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Festival de Berlim 2024 - Dia #01 Festivais e Mostras

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Dia 01

01) Sem conseguir dormir, William Furlong se levanta, vai à cozinha de sua pequena casa e prepara um chá, esforçando-se para limitar o barulho que faz a fim de não acordar a esposa e as cinco filhas. Sentindo-se ainda inquieto, ela puxa uma das cadeiras da sala e a vira para a janela, sentando-se a fim de observar as pessoas que passam pela rua – e a sensação é de estarmos vendo um homem que se sente tão deslocado do mundo que o cerca que a janela se torna uma espécie de tevê através da qual ele tenta entender (ou se conectar com) o que todos julgam apenas cotidiano. Assim, não é surpresa que ele resista tanto a atender o telefone do escritório em sua empresa de venda de carvão, deixando que outros o façam; minimizar o contato com quem quer que seja é uma forma de sobrevivência.

Ao mesmo tempo, Bill é um pai atencioso e um marido carinho, demonstrando ser capaz de estabelecer laços afetivos significativos. Então por que ele se comporta como um misantropo na maior parte do tempo?

A resposta a esta questão logo fica clara, embora o que o protagonista fará a respeito se torne o centro dramático da narrativa de Small Things Like These, filme de abertura da 74ª. Edição do Festival de Berlim cujo roteiro, adaptado por Enda Walsh (do excelente Fome) a partir um livro de Claire Keegan, é ambientado numa pequena cidade irlandesa em 1985 – anos antes, portanto, que os atos pavorosos que ocorriam nas chamadas Lavanderias Madalena fossem expostos ao mundo (há um belo filme dirigido por Peter Mullan em 2002 sobre o tema, Em Nome de Deus). Estrelado (e produzido) por Cillian Murphy, o longa discute exatamente como aqueles horrores eram amplamente conhecidos pelas comunidades ao redor dos conventos, mantendo-se em segredo graças à apatia de muitos e ao temor de hostilizar a Igreja, cuja influência garantia sua capacidade de destruir quem a ele se opusesse.

No entanto, depois de testemunhar dois incidentes, algo se solta em Bill, que se torna cada vez mais incapaz de permanecer em silêncio – e a ansiedade crescente do personagem é ilustrada por Murphy e pelo desenho de som através de sua respiração pesada, ao passo que a direção de arte de Paki Smith e a fotografia de Frank van den Eeden se encarregam de salientar a atmosfera claustrofóbica através dos espaços apertados e dos quadros que de modo recorrente retratam os personagens encaixotados pelos batentes das portas (e o fotógrafo se destaca também ao executar um longo plano que, percorrendo os corredores do convento, oferece rápidos olhares sobre a realidade massacrante, sem cor e sem vida daquelas garotas). Além disso, é preciso dar créditos ao cuidado da figurinista Alison McCosh ao desgastar o tecido dos ombros do casaco de Bill, refletindo anos e anos de trabalho carregando sacos pesados de carvão.

Investindo em uma composição praticamente silenciosa e carregada por culpa, Murphy ancora o projeto com segurança e coragem, confiando em sua capacidade de expressar todo o tumulto interno de Bill sem depender de contorcionismos faciais extremos que trairiam sua natureza introspectiva. Triste e distraído por suas preocupações, o sujeito se sente cada vez mais culpado à medida que o tempo passa e sua inação permanece. Aliás, trata-se de uma performance tão eficaz que os vários flashbacks que buscam estabelecer uma ligação de sua história pessoal com as ações das freiras se tornam não apenas dispensáveis como distrações – e considerando como Ciarán Hinds é listado pelo IMDb como parte do elenco embora não esteja na versão final, sou capaz de apostar que ao menos uma cena bastante significativa que talvez justificasse estes flashbacks acabou sendo excluída (principalmente considerando que estas cenas no passado contam com a participação de um ator fisicamente muito parecido com Hinds). E por mais que eu aprecie raccords como o que salta do Bill adulto sentado em sua cama à sua versão jovem sentado a uma mesa, a falta de função dos saltos em si comprometem esta apreciação. (E a ideia de batizar uma jovem no presente com o mesmo nome da mãe do protagonista é apenas tola e óbvia.)

Dito isso, o diretor Tim Mielants cria uma sequência tão eficaz envolvendo uma breve e excepcional participação de Emily Watson que estes tropeços quase poderiam ser ignorados (quase) – e a performance da atriz, com o olhar atento para as reações de Bill e uma habilidade imensa para manipular uma situação potencialmente escandalosa, comprova como não há papeis pequenos para um grande artista.

Transformando a ação recorrente de lavar as mãos após chegar do trabalho em uma metáfora que, mesmo evidente, funciona no contexto da narrativa (e da profissão do personagem), Small Things Like These sabe como a paciência pode ser uma virtude importante em uma obra como esta, jamais acelerando seu ritmo por medo de perder o espectador e respeitando, com isso, o ritmo do próprio Bill.

E mesmo que este não seja um grande filme, como intérprete Cillian Murphy está vivendo uma fase invejável.

2) Há uma sequência em All the Long Nights (Yoake no subete) na qual acompanhamos o jovem Takatoshi Yamazoe (Hokuto Matsumura) em sua bicicleta enquanto se dirige à casa de uma nova amiga – e protagonista do filme -, Misa Fujisawa (Mone Kamishiraishi). De modo geral, se uma narrative cinematográfica se detém em retratar o trajeto de um personagem desta forma, algo possivelmente desastroso ocorrerá no caminho. Aqui, no entanto, o que o diretor Shô Miyake tem em mente é algo bem mais delicado: que percebamos como Yamazoe sente-se leve, quase… alegre, na bicicleta que resistiu em aceitar da amiga em função de suas crises de pânico.

O centro dramático do longa, por sinal, reside no histórico de saúde mental dos dois personagens: enquanto o rapaz lida com o pânico, Fujisawa é atormentada por uma síndrome pré-menstrual grave que a leva a situações constrangedoras a cada 25 ou 30 dias (de acordo com a própria, resultando em demissões e problemas com a polícia). Trabalhando juntos em uma pequena empresa que fabrica brinquedos científicos, o casal inicialmente parece fadado a brigas constantes – até que se dão conta de que há algo naquela relação que pode ajudá-los.

Tratados por médicos que lidam com suas doenças de modo burocrático, mantendo as receitas quando quase nada muda ou testando novas doses e medicamentos já sem convicção alguma (“Vou receitar um novo remédio, mas se não funcionar, pode parar de tomar.”), os jovens encontram apoio de suas famílias – o que é fundamental -, mas não têm muitas perspectives de melhora. E aqui vem o que All the Long Nights tem de mais belo: uma “cura” não é a única possibilidade que o filme (baseado no livro de Maiko Seo) julga aceitável; conseguir alguma estabilidade apesar dos sintomas já seria uma imensa vitória.

E mais: cada personagem secundário é visto pela obra como um ser humano complexo e com os próprios problemas, do gentil dono da fábrica ao ex-colega de Yamazoe em seu emprego anterior. Aliás, estes homens dividem algo além do interesse em ajudar pessoas fragilizadas, já que eles mesmos se conheceram em um grupo de apoio para lidar com o luto.

Com uma trilha sonora (de Hi´Spec) que remete a melodias infantis, a narração em off onipresente que trai sua origem literária, o tom de voz baixo com que todos falam e um ritmo que reflete o lento processo de abertura de seus personagens principais, o filme pode testar a paciência de alguns espectadores, mas a eficácia de sua abordagem é comprovada quando basta que vejamos aqueles indivíduos sorrindo abertamente para sejamos invadidos por uma alegria similar.

3) Logo nos primeiros minutos de Turn in the Wound, documentário dirigido pelo veterano Abel Ferrara, a cantora Patti Smith discute as fases que atravessou como artista, começando com a arrogância (somada à insegurança) da juventude até chegar a um período em que a autoconfiança se equilibrava melhor com os autoquestionamentos: “Esta é a fase em que Moby Dicks são escritos”, ela diz, completando em seguida: “Mas aí vem uma fase na qual você se despe de todas as camadas e percebe que nem todas as suas ideias têm que ser transformadas em algo material”.

E aí Ferrara salta para entrevistas com cidadãos ucranianos afetados pela invasão russa.

Qual é a tese que ele quer apresentar aqui? Qual a ligação estrutural entre as sequências de Patti Smith se apresentando e outras que contêm conversas com o próprio Zelensky e um de seus principais braços-direitos?

Duvido que o próprio cineasta consiga oferecer uma resposta coesa – e como evidência disso apresento o momento no qual ele surge sendo entrevistado por uma jornalista ucraniana e, depois de suas grosserias habituais (quem acompanha sua carreira sabe como ele é geralmente rude em entrevistas), demonstra uma dificuldade patente para articular suas ideias, tentando fortalecê-las com um palavrão que provavelmente representou um problema para os responsáveis pelo programa.

É curioso, portanto, que ele diga estar mais confuso agora que tem 71 anos do que na juventude, já que isso é evidente não só por suas respostas, mas pelas perguntas que faz às pessoas que entrevista; em certo ponto, sem saber o que questionar, ele pede sugestões de vários membros de sua equipe.

Aliás, um outro problema de Turn in the Wound é este hábito irritante de documentaristas que fazem de tudo para se inserir no filme, incluindo longos planos de suas próprias reações ou chamando a atenção para o fazer da obra – e inúmeras vezes ao longo da projeção a câmera abandona o entrevistado para focar nas mãos da tradutora, nos rostos dos demais membros da equipe ou, em certo instante, numa mulher passando de bicicleta à distância. E é assombroso como Ferrara não se dá conta do desrespeito que isso representa com os indivíduos que aceitaram compartilhar suas dores.

Pior: a câmera parece ser operada por alguém que se encontra em estado de forte embriaguez, já que não consegue manter o quadro estável em momento algum. E o que dizer do fato de que o filme inclui legendas dos depoimentos em ucraniano e a tradução feita em tempo real por uma profissional?

Talvez Ferrara devesse ter escutado Patti Smith e mantido a ideia deste documentário apenas em sua mente.

4) Há pouco mais de dois anos, o diretor mexicano Alonso Ruizpalacios realizou um experimento formal notável em Um Filme de Policiais, que flutuava de modo fascinante entre a ficção e o documentário, alcançando notoriedade internacional e curiosidade com relação aos seus próximos passos profissionais. Infelizmente, La Cocina não é a obra que o filme anterior havia prenunciado.

Flertando com uma estética documental em seus primeiros minutos, quando enche a tela com rostos de pessoas comuns na Times Square em Nova York, o longa emprega esta introdução para ancorar a trajetória da jovem imigrante Estela (Anna Díaz) em uma realidade caótica e potencialmente hostil – o que é salientado também pelo efeito de montagem que transforma as imagens em borrões desagradáveis atraves da duplicação de frames. Buscando emprego no The Grill, um restaurante de sucesso na cidade, ela encara assédio sexual do responsável por sua contratação em seus primeiros minutos na sala do sujeito – e este é só o começo de um dia tenso e agitado, já que 823 dólares desapareceram de um dos caixas na noite anterior e todos estão sendo questionados a mando do rigoroso/intenso/ameaçador dono do estabelecimento (Oded Fehr).

Mas La Cocina não é sobre este incidente em particular; o objetivo de Ruizpalacios é o de pintar um amplo painel sobre as tensões étnico-raciais entre os vários funcionários da cozinha e, mais importante, como todos estão tão distantes de alcançar o tal “sonho americano” quanto estavam quando chegaram ao país. Sempre fragilizados pela ameaça de deportação, eles trabalham muito por pouco, criando uma atmosfera de camaradagem combativa – uma “combatividade” originada por estarem sempre trocando insultos, mesmo que em tom de brincadeira. Aliás, há uma passagem claramente inspirada em Faça a Coisa Certa na qual vários personagens lançam epítetos raciais numa rápida sequência.

Porém, se tematicamente La Cocina é ambicioso, na prática tropeça em um roteiro prolixo que frequentemente parece incluir cenas e monólogos sem ter muita certeza do que significam ou de como contribuem com a narrativa. Em certo momento, por exemplo, há um longo plano durante o qual o personagem vivido por Motell Gyn Foster conta uma história sobre um imigrante e que, interminável (não por culpa do ator, que a recita com convicção), é tão tola que o próprio sujeito que a compartilhou assume não ter ideia do que está falando. Além disso, Ruizpalacios inclui uma cena no primeiro ato cujo único propósito é explorar a nudez de suas atrizes (aparentemente, The Grill conta com um vestiário digno de uma arena esportiva), já que nada acrescenta ao filme.

Mas o grande problema do longa é se ancorar em uma figura antipática, abusiva e agressiva cujo comportamento sugere alguma desordem de caráter inegável – algo que o roteiro parece encarar como mera particularidade do caráter de um homem rebelde. Para completar, a garçonete vivida por Rooney Mara é uma incógnita – mas não do tipo que inspira curiosidade, apenas tédio.

Com uma sequência final que confunde caos com profundidade simbólica, La Cocina tem suas virtudes (como a bela fotografia em preto e branco), mas estas se diluem entre seus inúmeros tropeços.

16 de Fevereiro de 2024

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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