Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
04/01/2013 | 01/01/1970 | 5 / 5 | 5 / 5 |
Distribuidora | |||
Vitrine Filmes | |||
Duração do filme | |||
131 minuto(s) |
Dirigido por Kléber Mendonça Filho. Com: Irandhir Santos, Maeve Jinkings, Gustavo Jahn, W.J. Solha, Irma Brown, Lula Terra, Yuri Holanda, Clébia Souza, Albert Tenório, Nivaldo Nascimento, Mauricéia Conceição.
O Brasil é um país de dimensões continentais cuja produção cinematográfica reflete sua extensão territorial. Em qualquer ano, basta analisarmos cinco ou seis filmes produzidos em regiões distintas da nação para constatarmos a diversidade temática, estética e de linguagem que gera longas que poderiam perfeitamente ter sido realizados em planetas diferentes. Há comédias rasteiras e popularescas, exercícios de estilo, experimentações narrativas, dramas densos e recriações históricas.
E há O Som ao Redor, primeiro longa de ficção do crítico Kléber Mendonça Filho.
Escrito pelo cineasta e dividido em três partes, o filme se espalha entre uma dúzia de personagens que, habitando uma rua de Recife, protagonizam pequenos conflitos despertados pela convivência próxima, dão vazão a insatisfações que um velho comunista chamaria de “pequeno-burguesas” (e que a geração Internet batizaria como #ClasseMédiaSofre) e tentam extrair o máximo de felicidade a partir do mínimo possível de estímulo. Neste sentido, O Som ao Redor se revela não um estudo de personagens, mas um autêntico estudo de classe.
Contidos por grades onipresentes que, visando trazer maior segurança aos moradores, soam como uma opressiva prisão, os personagens enfocados pelo diretor expressam sua humanidade e seus desejos de liberdade como podem: um garoto tenta jogar bola na rua (sendo sempre frustrado por algo), adolescentes se beijam nos cantos do condomínio e anônimos pintam mensagens de amor no asfalto numa tentativa frustrada de escapar das limitações cinzas do concreto. Assim, quando a fantástica montagem corta bruscamente de um plano que traz um horizonte repleto de prédios para outro que enfoca várias garrafas em uma mesa, criando um raccord gráfico sutil e belo, percebemos a ironia fina do cineasta que, ainda mais importante, não se preocupa em martelar sua mensagem na cabeça do espectador.
Resgatando elementos específicos de seu ótimo curta Eletrodoméstica, de 2005, Mendonça demonstra carinho particular ao enfocar o cotidiano de Bia (Jinkings), uma dona de casa que passa as noites em claro em função dos latidos constantes do cão do vizinho e que tenta trazer alguma cor aos seus dias ao masturbar-se com o auxílio da máquina de lavar roupas e ao fumar um baseado cuja fumaça imediatamente suga com o tubo do aspirador de pó, convertendo seus eletrodomésticos em ferramentas de sobrevivência em um cotidiano enlouquecedoramente prosaico e sem propósito. Evocando a solidão de Bia em um plano particularmente belo no qual a mulher pode ser vista sentada, à noite, no canto do quadro dominado pela sala mergulhada na escuridão, o diretor é hábil também ao enfocar a harmonia pontual presente em sua vida – como no lindo e intimista momento no qual, deitada no sofá, ela recebe uma massagem improvisada dos filhos.
Implacável ao retratar esta classe média como um grupo que, mesmo bem intencionado, parece cego às diferenças econômicas e sociais do país, o filme pode ter seu centro temático resumido pela cena que traz uma reunião de condomínio na qual uma moradora reclama do fato de sua revista Veja (claro) chegar “fora do plástico” e durante a qual o protagonista, mesmo saltando em defesa do humilde porteiro do prédio, não hesita em abrir mão do voto que poderia efetivamente salvá-lo para poder sair mais cedo da reunião e se encontrar com uma garota – e este mesmo personagem, tentando demonstrar compreender a luta diária da família de sua empregada doméstica, compara o subemprego do humilde neto da diarista com seus próprios “esforços” ao fazer intercâmbio no exterior, numa condescendência cega, absurda e, mesmo bem intencionada, ofensiva.
Equilibrando-se com maestria entre o humor e uma linguagem que beira o experimental (uma marca registrada dos curtas de Mendonça), O Som ao Redor é capaz de, num momento, trazer uma personagem manifestando horror diante de um suicídio apenas com o objetivo de pedir desconto no aluguel para, no instante seguinte, mergulhar num pesadelo sombrio que retrata dezenas de figuras ameaçadoras saltando os muros da vizinhança – uma representação intrigante da paranoia/culpa capitalista em seu temor constante de que os miseráveis finalmente se rebelem contra a opressão econômica e arrebentem a represa que os mantêm aprisionados (e não é à toa que, em certo ponto da projeção, vemos um amontoado de barracos sufocados em meio a prédios altos e luxuosos).
Abrindo a narrativa com uma sequência de fotos em preto-e-branco (outra marca do diretor) que retratam aspectos duros da vida dos trabalhadores rurais nos latifúndios, o filme estabelece outra comparação inteligente ao demonstrar que, de certa maneira, a lógica passada se mantém, já que a rua na qual a história se passa poderia perfeitamente ser encarada como uma atualização urbana daquela realidade, posto que o velho Francisco (vivido por Solha como um homem habituado a ser obedecido) não só é dono de boa parte dos imóveis locais como ainda mantém os descendentes ao seu redor, trabalhando e cuidando dos negócios (ou das “terras”) da família. Da mesma maneira, é interessante observar como a filha da velha diarista de João (Jahn), ao contrário da afável mãe, exibe um ar constantemente irritado, num indício da frustração crescente das novas gerações diante da opressão social e econômica sob a qual vivem há séculos.
Num eco ao elenco homogêneo que emprega um tom apropriadamente melancólico em suas interações, O Som ao Redor é beneficiado ainda por um instigante desenho de som que, em vez de simplesmente refletir a realidade, é empregado para sugerir ideias, sentimentos e lembranças – desde a batida ritmada que acompanha a caminhada noturna de Francisco até o ranger crescente e tenso do elevador na sequência final, passando pelas risadas das crianças enquanto vemos os seguranças da rua recepcionando o irmão do chefe. Além disso, Mendonça é corajoso ao fugir do realismo que adotara até então ao investir, no terceiro ato, em uma abordagem que beira a fantasia, trazendo a visão nostálgica de um homem que enxerga subitamente a rua de sua infância no lugar da contemporânea e surpreendendo o público com uma cascata de sangue que, quase subliminar em sua aparição, sugere um mundo de raiva contida e frustração por parte do protagonista. Como se não bastasse, a visita de João e Sofia (a adorável Irma Brown) ao passado da família do avô, com direito a uma passagem por um cinema agora tomado por mato e mofo, funciona como uma bem-vinda homenagem à própria Arte que retrata o casal – e aqui mais uma vez o desenho de som interfere para complementar o lindo conceito.
Estabelecendo-se como um filme sobre anseios, angústias e aspirações de uma classe social que parece incerta de seu papel no mundo, O Som ao Redor também é uma narrativa sobre a perda de nossas raízes ou, no mínimo, da triste destruição de nossa história. “A casa em que tu morou vai ser derrubada”, diz João à namorada, em certo instante – uma fala literal, mas que poderia perfeitamente surgir como metáfora. E, assim, quando a garota visita o lugar no qual passou parte da infância e entra no antigo quarto, sentimos a perda iminente de um aposento que, mesmo comum, assume contornos de um museu particular. Assim, quando ela percebe que a constelação de papel que colara no teto permanece lá e pede que o namorado a levante, o gesto surge como um símbolo magistral de alguém tentando tocar, pela última vez, as estrelas do céu de sua infância enquanto estas não são arrancadas pela inexorável e cruel passagem do tempo.
30 de Janeiro de 2013