca corrigir este equívoco de modo admirável, conseguindo a proeza de respeitar os fatos investigados e narrados por David Grann em seu excepcional livro homônimo e organizá-los em uma narrativa coesa que funciona como estudo de personagens, registro histórico, tragédia romântica, suspense, western (pontualmente) e, finalmente, como desagravo, amarrando tudo isso com uma consciência atípica a respeito de seu próprio papel como representação cultural dirigida por um homem que não pertence a esta cultura. Não é coincidência, portanto, que o longa comece com um ritual Osage de lamento pela perda deste legado em uma época na qual as crianças indígenas eram tomadas de seus pais e levadas à força para internatos comandados por representantes da Igreja em um programa governamental que tinha como propósito declarado “matar o índio, salvar o homem” (centenas de crianças sofreram abusos físicos, sexuais e psicológicos nestas instituições – outra história esquecida).
No caso dos Osage, o verbo “matar” ganhou outra conotação graças a um fator que deveria ter representado um golpe de sorte: a descoberta de petróleo sob suas terras, que fez daquele o povo com maior patrimônio financeiro per capita do planeta. Assim, na região habitada por eles, uma inversão única na História ocorreu, transformando os brancos em subalternos de uma elite econômica composta por uma minoria étnica – e é claro que medidas logo foram tomadas para (cof-cof) corrigir o problema: considerados legalmente “incompetentes”, os indígenas só podiam ter acesso ao próprio dinheiro através de “curadores” (brancos, obviamente) que controlavam suas fortunas. Ao mesmo tempo, o comércio local estabelecia preços distintos para os Osage e, como em uma nova corrida do ouro, homens de todo o país se deslocaram para Oklahoma a fim de explorar os novos milionários e, por que não?, casar com as milionárias, herdando suas posses quando, por um acaso do destino, morriam precocemente.
Um destes indivíduos foi Ernest Burkhart (DiCaprio), veterano da Primeira Guerra que se juntou ao tio, William Hale (De Niro), na região Osage e se tornou marido de Mollie (Gladstone), uma de quatro irmãs que, ao lado da mãe Lizzie Q (Cardinal), possuíam um dos maiores patrimônios do estado (o nome Osage de Mollie era Wah-kon-tah-he-um-pah). Já enriquecido graças à pecuária e a vários esquemas para explorar os indígenas, Hale cultivava a fama de “protetor” dos Osage ao financiar escolas e hospitais na área – e que o dinheiro usado para isso viesse dos próprios nativo-americanos era uma ironia que poucos conheciam. Insistindo em ser chamado de “Rei” (“King” era seu nome do meio, mas a razão para tal insistência certamente tinha outra motivação), o pecuarista não demorou a perceber que o sobrinho poderia ser um bom instrumento em seu objetivo de concentrar em sua família a maior quantidade possível de bens – principalmente por reconhecer as limitações de Ernest (muito do temperamento do sujeito fica claro quando, logo ao descer do trem, ele vê um grupo espancando um homem e, com um sorriso de prazer, tenta encaixar um soco apenas por diversão).
Mollie, por outro lado, não é ingênua a ponto de acreditar no amor incondicional do recém-chegado; ciente de como sua riqueza é mais atraente para um homem como Ernest do que qualquer atributo físico que pudesse exibir, ela aprecia a honestidade deste ao admitir que o dinheiro é importante e parece enxergar em sua estupidez um sinal de que não representa um perigo de fato (além do mais, ele a faz rir, algo relativamente raro em sua vida). E é então que toda sua família começa a morrer.
Neste sentido, uma das principais virtudes de Assassinos da Lua das Flores reside em sua capacidade de evocar uma atmosfera de apreensão constante: tomada cada vez mais pela paranoia – e com razão -, Molly é encarnada pela soberba Lily Gladstone como uma mulher que constata com horror crescente não poder confiar de fato em nenhum dos muitos brancos que a cercam – e durante a cerimônia na qual sua filha recém-nascida recebe um nome Osage, Scorsese enfoca todos aqueles rostos sorridentes como máscaras que possivelmente ocultam monstros. Ao mesmo tempo, a composição de Gladstone é inteligente ao jamais permitir que Mollie seja definida por sua condição de vítima; falando sempre com voz forte e segura (mas que também traz melancolia e cansaço), a personagem se firma desde sua primeira aparição como uma pessoa cuja sabedoria é maior que sua idade e cuja introspecção só diminui quando ao lado das irmãs, com as quais desenvolve uma dinâmica de confidência e confiança. Infelizmente, esta confiança também é depositada no marido não só por amor, mas talvez por acreditar que este não seria capaz de planejar algo perverso.
Não sozinho - pois se a performance de Leonardo DiCaprio deixa uma característica de Ernest evidente, esta é sua cognição limitada (uma forma elegante de dizer “burro como uma porta”). Com a aparência de galã alterada por próteses nasais e dentárias, além de certo prognatismo, o ator traz a expressão constantemente confusa, o olhar vazio e perdido de alguém sempre dez passos atrás dos demais e mesmo uma risada que por si só transmite estupidez. Isto é fundamental para que possamos compreender como o sujeito se deixa envolver pelos planos do tio (o que não o isenta de culpa) e como só parece perceber as implicações reais de suas ações quando já é tarde demais (notem sua fisionomia de choque ao caminhar pelo local de uma explosão). Moralmente frágil, Ernest é manipulado com extrema facilidade – e o longo plano que o traz testemunhando é uma escolha brilhante de um cineasta que sabe poder confiar em seu ator.
Mas onde DiCaprio projeta burrice, Robert De Niro exala malícia. Não inteligência, reparem, mas maldade. Empregando insinuações e meias-palavras (a não ser quando a parvoíce de Ernest o obriga a ser mais claro), William Hale se mantém sempre atento a tudo e a todos – o que Scorsese e a lendária montadora Thelma Schoonmaker ressaltam através de primeiros planos que expõem a vigilância no rosto de De Niro e de raccords de olhar que praticamente revelam seu processo mental. Definição perfeita do lobo na pele de cordeiro, Hale faz questão de falar a língua dos indígenas e de chamá-los por seus nomes Osage para explicitar como valoriza aquela cultura – e mesmo em suas conversas particulares com Ernest e o irmão deste, Byron (Shepherd), ele procura expressar seus planos de morte como se estes fossem apenas a antecipação de algo que a natureza inevitavelmente faria. Em contrapartida, Jesse Plemons confere a Tom White, agente do FBI enviado para investigar os crimes, uma aura de sinceridade, boa índole e segurança, exibindo também uma compaixão admirável – o que não o impede de ser mais firme ao interrogar suspeitos.
Buscando representar os costumes Osage da maneira mais autêntica possível (a produção empregou vários membros daquele povo tanto atrás quanto à frente das câmeras), Scorsese, embora vindo de uma criação católica, demonstra aqui o mesmo respeito com que tratou o budismo em Kundun e o xintoísmo em Silêncio: se seus personagens creem em algo, o cineasta retrata suas crenças como autênticas – e, assim, ao enfocar a morte pacífica de uma Osage, ele a mostra sendo levada por espíritos de seus antepassados. De modo similar, se acreditam que uma coruja aparece para alertá-los sobre uma morte próxima, o filme inclui o pássaro na cena; se dizem ouvir alertas de familiares falecidos, estes avisos se materializam (“O homem com chapéu está aqui.”). Aliás, um dos traços que comprovam a firmeza de caráter de Mollie é seu respeito pela cultura de seu povo e seus esforços para preservá-la ao surgir em vários momentos ensinando estas tradições à filha (que, não à toa, tem o mesmo nome da avó). Além disso, quando o longa chega ao fim, seu título surge primeiro em caracteres da língua Osage (que pertence à família Sioux) para só então dar lugar ao inglês.
Fotografado por Rodrigo Prieto, parceiro de Scorsese desde O Lobo de Wall Street, Assassinos da Lua das Flores explora com eficácia as vastas paisagens que compõem as terras da nação Osage (provavelmente retocadas digitalmente), mas não se torna menos impressionante nas cenas internas, criando tableaux tão belos quanto tristes, incluindo aquele em que vemos um caixão aberto em posição semiereta com a família da falecida ao seu redor, outro no qual várias pessoas se posicionam atrás e aos lados de outra pessoa que acabou de morrer ou um terceiro que, numa sala escura de atmosfera opressiva, traz homens e mulheres brancos em roupas formais e encarando a câmera (subjetiva) com tom hostil. Prieto utiliza também, como não poderia deixar de ser, recursos característicos da filmografia de Scorsese, como o split diopter (logo no início, quando enfoca fendas através das quais olhos de crianças observam um ritual), a câmera lenta (o plano com indígenas dançando cobertos de petróleo já entrou para a ampla galeria dos melhores da obra do cineasta) e planos-sequência que percorrem vários ambientes (como aquele que culmina em Lizzie Q. dormindo em um cômodo da casa). Para completar, Scorsese e o diretor de fotografia superexpõem a luz externa através das janelas de um hospital para que contraste com a atmosfera sombria que a antecedeu e certificam-se de manter Ernest e Mollie nos cantos opostos do quadro quando o primeiro dá uma notícia que provoca angústia na esposa. E se a fumaça é costumeiramente usada pelo mestre como signo de malignidade, é mais do que apropriado que o plano subjetivo que representa o olhar de Mollie na estação de trem enfoque uma multidão de brancos encarando-a com hostilidade enquanto cercados pelo vapor da locomotiva.
Nenhum destes recursos narrativos, como é possível constatar, surge gratuitamente: ao empregar seus tradicionais planos plongée (que em meu curso sobre o cineasta aponto como simbolizam com frequência um ponto de vista divino/metafísico), o realizador apresenta um olhar de compaixão e também salienta a vulnerabilidade dos Osage ao exibir seus mortos, criando um impacto ainda maior com aquele que encerra a narrativa e que remete diretamente a outro instante magistral de Kundun. (As obras de Scorsese frequentemente dialogam umas com as outras.) Já em outras passagens, o filme adota uma abordagem que flerta com o expressionismo, como, por exemplo, ao usar a projeção das chamas de um incêndio através das janelas de um quarto para criar um quadro que nos permite enxergar o tumulto interno e o pavor do julgamento divino vividos por Ernest. Por fim, é uma tragédia que Robbie Robertson (a quem o longa é dedicado) tenha falecido dois meses antes do lançamento, já que a trilha que criou para o filme é uma de suas melhores – além de ter significância particular por ele ter ancestralidade indígena (Mohawk e Cayuga): combinando flautas, gaita e vocalizações que evitam os estereótipos do gênero, a música ajuda a sustentar a atmosfera de tensão sem jamais perder de vista a identidade cultural tão importante para a narrativa (e se boa parte dos créditos finais é acompanhada por sons diegéticos – vento, trovões, chuva, cigarras -, isto não só reflete a ligação dos nativo-americanos com a terra como preserva a melancolia do que acabamos de ver).
Alternando entre narradores (outra marca registrada do diretor) como, por exemplo, ao permitir que certo personagem assuma a função uma única vez a fim de descrever sua estratégia e seu sentimento ao executar uma tarefa sombria, o roteiro salta também em sua cronologia vez por outra, optando por retratar certos eventos (como o assassinato de uma das irmãs) em um contexto no qual a frieza e a crueldade do ato ganham dimensão de horror adicional. Aliás, como de hábito, Scorsese não teme encenar a violência de forma gráfica quando julga necessário – e a brutalidade destinada aos Osage jamais é maquiada, expondo com isso a natureza animalesca de seus algozes.
Tematicamente coerente ao incluir na narrativa referências ao massacre de Tulsa, quando por dois dias uma multidão de racistas atacou a população negra de um distrito da cidade, matando um número estimado de centenas de pessoas (novamente a estimativa que denota descaso), ferindo quase mil e destruindo os lares de cerca de dez mil indivíduos, Assassinos da Lua das Flores deixa evidente como um elemento essencial para que tantos Osage fossem vitimados foi a pura negligência das autoridades, já que as ações dos criminosos eram ostensivas, mal disfarçando o caráter suspeito daquelas mortes (Hale nada tinha de gênio, chegando a mandar um bilhete para uma pessoa que se encontrava presa a fim de tentar encomendar um assassinato).
Neste aspecto, Mollie acaba sendo pessoa e símbolo: como pessoa, a história de amor que vive com Ernest é o centro dramático da história e envolve a dinâmica particular do casal e o processo da mulher para compreender a dimensão do que ocorreu e o papel do marido na destruição de sua família; como símbolo, ela representa as vítimas do genocídio cometido sistematicamente pelos brancos em seu processo de expansão política, econômica e geográfica – o que muitas vezes incluía justamente uma abordagem inicial presumidamente pacífica, manifestando apenas boas intenções, até os verdadeiros objetivos predatórios se apresentarem. Não é à toa que William Hale demonstra uma confiança repleta de arrogância diante da lei, já que os indígenas eram vistos menos como seres humanos e mais como obstáculos à “civilização” – e a desumanização do Outro é condição primordial para o genocídio (como podemos observar ainda hoje nas comunidades carentes massacradas pela PM ou, claro, na Palestina). A identidade das vítimas pode mudar (embora geralmente tenham a pele mais escura), mas a estratégia é tão antiga quanto o mundo.
Assim como é a dominância do ponto de vista colonizador no relato da história dos colonizados – e é aí que Scorsese toma uma decisão narrativa que comprova sua capacidade de se desafiar, se questionar e se reinventar depois de 60 anos de carreira, inserindo uma intervenção quase metalinguística no epílogo do filme ao revelar para o espectador os destinos dos personagens através de uma dramatização dos incidentes para um programa de rádio que, embora ficcional, é inspirado em vários outros que realmente existiram (e que podem ser considerados precursores dos documentários, livros investigativos e podcasts do gênero true crime). Comentando o desrespeito recorrente na maneira com que minorias eram retratadas em suas próprias histórias – ver blackface, yellowface, brownface e redface -, aqui vemos um ator branco recitando diálogos com uma “voz de índio” (não de “indígena”) e uma abordagem sensacionalista generalizada dos fatos que havíamos testemunhado de maneira sóbria nas três horas anteriores. Com isso, Scorsese se apresenta como um autor que fala de um lugar diferente daquele ocupado por seus personagens e reconhece suas potenciais inadequações – o que é ressaltado quando se coloca na tela para ler o obituário de Mollie Burkhart publicado no jornal local logo depois de sua morte.
Recitando aquelas palavras com a tristeza de quem sabe como aqueles poucos parágrafos jamais conseguiriam capturar todas as dores experimentadas pela mulher cuja vida descreviam, o cineasta encerra o filme com a única informação que poderia ser mais trágica que o relato de todas aquelas mortes: a constatação de que elas nem sequer foram consideradas relevantes o bastante para aparecerem no texto que resumia a passagem de Mollie – não: de Wah-kon-tah-he-um-pah – pelo planeta.
21 de Maio de 2023