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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
05/09/2008 01/01/1970 4 / 5 / 5
Distribuidora
Universal Pictures

Linha de Passe
Linha de Passe

Dirigido por Walter Salles, Daniela Thomas. Com: Sandra Corveloni, João Baldasserini, Vinícius de Oliveira, José Geraldo Rodrigues, Kaique Jesus Santos.

 

Cineasta inquestionavelmente bem-sucedido e com uma carreira internacional promissora, Walter Salles demonstra possuir, em Linha de Passe, uma admirável humildade artística (traço que divide com o irmão, o excepcional documentarista João Moreira Salles) ao não hesitar em voltar a dividir os créditos de direção com Daniela Thomas, sua parceira nos ótimos Terra Estrangeira e O Primeiro Dia – algo pouco comum em uma área dominada pelo egocentrismo desenfreado. Ainda assim, o filme não deixa de investir em temas recorrentes na carreira solo do diretor, como a sentida ausência da figura paterna (Central do Brasil, Água Negra) – e é notável observar que, sem qualquer indício de pieguice ou maniqueísmo, Linha de Passe não apenas comove profundamente como ainda nos leva a torcer desesperadamente por um final feliz para os complexos indivíduos aos quais nos apresenta.

 

Escrito por Thomas ao lado de George Moura e Bráulio Mantovani, o longa inicialmente nos apresenta de maneira fragmentada aos seus personagens, permitindo que os acompanhemos em momentos de seu cotidiano nada cinematográfico: Dênis (Baldasserini) é um motoboy que mantém uma relação distante com o filho que teve com a namorada; Dinho (Rodrigues) se esforça para abandonar o passado de garoto-problema ao abraçar a religião; Dario (Oliveira) tenta emplacar uma carreira como jogador de futebol; e Reginaldo (Santos) passa os dias andando de ônibus em busca do pai motorista. Levando existências humildes, os quatro irmãos moram com a mãe, a empregada doméstica Cleuza (Corveloni), que, grávida do quinto filho (mais um que não contará com o pai), se esforça para manter a família unida.

 

Adotando uma abordagem que, assim como em Central do Brasil, remete ao neo-realismo, os cineastas inserem esta pequena ficção em um grande contexto quase documental, realçando-o através da utilização de figurantes não-profissionais que, assim como aqueles que ditavam suas cartas para a Dora vivida por Fernanda Montenegro, aqui emprestam seus rostos marcantes e expressivos a seqüências como a que traz dezenas de aspirantes a jogador apresentando seus comoventes sonhos de grandeza diante de uma minúscula janelinha enquanto um funcionário sem rosto anota seus nomes e posições no campo. Da mesma maneira, o elenco principal do longa é composto por atores desconhecidos do grande público, o que imediatamente confere maior autenticidade aos personagens, que surgem na tela sem a bagagem das performances anteriores de seus intérpretes – e é mais do que apropriado que, servindo como centro emocional da narrativa, a atriz Sandra Corveloni tenha surpreendido ao sair premiada de Cannes em função de sua composição absurdamente eficaz em sua simplicidade. Mulher humilde e direta em seus medos e paixões, Cleuza é uma mãe carinhosa e preocupada que não hesita em fumar e beber durante a gravidez (o que, longe de ser um paradoxo, é apenas um atestado da ignorância conseqüente de uma vida sem recursos). Capaz de administrar uma surra com as mesmas boas intenções com que expressa seu apoio aos filhos, Cleuza é uma mulher absolutamente comum – e isto (aí, sim, paradoxalmente) a transforma numa figura profundamente cinematográfica.

 

Enquanto isso, os quatro jovens atores que completam aquela conturbada família se destacam por suas abordagens diferenciadas, mas igualmente apropriadas a cada um dos personagens: ainda que “trabalhador”, o Dênis de Baldasserini é um rapaz imaturo que encara as necessidades do filho pequeno como um inconveniente à sua vida de farra e falta de compromissos – o que, curiosamente, não deixa de fazê-lo sentir culpa por sua negligência como pai. Assim, ao investir numa opção arriscada que se contrapõe à forma com que foi criado, ele mergulha num conflito interno que o imobiliza num momento particularmente inconveniente. Já José Geraldo Rodrigues encarna a fé de Dinho de maneira autêntica, sem transformá-la numa piada ou crítica ao personagem ou à religião de forma geral (e mesmo seu pastor é representado de maneira digna, preocupando-se com dinheiro, sim, mas também com seus fiéis – embora exiba uma crueldade ímpar ao atribuir o fracasso de suas “curas” à suposta falta de fé de seus seguidores). E se Vinícius de Oliveira reflete a distância de Central do Brasil em seu tamanho e no rosto marcado por espinhas – algo que o torna ainda mais autêntico num universo dominado por faces irretocáveis -, sua performance em Linha de Passe faz jus à promessa apresentada naquele filme, apresentando Dario como um garoto que aposta nos pés como meio de escapar de um futuro nada atraente (e sua angústia ao perceber que o prazo para se estabelecer como jogador profissional está se esgotando é um dos elementos mais eficazes do longa). Finalmente, o pequeno Kaíque de Jesus Santos reprisa a estréia promissora de Oliveira ao emprestar imensa naturalidade e inquestionável carisma a Reginaldo, cujo sonho de se tornar motorista de ônibus nada mais é do que um tocante esforço de aproximar-se do pai que não conhece. Aliás, seria fácil gastar mais três ou quatro longos parágrafos elogiando a força do elenco de Linha de Passe, já que até mesmo as menores participações surgem com homogênea eficácia (observem, por exemplo, o hilário cinismo da vizinha de Cleuza ao dizer: “Nós vamos ver desenho animado na televisão!” – num momento que só funciona graças ao timing preciso da atriz cujo nome, infelizmente, não consegui anotar).

 

Auxiliados pelo ótimo diretor de fotografia Mauro Pinheiro Jr. (também responsável pelo ótimo A Casa de Alice, similar em vários aspectos a este Linha de Passe), Walter Salles e Daniela Thomas mantêm a câmera sempre próxima de seus atores, capturando as menores mudanças em suas expressões e salientando, no processo, o tom intimista que nos torna ainda mais ligados aos personagens. Além disso, a fotografia triste e urbana estabelece, ao lado da trilha melancólica de Gustavo Santaolalla, um clima sufocante que só é aliviado nos instantes determinantes em que pequenas vitórias são conquistadas. E se a montagem se mostra surpreendentemente fluida ao manter uma alternância perfeita entre os vários personagens, elogios também devem ser feitos à sutileza dos detalhes com que o universo daquelas pessoas é apresentado ao público – desde a jaqueta jeans puída que Cleuza veste na festa do filho até o tênis cuja sola precisa ser amarrada com o cadarço para não se soltar durante um jogo.

 

Incluindo planos recorrentes de uma pia entupida cujo ralo, ao finalmente permitir a passagem da água, indica também a transição para o ato final da projeção e suas “resoluções”, Linha de Passe é particularmente fascinante em suas várias e significativas rimas visuais, como os quadros, similares em composição, que trazem Dinho rezando e se masturbando em instantes distintos ou os planos em que vemos Dario observar a cidade através das janelas do ônibus e do carro dirigido por supostos amigos que o encaram mais com curiosidade (como um bicho estranho de um universo distante) do que com afeto. Mas talvez o exemplo mais impactante da estratégia visual e narrativa dos cineastas seja aquele que diz respeito às inúmeras mãos estendidas ao céu que contrapõem (e equiparam) duas atividades coletivas que envolvem, à sua própria maneira, emoções intensas e fé cega: a religião e o futebol - que, claro, também se cruzam com certa freqüência e que funcionam, para aqueles personagens, como uma fuga de suas realidades e uma promessa vaga de felicidade futura (assim como o crime, para Dênis e, numa idealização humilde, a carreira de motorista de ônibus para Reginaldo).

 

Numa narrativa guiada por pais ausentes (nem mesmo a patroa de Cleuza parece ter marido), Linha de Passe é inteligente e corajoso o bastante para compreender que a única maneira de fazer jus à complexidade de seus personagens é permitir que estes continuem a levar suas vidas independentemente do desfecho do filme – e é na ambigüidade de suas resoluções e (re)começos possíveis que o filme de Walter Salles e Daniela Thomas oferece, depois de 108 minutos, seu último grande presente ao espectador.

05 de Setembro de 2008

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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