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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
18/07/2008 01/01/1970 5 / 5 5 / 5
Distribuidora
Duração do filme
153 minuto(s)

Batman - O Cavaleiro das Trevas
The Dark Knight

Dirigido por Christopher Nolan. Com: Christian Bale, Heath Ledger, Michael Caine, Gary Oldman, Morgan Freeman, Aaron Eckhart, Maggie Gyllenhaal, Monique Curnen, Cillian Murphy, Chin Han, Nestor Carbonell, Eric Roberts, Anthony Michael Hall, William Fichtner.

Batman – O Cavaleiro das Trevas é um filme exaustivo. Ao sair do cinema, eu tinha a clara impressão de ter sido pisoteado e arrastado por uma manada de touros impiedosos, tamanha a demanda emocional cobrada pelo longa de Christopher Nolan. E ainda que tenha várias e eficazes seqüências de ação, o sentimento de exaustão não se originava destas, mas sim do intenso duelo psicológico protagonizado por seus personagens - afinal, não satisfeito com a idéia de simplesmente matar seus oponentes, o Coringa vivido por Heath Ledger exibe um propósito ainda mais cruel: o de destruí-los psíquica e emocionalmente, levando-os a abraçar o que de mais sombrio possuem em suas naturezas.


 

Escrito por Nolan ao lado de seu irmão Jonathan a partir de argumento concebido com David S. Goyer, O Cavaleiro das Trevas inicialmente nos apresenta a uma Gotham City que, aparentemente, encontra-se mais controlada do que aquela vista no filme anterior: ciente de que os marginais aprenderam a temer a figura justiceira de Batman, o tenente Gordon (Oldman) freqüentemente acende o bat-sinal apenas para inibir a ação dos bandidos, que imediatamente deixam as ruas ao suspeitarem que o herói encontra-se próximo. Ao mesmo tempo, a cidade (assim como a promotora Rachel Dawes, que troca o rosto de Katie Holmes pelo de Maggie Gyllenhaal) se encontra encantada com a figura galante e corajosa do promotor Harvey Dent (Eckhart), que, incorruptível, vem lutando para enjaular os mafiosos de Gotham. Em contrapartida, cidadãos comuns, inspirados por Batman, vêm se disfarçando de Homem-Morcego enquanto tentam fazer justiça com as próprias mãos – o que, é claro, acaba freqüentemente resultando em problemas. É neste cenário confuso que os chefes da Máfia, fartos de Batman e Dent, acabam dando carta branca para que um estranho que insiste em usar maquiagem de palhaço sobre suas profundas cicatrizes resolva seus problemas: o Coringa.

 

Buscando basear a história em um universo calcado na realidade (assim como ocorria em Batman Begins), Christopher Nolan mais uma vez se esforça para convencer o espectador de que, exageros à parte, a existência de uma criatura como Batman (ou o Coringa) não é algo de todo absurdo: cansado da dificuldade de movimentos provocada por seu uniforme, por exemplo, o milionário Bruce Wayne (Bale) trabalha ao lado de seu mordomo Alfred (Caine) e do cientista Lucius Fox (Freeman) para conceber uma nova roupa que lhe ofereça maior liberdade; e até mesmo a operação de captura de um bandido em terra estrangeira tem seus detalhes cuidadosamente planejados, não deixando nada ao acaso. Contribui, para este realismo, a insistência do diretor em evitar uma abundância de efeitos digitais, que são trocados por trucagens mecânicas absolutamente convincentes – e num dos raros momentos em que a utilização do computador se torna óbvia, durante uma manobra de Batman em sua moto, sentimos uma estranheza proveniente justamente da constatação de que aquilo não combina com a abordagem presente no restante da projeção.

 

Além disso, como os personagens soam humanos, distanciando-se das figuras unidimensionais presentes em projetos similares, nosso investimento emocional na história cresce exponencialmente, já que passamos a temer por seus destinos – e, mais uma vez, Nolan acerta em cheio ao mergulhar Gotham City num clima de medo e incerteza que certamente espelha os sentimentos de uma Sociedade cada vez mais oprimida pelo acaso da violência. Assim, da mesma maneira que os habitantes de Gotham experimentam o pânico provocado pelas constantes ameaças do Coringa, nós vivemos o choque causado por atos de indizível brutalidade cuja natureza aparentemente aleatória apavora justamente por ser imprevisível, sejam estes o assassinato de uma criança por policiais terrivelmente despreparados, a execução de três jovens por traficantes cúmplices de autoridades, a morte de civis iraquianos por militares norte-americanos ou (no caso dos ianques) o ataque de extremistas islâmicos em pleno coração de Manhattan. Neste sentido, aliás, O Cavaleiro das Trevas ainda busca acrescentar uma discussão política velada através das ações de seu herói, que infringe o direito à privacidade de seus conterrâneos em sua tentativa de encontrar o vilão – e se num filme menor isto seria visto como uma estratégia inteligente, aqui o sensato Lucius Fox questiona a atitude de Batman, propondo uma discussão ética que remete diretamente às atuais políticas do governo Bush possibilitadas pelo infame “Ato Patriótico”.

 

Porém, para que o pavor de Gotham e as ações extremas do próprio Batman possam realmente refletir nosso medo, é fundamental que a ameaça que enfrentam seja palpável, fugindo do cartunesco e do fantasioso – e, assim, o Coringa visto neste longa é o ideal: sempre ameaçador, o vilão encarnado pelo falecido Heath Ledger é uma figura que exala instabilidade e perigo. Dono de uma risada que, mesmo ensandecida, surge congelante na crueldade que evidencia, o personagem em nada se parece com aquele vivido por Jack Nicholson no Batman de Tim Burton (e que funcionava maravilhosamente no contexto daquela produção, mas que aqui soaria deslocado e ridículo): enquanto Nicholson e Burton nos apresentavam a uma criatura bizarra, mas divertida ao seu próprio modo, o Coringa de Ledger nos repele, incomoda – e o fascínio que acaba exercendo sobre o espectador é similar ao de um desastre de automóvel, já que olhamos para os destroços com uma curiosidade mórbida ao mesmo tempo em que desejamos nos afastar rapidamente dali.

 

Dominando a tela desde sua primeira aparição, quando vemos sua figura apropriadamente torta e de cabelos desgrenhados, Ledger emprega uma voz que em tudo difere do tom grave e reprimido do Ennis Del Mar de O Segredo de Brokeback Mountain – e se naquele filme ele mal abria a boca ao articular as palavras, aqui sua voz anasalada e inconstante mostra-se fluida como a direção de seu olhar, que jamais se foca por muito tempo no mesmo objeto. E se todos estes elementos já servem para externar o desequilíbrio interno do personagem, ainda mais brilhante é a decisão do ator de passear a língua constantemente pela boca, sempre investigando as próprias feridas, num insight que reflete o tique de qualquer um que já descobriu alguma superfície estranha no céu da boca, na gengiva ou no interior das bochechas.

 

Conseguindo a proeza de transformar um personagem que abraça a caricatura em um homem real, Ledger explora ao máximo o potencial do belo roteiro dos irmãos Nolan, que acerta ao não tentar apresentar uma versão definitiva para a origem do vilão – que, como o próprio Mal, surge sem explicações ou passado (isto se aplica, também, ao Anton Chigurh vivido por Javier Bardem em Onde os Fracos Não Têm Vez – cujo hábito de decidir a sorte de suas vítimas por uma moeda, diga-se de passagem, também encontra eco nas ações de outro personagem de O Cavaleiro das Trevas). Assim, como é simplesmente impossível compreender o que move este Coringa (ele não parece interessado em dinheiro ou poder), sua imprevisibilidade torna-se ainda maior, assim como a ameaça representada por sua presença – e toda vez que ele surge na tela, ficamos tensos e à espera do pior. De certa forma, aliás, o Coringa de Ledger remete a duas figuras já icônicas da recente cinematografia norte-americana: enquanto sua natureza anárquica e seus esforços rumo ao caos lembram as ações do Tyler Durden de Clube da Luta (a esquizofrenia também é uma característica que dividem), seu projeto de vida reflete aquele do John Doe de Se7en, que também manobrava pelo declínio moral de seu oponente para completar seu Grande Plano (e aqui o detetive Mills é substituído por Batman e por Harvey Dent).

 

No entanto, a força de Coringa como personagem seria diminuída se não acreditássemos, também, na intensidade de seu inimigo – e, ao contrário de tantos outros heróis do gênero (como o certinho Superman ou mesmo o bonzinho Peter Parker), Bruce Wayne é um homem complexo, constantemente torturado pelas conseqüências de suas ações. Lamentando ter despertado não só o surgimento de “justiceiros” como também o de vilões extremados como o Coringa, Wayne deseja desesperadamente encontrar uma solução que lhe permita abandonar a máscara e viver uma existência normal – e, assim, suas esperanças em Harvey Dent soam tocantes por denunciarem sua fragilidade emocional. E se assistir a O Cavaleiro das Trevas é exaustivo, ainda mais extenuante é ser o próprio, já que poucas vezes um herói foi tão cobrado física, emocional e psicologicamente como Bruce Wayne – e Christian Bale encarna este cansaço (e também a determinação resultante) de maneira impecável. Assim, os melhores momentos do longa são aqueles que se concentram no confronto entre Batman e Coringa, que, de maneira peculiar, representam dois lados da mesma moeda (olha aí o símbolo de volta): e quando o vilão cita uma fala de Jerry Maguire (!), percebemos que aquilo pode até ser uma piada divertida (e é), mas também funciona por exprimir a mais pura realidade.

 

Enriquecido também por um elenco secundário extremamente coeso, O Cavaleiro das Trevas emprega cada personagem com um propósito específico: Alfred representa o calor humano tão importante para manter Bruce Wayne ligado ao mundo real; o tenente Gordon funciona como um aliado estratégico fundamental e a crença remanescente nas Instituições; Lucius Fox oferece ao espectador a impressão de que todas aquelas bugigangas são plausíveis; e Rachel Dawe encarna a esperança de Wayne em um futuro melhor. E chegamos, finalmente, ao Harvey Dent representado de maneira trágica por Aaron Eckhart, que retrata com intensidade a instabilidade crescente de um homem que, mesmo determinado a fazer o que é certo, sente cada vez mais o peso da pressão exercida por seus oponentes – e é justamente por acreditarmos naquele homem que sua trajetória se torna tão dolorosamente trágica.

 

Tecnicamente impecável, o filme não apenas conta com um design de som brilhante (observem, por exemplo, como o som da capa de Batman batendo sob a força do vento acaba ajudando a conferir verossimilhança a uma ação improvável, já que, de outra forma, estranharíamos o fato do herói voar tão bem), como também se beneficia do ótimo design de produção de Arthur Marx, que estabelece o escritório de Dent como um local repleto de pastas entulhadas, evidenciando a natureza trabalhadora do personagem, além de criar um novo QG para o Homem-Morcego que, branco e asséptico, estabelece um curioso (e eficaz) contraste com a bat-caverna do primeiro longa. Enquanto isso, a trilha concebida a quatro mãos por Hans Zimmer e James Newton Howard pontua bem a tensão e o drama que se alternam ao longo da projeção, ao passo que a ótima utilização das locações (o projeto foi rodado em Chicago) ajuda a basear Gotham City no mundo real, fugindo da estilização dos trabalhos de Burton e soando mais plausível até mesmo do que Batman Begins, que ainda trazia aqueles trilhos suspensos que rumavam em direção à colossal torre Wayne. Finalmente, até as tentativas de humor, que antes pareciam estranhas àquele universo, agora soam mais orgânicas e eficazes.

 

Certamente um dos “filmes de super-herói” mais adultos e densos já concebidos por Hollywood, O Cavaleiro das Trevas é inteligente o bastante para compreender que nem sempre ser “herói” implica em agir da maneira esperada – e se questionei, em Batman Begins, o fato de Wayne revelar sua identidade para Rachel, aqui fui obrigado a aplaudir a coragem de um homem que, em prol do bem maior, não hesita em assumir a condição de maldito. E ver a figura claudicante, vulnerável e trágica de Batman mergulhar nas sombras de uma cidade desesperada por figuras heróicas é, desde já, umas das imagens mais fortes e tristes que o gênero já produziu.

17 de Julho de 2008

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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