Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
24/01/2014 | 01/01/1970 | 5 / 5 | 5 / 5 |
Distribuidora | |||
Paris Filmes | |||
Duração do filme | |||
180 minuto(s) |
Dirigido por Martin Scorsese. Com: Leonardo DiCaprio, Jonah Hill, Margot Robbie, Kyle Chandler, Rob Reiner, P.J. Byrne, Kenneth Choi, Jon Bernthal, Jon Favreau, Spike Jonze, Jean Dujardin, Cristin Milioti, Joanna Lumley, Shea Whigham, Jake Hoffman, Fran Lebowitz.
O Lobo de Wall Street, novo trabalho do cineasta Martin Scorsese, é basicamente uma versão de três horas da sequência de Os Bons Companheiros na qual o protagonista, paranoico em função das drogas, passa o dia observando um helicóptero que o segue enquanto mantém conversas histriônicas com vários conhecidos. Aqui, porém, em vez de acompanhar os bastidores violentos de uma organização de mafiosos, o filme segue os bastidores hedonistas de uma quadrilha de executivos de Wall Street – e, no processo, expõe que, embora menos propensos à violência, estes últimos revelam possuir muito menos maturidade, autocontrole e, principalmente, respeito pela dignidade alheia do que seus colegas da Cosa Nostra.
Baseado no livro autobiográfico do ex-corretor da bolsa de valores Jordan Belfort, o roteiro de Terence Winter ancora sua história num universo povoado por personagens celebremente batizados por Tom Wolfe como “Mestres do Universo”: financistas, especuladores e corretores de Wall Street que, principalmente a partir da década de 80, se dedicaram a manipular o sistema financeiro em benefício próprio enquanto arruinavam as vidas e economias de milhares de famílias, usando o dinheiro para financiar não só seu próprio estilo de vida cheio de ostentação, mas também orgias regadas a álcool e cobertas de pó. Foi nesta cultura particular que o jovem Belfort (DiCaprio) iniciou sua carreira, não demorando até fundar sua própria empresa de corretagem que, demonstrando verdadeiro desprezo pelos próprios clientes, transformava-os em vítimas de esquemas cujo objetivo final era transferir seus investimentos para o caixa da companhia. Neste aspecto, Jordan Belfort pode até soar mais divertido que o Tommy de Joe Pesci, mas, em última análise, mostra-se tão egoísta, inconsequente e sociopata quanto este.
E é aí que entra a inteligência de Scorsese: enquanto um diretor menos experiente provavelmente buscaria retratar a história do protagonista de maneira direta e objetiva a fim de estabelecer sua canalhice, o cineasta opta por, em vez de ressaltar o óbvio, pintar as ações de Belfort com as cores do ridículo que estas inspiram, salientando os absurdos do cotidiano do sujeito e levando o espectador ao riso – mas com o cuidado de garantir que, de modo geral, estejamos rindo dos personagens, não com estes.
Contando com uma estrutura narrativa bastante similar às de Os Bons Companheiros e Cassino (deixando claro que, para ele, os “Mestres do Universo” são tão desprezíveis quanto os mafiosos de seus trabalhos anteriores), Scorsese emprega aqui narrações em off múltiplas que não apenas servem para guiar o espectador através daquele mundo, mas também para comentar a própria narrativa – como, por exemplo, ao corrigir a cor de um carro logo no início da projeção. Porém, ao contrário do que ocorria naqueles filmes, cujos personagens no mínimo respeitavam o espectador, aqui o Belfort de Leonardo DiCaprio mal consegue ocultar o desprezo que sente pela própria plateia, frequentemente comentando, de forma condescendente e ofensiva, não acreditar em nossa capacidade de compreender os esquemas financeiros que comandava. Já em outros momentos, o diretor usa o off para revelar o que um personagem realmente está pensando acerca de outro, completando suas brincadeiras de linguagem ao retratar um evento de duas maneiras distintas, refletindo a percepção alterada de determinado indivíduo e, mais tarde, revelando o que realmente aconteceu.
Ambientado numa cultura de “machos” que, como tal, inclui uma infinidade de xingamentos mútuos e a verdadeira necessidade de encarar as mulheres como troféus por conquistas pessoais, objetos de escárnio ou simplesmente como mecanismo de alívio sexual, O Lobo de Wall Street já estabelece esta visão em um plano inacreditável no qual a bunda voluptuosa de uma garota é transformada basicamente em um Everest que o personagem de DiCaprio parece escalar antes de colher seu prêmio: uma carreira de cocaína aspirada do cume (hum). Assim, não é surpresa quando, mais tarde, o mesmo personagem caminha num estupor absoluto em um quarto de hotel em Las Vegas e, sem nem parecer pensar direito, estica o braço para apertar o seio de uma mulher desacordada – um gesto destituído de qualquer prazer sexual e que expõe simplesmente sua tendência a encarar o sexo oposto como algo que existe apenas para atendê-lo. No entanto, é fundamental distinguir protagonista e narrativa – e Scorsese deixa clara, em diversos momentos, sua reprovação diante daquelas atitudes, escancarando-a, por exemplo, no instante em que vemos uma das funcionárias de Belfort permitindo que sua cabeça seja raspada em troca de dez mil dólares: ao fazer questão de enfocar a moça recebendo o dinheiro e se afastando humilhada, o cineasta leva o espectador a observar a desumanização da secretária e, consequentemente, a constatar mais uma vez a sociopatia do personagem-título.
Não que no processo o filme não nos faça rir, pois faz – e ver Belfort e o sócio Donnie (Hill) discutindo a logística do arremesso de anões (com direito a citação de Freaks) é ao mesmo tempo engraçado (por constatarmos como aqueles homens se afastaram da realidade) e deprimente (pelo mesmo motivo). Neste sentido, aliás, Scorsese foi mais uma vez sábio ao escalar um comediante como Jonah Hill para formar dupla com DiCaprio – e é admirável como o ator consegue ao mesmo tempo trazer seu timing cômico para o papel enquanto retrata também as inseguranças, a ganância, o descontrole e a arrogância de Donnie, numa composição surpreendentemente complexa. Seguindo a mesma lógica, o diretor Rob Reiner, profundo conhecedor de comédia (é filho de Carl, afinal, além de ter dirigido vários títulos do gênero), aqui surge como o explosivo pai de Belfort, usando também seus dotes cômicos para oscilar bem entre a preocupação que o sujeito nutre em relação ao filho e tiradas hilárias originadas de seu espanto diante da autoindulgência do rapaz. (Aliás, O Lobo de Wall Street traz outros dois cineastas conhecedores de humor em pequenas pontas: Jon Favreau e Spike Jonze.)
E se Matthew McConaughey quase rouba o filme inteiro com sua única cena (e sua ausência é sentida por toda a projeção), Leonardo DiCaprio exibe uma segurança invejável ao carregar a narrativa, surgindo em praticamente todas as cenas das três horas de projeção. Apresentando-se inicialmente como um jovem inseguro cuja hesitação pode ser percebida na voz que insiste em falhar ao conversar com o chefe e na maneira com que olha para os lados, constrangido, Jordan Belfort eventualmente se torna uma figura desprezível, mas – e isto é fundamental para o sucesso do filme – sempre fascinante e divertida. Dono de uma natureza de sociopata (e não é à toa que uso a palavra pela terceira vez para descrevê-lo), o sujeito é incapaz de sentir remorso ou de perceber as consequências de seus atos – e quando diz se “sentir horrível” em função do que ocorreu com um conhecido, o sentimento dura apenas alguns segundos, como se tivesse sido verbalizado apenas como estratégia para se humanizar diante do espectador. Aspirante patético a Gordon Gekko (que ao menos exibia alguma dignidade em seu comportamento, soando como adulto), Belfort é um verdadeiro canalha – e, mais uma vez, a opinião de Scorsese sobre seu protagonista fica claríssima ao retratar certas ações no terceiro ato, quando inclui a reação apavorada de uma criança diante da barbaridade que está testemunhando e que provavelmente a traumatizará para o resto da vida.
Brilhante tanto nas sequências que exigem humor físico (e quem poderia imaginar que DiCaprio fosse tão competente neste quesito?) quanto nas cenas em que precisa descartar qualquer sombra de dignidade, DiCaprio ainda confere nuance às ações de Belfort – o que culmina naquela, que para mim, é a melhor cena do filme: a conversa que mantém a bordo de um iate com o agente federal vivido com talento por Kyle Chandler. Trata-se de uma interação complexa que Scorsese e a montadora Thelma Schoonmaker conduzem com maestria, partindo da tentativa por parte de Belfort de criar intimidade com o agente Denham, quando exibe de forma sutil sua riqueza para estabelecer seu poder, e sendo gradualmente substituída por esforços consecutivos de soar humilde e condescendente até culminar numa sugestão de suborno que dá lugar à frustração, à raiva e ao descontrole absoluto.
Um dos aspectos admiráveis de O Lobo de Wall Street, aliás, é perceber como Scorsese consegue contrapor momentos intimistas, de personagem, como este a outros nos quais sua câmera confere uma energia quase maníaca às sequências – tudo sem abandonar suas marcas autorais, como uma brilhante seleção de músicas incidentais, o uso preciso de câmera lenta (como no instante em que vemos cocaína voando dentro de um avião) e tomadas longas e impressionantes. Já em outros instantes, o cineasta emprega manipulações claras de narrativa ao criar situações de humor, como ao subitamente transformar uma pequena escada em outra que parece ter dezenas de degraus enquanto um personagem despenca por estes, ou ao encenar aquela que provavelmente é uma das brigas mais lentas da história do Cinema, quando até mesmo uma pequena vasilha é empregada por um dos envolvidos como obstáculo para impedir a aproximação do outro e durante a qual a música-tema de “Popeye” é empregada de maneira surpreendente.
Mas mesmo nos momentos de humor mais escrachado, O Lobo de Wall Street deixa claro estar enfocando personagens desprezíveis: “Não criamos nem construímos nada”, diz o corretor de McConaughey, por exemplo, enquanto em outro instante Belfort tenta provar sua boa natureza ao contar que deu dinheiro para uma colega, entregando que seu sentimentalismo é mensurado em dólares. E o pior (e sugiro que só leiam o restante do parágrafo aqueles que já tiverem visto o filme): ao contrário dos bandidos enfocados em Os Bons Companheiros e Cassino, que acabavam punidos em maior ou menor grau por suas ações, os engravatados de Wall Street são poderosos demais para vivenciarem derrotas similares – e, assim, quando vemos o agente Denham no metrô, a caminho de casa, somos levados por Scorsese a avaliar o grau de sua vitória. Sim, seria muito fácil, para o filme, trazer o sujeito sorrindo no vagão, demonstrando estar satisfeito com o que conseguiu mesmo diante da constatação de que Belfort sairá da cadeia para abraçar seus milhões, mas isto soaria falso e maniqueísta, sendo apropriadamente descartado pelo cineasta.
E é justamente este tipo de decisão que demonstra o talento aparentemente inesgotável de um cineasta que, mesmo aos 71 anos de idade, é capaz de criar uma narrativa repleta de uma energia juvenil quase subversiva. E é admirável que, em vez de se encarregar de condenar o personagem para o espectador, Scorsese permita que constatemos sozinhos a natureza de Belfort. Sim, com isso, ele inevitavelmente levará muitos a saírem do cinema repletos de admiração pelo que o protagonista conquistou – mas não podemos responsabilizar o diretor pela falha de caráter de certos membros de sua plateia, podemos?
18 de Janeiro de 2014