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Dia 06
19) Reclamar das gerações anteriores e posteriores à nossa é uma prática amplamente adotada por integrantes de quase todos os espectros ideológicos: os mais velhos são uns irresponsáveis que destruíram nossas possibilidades futuras; os mais jovens são preguiçosos e mal-agradecidos demais para que consigam compreender e valorizar todos os sacrifícios que fizemos por eles. Todos já ouvimos versões destas frases (geralmente direcionadas a apenas um lado por vez, claro) partindo de indivíduos com 20, 50 ou 80 anos. Ora, em algum momento estou certo de ter sido um deles e de que voltarei a ser.
No entanto, se formos realmente objetivos em nosso propósito de atribuir os papéis de culpados e vítimas, é difícil negar que infelizmente estamos entregando aos mais jovens um planeta em condições consideravelmente piores do que aquelas em que o recebemos – e quando penso no mundo no qual meus filhos envelhecerão (percebam que nem estou pensando em netos), é difícil evitar certo desespero. Alterações climáticas extremas levando a desastres naturais recorrentes, falta de água e escassez de comida já seriam legados terríveis, mas ainda estamos conseguindo a proeza de permitir o retorno e a propagação do pensamento fascista, da intolerância (seja esta vestida de xenofobia, homofobia, transfobia, racismo ou misoginia) e da lógica da guerra. Até genocídios transmitidos em tempo real, com amplos registros documentais nas redes sociais, são respondidos com um “mas vejam bem...” que ao menos desfaz o questionamento das gerações pós-Segunda Guerra sobre como o Holocausto foi possível.
Saber/reconhecer tudo isso é algo que torna Langue Étrangère ainda mais tocante.
Dirigido por Claire Burger a partir de um roteiro co-escrito por Léa Mysius, o filme acompanha a adolescente francesa Fanny (Lilith Grasmug) em sua viagem para passar um mês na casa de uma amiga virtual, a alemã Lena (Josefa Heinsius). Iniciando com passos trôpegos, já que a ideia partiu mais de Susanne (Nina Hoss), mãe de Ellie, do que da garota (os pais de Fanny pagaram pela hospedagem), as duas jovens parecem destinadas a trinta dias infernais até que a informação de que a visitante sofre bullying na escola e havia tentado suicídio comove a outra, que suaviza sua posição. E este passa a ser, em essência, a dinâmica entre as duas: Fanny descrevendo todas as complicações de sua jovem existência e Lena buscando apoiá-la emocionalmente de algum modo.
Interpretada por Heinsius como uma jovem de olhar cansado demais para a própria idade, Lena é uma daquelas pessoas que parecem já ter nascido carregando nas costas o peso do mundo, assumindo a responsabilidade por todos à sua volta mesmo quando o inverso deveria estar ocorrendo. Preocupada com a instabilidade emocional da mãe desde que esta se divorciou de seu padrasto (o que além de tudo trouxe dificuldades financeiras para o cotidiano da família), a garota não poderia ser mais diferente de Fanny, cujos modos infantis, somados à sua expressão sempre fragilizada, sugerem uma personalidade vulnerável a qualquer uma das inúmeras pancadas que nos aguardam a cada esquina – e sua forma de lidar com isto acaba por aumentar seus problemas exponencialmente.
Algo, porém, as amigas têm em comum: relações problemáticas com as mães, mesmo que por motivos distintos. Enquanto Hoss projeta certa imaturidade emocional (que se agrava com a bebida), a Antonia interpretada por Chiara Mastroianni se apresenta como uma figura séria e centrada, mas que não parece extrair muito prazer da vida, optando também por fechar os olhos para determinadas questões a fim de não ser forçada a lidar com estas. Já as figuras paternas desapontam por outras razões - infidelidade ou intolerância – que seus comportamentos calorosos podem tentar disfarçar, mas sem muito sucesso.
Com isso, retornarmos à Lena, a única personagem de Língua Estrangeira que parece estar razoavelmente à vontade na própria pele e saber que tipo de pessoa quer ser, agindo para fazer jus a esta aspiração. Demonstrando integridade ao jamais sacrificar seus princípios, ela incorpora também o peso das gerações alemãs pós-guerra em seu sentimento de responsabilidade histórica – o que significa não apenas compreender a imagem negativa que o país ainda tem para muitos, mas lutar para que esta impressão jamais volte a corresponder à realidade, o que a faz se opor ostensivamente, por exemplo, ao avô eleitor da AfD, partido da extrema-direita alemã.
Sim, é uma pena que as jovens gerações tenham que se preocupar com política tão precocemente, mas esta é uma alternativa melhor do que deixar que as mais antigas (incluindo a minha) sigam destruindo seu futuro com tanta impunidade.
20) Co-produção entre Brasil, Taiwan, Argentina e Alemanha, Dormir de Olhos Abertos é um filme cujas origens multinacionais estão no centro temático de sua narrativa, que lida em boa parte com a ideia do imigrante que perde seu lugar no mundo por não conseguir mais se identificar totalmente com seu país de origem e por não ter permissão de se sentir como cidadão “real” do país que adotou como residência – uma perspectiva que a própria diretora alemã Nele Wohlatz compreende bem por ter morado mais de dez anos em Buenos Aires.
Aqui, no entanto, os imigrantes são chineses e taiwaneses e o país de escolha, o Brasil: escrito pela cineasta ao lado de Pío Longo, o longa tem início quando Kai (Liao Kai Ro), prestes a embarcar numa viagem de férias para Recife ao lado do namorado, recebe uma mensagem deste encerrando o relacionamento. Agora sozinha na capital pernambucana, a taiwanesa conhece o chinês Fu Ang (Wang Shin-Hong), que abriu uma loja de guarda-chuvas contando com tempestades que jamais chegam – e quando este deixa o espaço, Kai encontra apenas uma série de cartões postais nos quais uma amiga do sujeito, Xiao Xin (Chen Xiao Xin), registrou várias passagens de sua experiência no país enquanto morava com a tia em um prédio de classe média alta à beira da praia, convivendo com os funcionários desta (que, numa mistura da cultura do “quarto de empregada” brasileiro e dos sweatshops chineses, dividiam um pequeno quarto no apartamento).
Construído a partir da observação do cotidiano dessas pessoas, de suas dificuldades de adaptação, do racismo que enfrentam e do apoio que oferecem umas às outras, o filme não investe em uma trama estabelecida, mas no drama e no humor que surgem de situações que vão do prosaico (uma discussão sobre culinária brasileira e particularidades da língua portuguesa) ao extremo (como uma melancia atirada de um apartamento ou a hostilidade de dois vizinhos fantasiados de marinheiros no Carnaval). No processo, Wohlatz cria uma proximidade notável entre o espectador e seus personagens, levando-nos a vivenciar suas dificuldades e permitindo que enxerguemos o país a partir de uma ótica distinta e pouco lisonjeira – e a decisão de não incluir personagens brasileiros (com exceção de dois ou três, todos com curta participação) é instrumental neste propósito, incluindo, claro, uma que recita o hit “é como se fosse da família” ao mencionar a funcionária que trabalha em sua casa.
Por outro lado, a estrutura da narrativa acaba sacrificando um pouco o envolvimento do público com Kai, que domina o primeiro ato graças à performance divertida e carismática de sua intérprete e que de repente some durante boa parte da projeção enquanto descobrimos as histórias vividas por Xiao Xin, que, ainda que também vivida por uma atriz eficiente, é introspectiva demais para atrair o mesmo tipo de afeto despertado por Kai e por Fu Ang.
Produzido por Emilie Lesclaux e Kleber Mendonça Filho, Dormir de Olhos Abertos é um filme que divide sua sensibilidade com O Som ao Redor e Aquarius – e não consigo pensar em um elogio maior para este belo trabalho de Nele Wohlatz.
21 de Fevereiro de 2024