Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
09/04/2004 | 22/10/2003 | 2 / 5 | / 5 |
Distribuidora | |||
Duração do filme | |||
119 minuto(s) |
Dirigido por Jane Campion. Com: Meg Ryan, Mark Ruffalo, Jennifer Jason Leigh, Nick Damici, Sharrieff Pugh, Micheal Nuccio, Patrice O’Neal, Kevin Bacon.
Embora tenha sido amplamente divulgado como mais um exemplar do subgênero `serial killer`, Em Carne Viva demonstra pouco interesse em sua trama policial. Em vez disso, a cineasta neozelandesa Jane Campion procura desenvolver dois temas nada estranhos à sua obra, sendo o primeiro destes temas a grande diferença entre homens e mulheres no que diz respeito ao amor. Ao longo da projeção, Campion retrata todos os personagens masculinos como indivíduos instáveis e pouco confiáveis, contrastando com a natureza romântica e sonhadora das figuras femininas que costumam desiludir. Infelizmente, a necessidade de se concentrar nos elementos policiais da trama acabam impedindo que a diretora se aprofunde nas discussões pelas quais obviamente se interessa, transformando o filme em uma experiência fria e sem foco.
Roteirizado por Campion e pela romancista Susanna Moore (a partir do livro escrito por esta), Em Carne Viva gira em torno da professora de literatura Frannie Averey, que está trabalhando em seu novo romance. A fim de conhecer melhor as gírias que seus personagens deverão utilizar, Frannie solicita a ajuda de um de seus alunos, Cornelius, com quem se encontra em um bar decadente. Depois que o corpo de uma garota que também estivera no estabelecimento é encontrado, a professora recebe a visita do detetive Giovanni Malloy, que investiga o crime – e logo os dois se envolvem, embora ela suspeite que seu novo amante possa ter algum vínculo com a morte da moça. Como se não bastasse, Frannie ainda deve se preocupar com o estado emocional de sua irmã, que foi abandonada pelo namorado (um homem casado), e com o assédio de um ex-namorado.
Vivida por Meg Ryan, Frannie é a típica `heroína` dos filmes de Campion: sentindo-se constantemente deslocada, ela é uma mulher introspectiva e melancólica: falando sempre em um tom de voz baixo e triste, a professora é fascinada por palavras, chegando a cobrir as paredes de seu apartamento com citações e trechos de poesias. Aliás, seu amor pela Língua é tão grande que seu interesse por Malloy é despertado justamente quando o detetive emprega uma palavra pouco usual ao descrever o estado em que o cadáver da garota foi encontrado – e, mais tarde, ela chega a corrigir o inglês do namorado mesmo durante uma pesada discussão. É como se, ao se concentrar na precisão da ortografia e da gramática, Frannie evitasse encarar a solitária realidade em que vive, substituindo a experiência do amor pela simples descrição poética (e teórica) do mesmo.
E, assim, chego ao segundo tema abordado por Jane Campion em seu filme: o papel do sexo nas relações entre homens e mulheres. Começando com a natureza erótica do crime investigado por Malloy (que reflete a postura agressiva dos homens frente ao ato sexual), Em Carne Viva logo transforma o tema no ponto principal da história, já que os personagem estão sempre fazendo ou discutindo sexo. Porém, Campion faz questão de evitar qualquer toque de glamour nas cenas em que vemos Frannie e Malloy na cama: ao contrário de filmes como Instinto Selvagem e Assédio Sexual, os personagens de Em Carne Viva não protagonizam uma transa hollywoodiana e jamais são retratados como sex symbols; ao contrário, eles se relacionam de forma fria e desapaixonada, como se estivessem apenas saciando uma necessidade puramente animal (numa abordagem parecida com a do recente O Jovem Adam). Assim, depois da cópula (um termo mais apropriado para um ato realizado de maneira tão desinteressada), não é surpresa que Malloy se despeça de Frannie com um burocrático `Eu me diverti bastante. Obrigado.`
Mas é claro que a professora não abandona totalmente sua romântica visão sobre o amor: embora sua entrega inicial se dê mais por carência do que por paixão, Frannie parece acreditar na possibilidade de um relacionamento com mais `poesia` – algo que fica claro na cena em que é levada por Malloy a um bosque e, encantada com o gesto do detetive, começa a recitar alguns de seus versos favoritos (somente, é claro, para descobrir que não há nada de romântico no passeio, já que o sujeito tem outros objetivos em mente). Aliás, as diferenças entre Malloy e Frannie são ilustradas pela direção de arte: enquanto o apartamento da moça é calmo e arrumado, a delegacia na qual o sujeito trabalha é o retrato do caos, com suas goteiras e agitação constante. Além disso, o talentoso Mark Ruffalo (que sempre me faz lembrar do também brilhante Vincent D’Onofrio) é hábil ao retratar Malloy de forma ambígua e pouco atraente, chegando a utilizar um bigode que lhe confere uma aparência de inconfundível desleixo.
Infelizmente, o potencial das discussões promovidas por Em Carne Viva acaba sendo desperdiçado pela estrutura narrativa que o filme adota como caminho para desenvolver o tema: cada vez mais desgastado, o gênero `serial killer` vem seguindo sempre os clichês e as convenções consagrados por obras como M, o Vampiro de Düsseldorf, O Homem que Odiava as Mulheres, O Silêncio dos Inocentes e, é claro, Se7en: a ligação entre uma testemunha/quase-vítima e o assassino; as várias pistas deixadas por este, que insiste em desafiar a polícia; o comportamento suspeito de diversos personagens que poderiam se inocentar caso tivessem o mínimo de bom-senso; e assim por diante. No entanto, além de extremamente previsível (o número de suspeitos é tão pequeno que descobrir o(a) assassino(a) é algo facílimo), Em Carne Viva ainda comete o erro de subestimar a inteligência do espectador: por que, por exemplo, Frannie nada diz a Malloy sobre a tal tatuagem? Por que não menciona o assédio do ex-namorado? Simples: porque o filme depende disso para tentar manter o suspense; esclarecer tais questões eliminaria automaticamente cerca de 20 a 30 minutos de projeção, o que seria trágico para a diretora.
Para piorar, até mesmo a personalidade de Frannie se torna inconstante, mudando de acordo com as necessidades do filme: demonstrando ser uma mulher precavida, ela inicialmente exige ver a identificação de Malloy antes de permitir sua entrada no apartamento, mas, mais tarde, adota uma postura totalmente irresponsável ao entrar no carro de praticamente qualquer um que a convide. O resultado é que Em Carne Viva logo abandona suas ambições e cai no lugar-comum – e é sintomático observar que a maior repercussão provocada pelo filme diz respeito à nudez de Meg Ryan, cuja imagem sempre foi associada às personagens certinhas que costumava interpretar. Mas, por mais que a iniciativa da atriz mereça aplausos, é uma pena constatar que, afinal de contas, ela tirou a roupa por um filme que, ironicamente, também se encontra despido. Neste caso, de méritos artísticos.
18 de Abril de 2004