Datas de Estreia: | Nota: | ||
---|---|---|---|
Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
09/06/2006 | 17/03/2006 | 3 / 5 | / 5 |
Distribuidora | |||
Duração do filme | |||
117 minuto(s) |
Dirigido por Robert Towne. Com: Colin Farrell, Salma Hayek, Donald Sutherland, Eileen Atkins, Idina Menzel, Justin Kirk, Richard Schickel.
Orgulhoso de sua origem literária (como indica sua abertura e os créditos iniciais), Pergunte ao Pó é ambientando basicamente no mesmo período e na mesma região de Chinatown, criando um reflexo curioso com o trabalho de Roman Polanski que, não por acaso, foi escrito justamente por Towne. Encarada como um lugar hostil aos seus habitantes, a Los Angeles deste filme é uma devoradora de almas, transformando suas vítimas em indivíduos decadentes e falidos moral e financeiramente. Sua mais recente presa é o escritor Arturo Bandini (Farrell), um jovem ambicioso que se muda para a cidade certo de que, em pouco tempo, terá escrito o “grande romance norte-americano” e alcançado o sucesso e a fama, conquistando, no processo, mulheres lindas e sofisticadas. Infelizmente, falta a Bandini a experiência de vida necessária para criar suas histórias e, assim, ele logo se encontra sem dinheiro e morando em um hotel repleto de perdedores. É então que ele conhece a garçonete mexicana Camilla Lopez (Hayek), o que dá início a uma total reviravolta em seu cotidiano vazio.
Bandini, como logo fica claro para o espectador, representa a figura romântica clássica do escritor: um indivíduo solitário, amargurado e endividado cujos supostos impulsos criativos enfrentam imensas dificuldades para se traduzirem em trabalhos finalizados: sempre sentado diante de sua máquina de escrever, ele repete constantemente a ação de arrancar o papel da máquina, embolando-o e atirando no lixo com um gesto de raiva. (Não deixa de ser triste que este ato tenha se tornado obsoleto com o surgimento do computador, já que era um símbolo palpável do tumulto criativo do artista e uma maneira deste externar e, conseqüentemente, tentar vencer sua frustração. De certa forma, ver um escritor apertando a tecla backspace repetidamente jamais terá a mesma eficácia. Mas divago.) Inseguro como boa parte dos autores, Arturo sempre carrega consigo várias cópias de seu único trabalho publicado, distribuindo-as com um orgulho que, em parte, oculta a tristeza de reconhecer que seu único momento de glória encontra-se num passado já distante. Tentando encarnar o ideal de sucesso que estabeleceu para si mesmo, ele não hesita em gastar o dinheiro que recebe inesperadamente em roupas elegantes nas quais não se sente à vontade e que provavelmente jamais usará, sempre lutando para encontrar a aprovação e o respeito dos demais – e é neste contexto que surge a curiosa personagem Vera Rivkin (Menzel), cujo passado trágico de rejeição a converte em candidata ideal ao posto de tiete, idealizando um Bandini que corresponde perfeitamente à visão que este tem de si mesmo.
Por outro lado, Arturo reconhece que, sonhos à parte, suas ambições enfrentam uma inimiga poderosa: a própria Los Angeles, que, com seu clima seco e terremotos intensos, parece odiar com paixão fatal aqueles que se atrevem a desbravá-la – e o personagem de Donald Sutherland, que mora no quarto ao lado do protagonista, representa justamente o provável futuro que aguarda o escritor. Neste sentido, a belíssima reconstituição de época feita pela equipe de Dennis Gassner é fundamental para que o filme funcione, já que, apesar de ser uma “terra de oportunidades e sonhos”, Los Angeles persegue seus habitantes com sua secura e a onipresente poeira que invade frestas, roupas, móveis e pensamentos – o que, associado ao simbolismo de um enterro, justifica o título poético da produção.
Porém, a hostilidade de Los Angeles não é representada apenas por seu clima, mas também pela natureza de uma sociedade que, na década de 30, ainda manifestava um violento preconceito contra mexicanos e judeus (os primeiros continuam como vítimas ainda hoje, quase 80 anos depois, como demonstram os protestos recentes contra os imigrantes nos Estados Unidos). Dono de um nome duplamente étnico (Arturo e Bandini), o protagonista envergonha-se da própria origem – e seu posicionamento à margem da Sociedade é simbolizado por sua forma de entrar no próprio quarto de hotel (não pela porta da frente, mas pela janela dos fundos). Assim, quando conhece Camilla e percebe a atração que sente pela moça, a reação de Arturo é raivosa, já que a garçonete encontra-se a anos-luz da imagem ideal da mulher norte-americana loira e de olhos azuis que sempre cruzou os sonhos do rapaz. Somando-se a esta frustração vem o temperamento explosivo, tipicamente latino, do escritor (descendente de italianos) e da garçonete mexicana, que extravasam, um no outro, o ódio por se apaixonarem justamente por outros párias. Em certo momento, quando Vera demonstra medo de Arturo, este diz: “Por que eu te machucaria? Por que eu me importaria em fazer isso? Eu nem sequer te amo!”, numa inversão de lógica que revela muito sobre a natureza de seu relacionamento com Camilla.
Esta, por sua vez, parece quase resignada ao seu destino, como na cena em que, claramente desanimada, olha para Arturo e desabafa: “Você é culto, mas não inteligente. Não é rico nem gentil. É grosseiro, nervoso e pobre”. O que ela não diz, mas deixa subentendido, é a conclusão: ainda assim, ela o ama e sabe que seu lugar é ao lado do escritor. Esta trágica ironia não passa despercebida por Arturo, que sabe que Camilla procurava por um norte-americano que oficializasse seu sonho de naturalização – e, em mais um exemplo da inteligência do filme, seu pretendente antes de Bandini foi justamente um homem cujo nome era, apropriadamente, Sammy White. “Isto basicamente resume suas ambições na vida, não?”, alfineta o protagonista. “Ser a sra. White!” - e, neste caso, o “White” não é apenas um sobrenome, mas uma metáfora racial. Apesar de tudo, a intensidade do relacionamento de Arturo e Camilla é tamanha (graças, também, à química sexual entre Farrell e Hayek) que se torna impossível negá-la.
Enquanto isso, Towne, um profissional veterano que praticamente ajudou a redefinir o modelo contemporâneo de roteiro com o seu Chinatown, volta a demonstrar sua competência ao criar uma narrativa que funciona maravilhosamente bem durante os dois primeiros atos, utilizando, entre outras coisas, uma narração em off que, ao contrário do que ocorre na maior parte dos filmes, revela-se fundamental à estrutura dramática do projeto. Além disso, há os diálogos, cuja acidez certeira funciona como um instrumento bem tocado: em determinado instante, por exemplo, Camilla, exibindo o rosto marcado por hematomas, explica para Arturo que estes são resultado de um acidente de automóvel – ao que o rapaz prontamente retruca: “Sammy estava dirigindo o outro carro?”.
Complementando a elegância visual de Pergunte ao Pó vem a ótima fotografia do experiente Caleb Deschanel, que, além de simultaneamente realçar a aridez da cidade e o aspecto sombrio do noir, atua de forma evocativa ao ilustrar os acontecimentos retratados pelo roteiro: observem, entre outras coisas, como o filme se torna caloroso e fartamente iluminado quando Arturo visita Vera e perceba que isto reflete justamente o momento em que o protagonista enxerga com clareza as razões de sua hostilidade ao lidar com Camilla. Aliás, a beleza estética do longa é tamanha que constantemente somos levados a divagar sobre a poesia do que estamos vendo: quando Camilla (que não sabe ler) acha uma página descartada por Arturo e a guarda no sutiã, por exemplo, vi-me tentado a refletir sobre a natureza deste gesto tão comum no Cinema e que simboliza um ato de amor (um objeto da pessoa amada levado junto ao coração) e de sedução (a atração feminina representada pelos seios). E é sempre bom quando um filme permite este tipo de viagem.
É terrivelmente frustrante, portanto, constatar que um projeto com tantos elementos ao seu favor acaba desmoronando em seu terceiro ato, que atira pela janela todo o cuidadoso trabalho feito nos 60 minutos anteriores. O primeiro sinal de que Pergunte ao Pó se perdeu vem com uma terrível fala de Camilla, que, ao discutir a Constituição norte-americana, pergunta: “O que é Felicidade?”. A partir daí, o filme se entrega de corpo e alma a um melodrama dos mais baratos, esforçando-se ao máximo para provocar lágrimas no espectador a partir do sofrimento dos amantes – algo impossível, já que, apesar de compreendermos suas dores e frustrações, não gostamos realmente do casal, já que Camilla e Arturo são cruéis e frios demais para despertarem nossa simpatia. Da mesma maneira, Towne decide que o forte retrato que estabelecera do preconceito sofrido por seus personagens não era suficiente e inclui uma cena ridiculamente óbvia em um cinema, o que, em vez de reforçar sua mensagem, acaba por enfraquecê-la. Como se não bastasse, a cena final entre os dois personagens é de uma artificialidade que trai toda a sutileza da hora inicial, o que é lamentável.
Assim, Pergunte ao Pó termina numa nota amarga – não em função de sua história, mas da promessa não realizada de se revelar um filme grandioso, digno de seu diretor.
08 de Junho de 2006
Comente esta crítica em nosso fórum e troque idéias com outros leitores! Clique aqui!