Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
28/01/2011 | 01/01/1970 | 5 / 5 | 5 / 5 |
Distribuidora | |||
Duração do filme | |||
100 minuto(s) |
Dirigido por Debra Granik. Com: Jennifer Lawrence, John Hawkes, Dale Dickey, Garret Dillahunt, Sheryl Lee, Isaiah Stone, Ashlee Thompson, Shelley Waggener, Lauren Sweetser, Marideth Sisco, Ronnie Hall.
Povoado por um bando de gente triste e miserável em um mundo cinza e sem vida que poderia perfeitamente se passar por “pós-apocalíptico”, Inverno da Alma seria o candidato ideal para se transformar numa produção carregada de estereótipos e caricaturas ao enxergar seus personagens como criaturas dignas de desprezo ou pena. Em vez disso, a diretora Debra Granik cria uma narrativa densa e multifacetada, permitindo que aquelas pessoas desafiem nossos preconceitos e se apresentem como indivíduos imperfeitos, sim, mas jamais unidimensionais.
Baseado em um livro de Daniel Woodrell e co-roteirizado por Granik e Anne Rosellini, o filme acompanha a jovem Ree (Lawrence), que vive num velho casebre de madeira ao lado dos dois irmãos pequenos e da mãe catatônica. Dedicando seus dias àquela pequena e sofrida família, ela tenta alimentar as crianças e mantê-las na escola, sendo obrigada a aceitar o auxílio dos vizinhos até mesmo para evitar que o magro cavalo que possuem morra de fome – e, assim, chega a ser dolorosa, a ironia de testemunhar outras pessoas de sua idade praticando cuidados domésticos na escola enquanto treinam com bonecos que simulam bebês. Porém, se a existência de Ree já seria digna de desespero, a coisa se torna ainda pior quando o xerife da cidade (Dillahunt, sempre interessante) informa a garota que seu pai, preso por fabricar metanfetamina, colocou a casa como garantia da fiança e desapareceu – o que levará a família ao despejo caso ele não se apresente ao tribunal em uma semana. Pressionada, a menina passa a procurar o pai na região, iniciando uma busca mal vista pelos vizinhos e familiares, que chegam a questionar se ela “não tem um homem” que possa fazer aquilo.
A resposta, claro, é “não”: sua mãe mal consegue pronunciar uma palavra, seus irmãos são crianças, sua melhor amiga está casada com um sujeito que segue o padrão de brutalidade da comunidade (“Ele nunca diz por quê. Diz apenas ‘não’.”.), seus vizinhos parecem condenar seus esforços e seu tio, “Teardrop” (Hawkes), é um sujeito ameaçador que traz armas casualmente para a mesa e a proíbe de continuar a busca. Além disso, numa região na qual todos parecem ter relações de parentesco, o sangue não conta tanto quanto a capacidade de se manter calado (“Conversas criam testemunhas”), já que, para evitar a aproximação da Lei, todos são ao mesmo tempos cúmplices e inimigos. Assim, o máximo de apoio oferecido a Ree são trocados, alguns mantimentos e, claro, drogas para que ela possa fugir daquela realidade – as quais ela insiste em recusar.
Rodado em digital (com a câmera Red) e contando com uma fotografia belíssima de Michael McDonough, Inverno da Alma transforma em verdadeiras pinturas a miséria daquele universo, usando com inteligência as locações para evocar não só a falta de recursos financeiros daquela comunidade, mas também a esterilidade emocional que envolve seus habitantes. Mantendo Ree como centro de todas as cenas, a diretora Debra Granik leva o espectador a se colocar na situação da garota com facilidade, permitindo que vejamos apenas o que ela vê e saibamos apenas o que ela sabe. Enquanto isso, o design de produção de Mark White merece aplausos pelos detalhes: se a casa da heroína é vista como um ambiente claustrofóbico, pobre, desarrumado e triste, é também o único Lar que esta conhece – e os desenhos infantis colados na geladeira e os brinquedos velhos espalhados pelo quintal deixam claro que, mesmo não sendo o mais feliz dos lugares, aquele casebre é fundamental para a pequena família.
Vivendo a protagonista como uma jovem forte e persistente que, diante da prisão do pai e da doença da mãe, assumiu sem reservas a chefia da família, Jennifer Lawrence carrega o filme com uma segurança impressionante. Reparem, por exemplo, como seus modos carinhosos ao lidar com os irmãos logo são substituídos por uma expressão dura e desafiadora ao confrontar figuras de autoridade como o xerife ou o oficial de fiança, revertendo ao mais puro medo diante do tio imprevisível – e percebam, também, como Lawrence expõe a fragilidade natural da garota na única cena em que esta se expõe de fato ao implorar à mãe, como uma criança amedrontada, que a ajude “só desta vez”. Além disso, a atriz exibe toda a sua preparação meticulosa para o papel não só através do sotaque característico (que soa impecável ao lado dos figurantes que realmente habitam a região), mas também na maneira com que prepara um esquilo antes de cozinhá-lo, como se tivesse passado a vida desempenhando aquelas tarefas.
Da mesma forma, John Hawkes é hábil ao encarnar Teardrop como um sujeito que emprega o jeito durão e ameaçador como defesa pessoal, mas também como escudo para proteger a família – e sua trajetória ao longo da narrativa representa um dos aspectos mais intrigantes do filme, tornando-o caro ao espectador mesmo sem fazer concessões quanto às suas patentes falhas de caráter. Mas talvez a performance mais fascinante no elenco secundário seja a de Dale Dickey, que, como Merab, esposa do brutal Thump Milton, consegue retratar a preocupação de sua personagem com o dilema de Ree ao mesmo tempo em que deixa claro para o público que isto não a impedirá de até mesmo matar a garota caso isto se torne “necessário” – e é ela a primeira pessoa a deixar claro para a protagonista o destino de seu pai mesmo sem escancará-lo (“Se você está me ouvindo, criança, já tem sua resposta”). Aliás, a qualidade das atuações de Inverno da Alma é tamanha que somos perfeitamente capazes de compreender como a cena que se passa em um lago, à noite, pode revelar até mesmo uma estranha forma de carinho através de incidentes tão mórbidos, o que não deixa de ser admirável.
No final das contas, porém, não há como fugir do fato de que Ree, por mais forte e íntegra que seja, continua a ser fruto de seu ambiente – e se tem vergonha do pai, não é porque este fabricava drogas, mas sim por ter traído os comparsas ao falar com a polícia. E é precisamente por isto que a agridoce e complexa cena final amarra a narrativa com perfeição e coragem: embora queiramos desesperadamente enxergar uma luz no futuro daquela menina tão admirável, a triste verdade é que o ciclo de miséria, violência e tristeza no qual ela vive jamais chegará ao fim.
14 de Fevereiro de 2011
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