Datas de Estreia: | Nota: | ||
---|---|---|---|
Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
17/11/2017 | 17/11/2017 | 4 / 5 | 4 / 5 |
Distribuidora | |||
Netflix | |||
Duração do filme | |||
94 minuto(s) |
Dirigido por Chris Smith. Com: Jim Carrey.
O ano de 1999 foi fortíssimo para o Cinema hollywoodiano – e basta mencionar alguns dos títulos lançados naqueles doze meses para constatar isso: Clube da Luta, Magnólia, À Espera de um Milagre, O Informante, Matrix, De Olhos Bem Fechados, O Sexto Sentido, Toy Story 2, Quero Ser John Malkovich, Três Reis, O Gigante de Ferro, Uma História Real... a lista poderia continuar, mas vocês já fazem uma ideia clara do que apontei. E, no entanto, mesmo com tantos concorrentes dignos de nota, a exclusão de O Mundo de Andy, cinebiografia do comediante Andy Kaufman, foi sentida no Oscar, já que a indicação de Jim Carrey como Melhor Ator parecia uma aposta garantida. Em vez disso, o longa foi ignorado em todas as categorias, o que se torna ainda mais revoltante quando nos lembramos de que a Academia mais uma vez cedeu à Miramax de Harvey Weinstein e indicou nada menos do que Regras da Vida como Melhor Filme, encontrando espaço também para a fraude Lasse Hallström como Diretor.
Pois a performance de Carrey não apenas merecia ser reconhecida entre as finalistas, como, atrevo-me a dizer, deveria ter saído vitoriosa (Kevin Spacey levou por Beleza Americana). O que o ator faz em O Mundo de Andy é mais – muito mais – do que uma imitação hábil, um copiar de maneirismos e tiques verbais; é quase um trabalho mediúnico, levando o espectador a ter a sensação inquietante de estar vendo na tela não uma versão da figura real, mas sua cópia ressurrecta (Val Kilmer alcançou resultado similar em The Doors e também foi ignorado na temporada de prêmios). Aliás, quase tão interessante quanto o longa em si é o processo criativo do ator, que, capturado na época das filmagens por Lynne Margulies e Bob Zmuda (namorada e parceiro criativo de Andy Kaufman, respectivamente), agora é resgatado no documentário Jim & Andy: The Great Beyond – Featuring a Very Special, Contractually Obligated Mention of Tony Clifton (de agora em diante, apenas Jim & Andy). Arquivadas pelo estúdio na época da produção sob a justificativa de que, se divulgadas, levariam o público a considerar Carrey um babaca e prejudicariam comercialmente o projeto, as imagens dos bastidores de O Mundo de Andy são agora justapostas pelo diretor Chris Smith a uma longa entrevista com o próprio ator, que discute não só seu método, mas algumas de suas filosofias de vida.
Aliás, “método” não poderia ser uma palavra mais adequada neste caso, já que, ao insistir ser tratado por “Andy” ou “Tony” pela equipe durante toda a produção, Jim Carrey se mantinha no personagem durante todo o dia, estivesse diante das câmeras ou não – e caso quisesse falar com seu ator principal, o diretor Milos Forman era obrigado a mandar recados através de “Andy”, o que provocava imensa frustração no cineasta tcheco. Este tipo de processo, claro, ficou eternizado como “O Método” ao ser ensinado por Lee Strasberg e Stella Adler no Actor’s Studio e no Stella Adler Studio of Acting, tendo como seu primeiro grande embaixador no Cinema ninguém menos do que o melhor de todos os atores, Marlon Brando. Baseado nos ensinamentos do russo Constantin Stanislavsky (com quem Strasberg e Adler estudaram), “O Método” prega o mergulho completo do intérprete em seu personagem, incluindo seus sentimentos (a “memória emocional”) e sua composição física – pensem em De Niro engordando 30 quilos para viver Jake LaMotta, Christian Bale se tornando esquelético em O Operário, na obsessão de Meryl Streep com as nuances dos sotaques em suas composições ou em Daniel Day-Lewis se recusando a conversar com os atores que interpretavam desafetos de seu personagem em As Bruxas de Salem.
É claro que o que Carrey fez em O Mundo de Andy é um exemplo extremo – e, ao assistir a Jim & Andy, meu temor era o de que o documentário assumisse um tom masturbatório, levando o ator a soar arrogante enquanto explicava a “genialidade” de sua estratégia, como um mágico que mal pode ocultar o prazer de esfregar no rosto da plateia como a enganou. Este receio, contudo, é improcedente: sem exibir qualquer traço de egocentrismo ou narcisismo, Carrey fala de sua experiência quase como algo que ocorreu não por sua dedicação, mas independentemente desta, surgindo como resultado de sua fascinação antiga pelo estranho humor de Andy Kaufman.
Isto, diga-se de passagem, é outro elemento que o documentário explora bem, usando imagens de arquivo para ilustrar como, ao seu próprio modo, Kaufman foi um dos grandes representantes – e, em alguns aspectos, precursor - do “humor do desconforto” que Ricky Gervais desenvolveria com talento em The Office, por exemplo. Este tipo de humor é calcado não em piadas específicas, mas numa situação que traz alguém agindo – normalmente sem parecer perceber – fora do comportamento que consideraríamos socialmente esperado, o que provoca inquietação e espanto naqueles que o cercam (a “teoria da incongruência” concebida pelo teórico Noël Carroll gira em torno disso). Assim, quando Kaufman passava um espetáculo inteiro lendo O Grande Gatsby em voz alta ou se “tornava” praticante de luta livre para enfrentar apenas mulheres, o que ele buscava não era o riso generalizado, pois sabia que a maior parte do público ficaria apenas irritada (especialmente aquela que só queria ouvi-lo repetir os bordões de seu personagem da série Taxi); seu propósito, em vez disso, era divertir aqueles que entendiam que incomodar era o objetivo (e, como apontava Carroll, o reconhecimento da graça eliminava o aborrecimento do espectador capaz de rir). Ora, neste sentido, Carrey nasceu para viver Kaufman, já que, mesmo buscando a gargalhada de forma mais franca, sua comédia sempre foi pontuada por elementos que soavam como unhas raspando um quadro negro: pensem no “som mais irritante do mundo” em Débi & Loide, em sua insistência em pedir aplausos para o apresentador que o havia chamado ao palco em uma de suas performances de standup mais celebradas do início da carreira ou em sua entrevista a Arsenio Hall, quando fingiu estar bêbado o tempo inteiro (parte deste incidente está no documentário).
É compreensível, portanto, que Jim & Andy não busque entrevistar ninguém além do próprio Carrey – afinal, qualquer depoimento dado por outros participantes de O Mundo de Andy giraria em torno da natureza brilhante ou bizarra de sua performance, não acrescentando nada ao que já sabemos. Bem mais interessante é ouvir Carrey relembrando os instantes nos quais se questionava, temendo estar exagerando em suas ações, ou narrando seu encontro com a família de Kaufman e o efeito que provocaram uns nos outros. Aliás, até mesmo suas divagações que beiram o misticismo ou flertam com questionamentos de natureza filosófica enriquecem o filme, mesmo que possam parecer tolos aqui e ali, já que oferecem uma janela para compreendermos melhor sua trajetória como ator e ser humano.
Porque este é um dos bônus de Jim & Andy, que, ao contrapor imagens da juventude de Carrey às atuais, estabelece um contraste revelador entre o jovem comediante ambicioso que manifestava desejo pela fama e o Jim Carrey contemporâneo, com sua barba grisalha, suas rugas, marcas de expressão e a maneira tranquila, serena, com que manifesta uma paz interior que sua experiência com a história de Andy Kaufman ajudou a encontrar.
Ou talvez tudo não passe de encenação e ele esteja rindo internamente de nossa ingenuidade. Kaufman apreciaria essa ideia.
18 de Novembro de 2017