Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
09/01/2020 | 18/09/2019 | 5 / 5 | 5 / 5 |
Distribuidora | |||
Supo Mungam Films | |||
Duração do filme | |||
121 minuto(s) |
Dirigido e roteirizado por Céline Sciamma. Com: Noémie Merlant, Adèle Haenel, Valeria Golino, Luàna Bajrami, Armande Boulanger.
As instruções de Hades a Orfeu não poderiam ter sido mais claras: tudo que o poeta tinha a fazer era conduzir a amada Eurídice do mundo inferior, pertencente aos mortos, de volta à superfície sem olhá-la. Ainda assim, a poucos metros de ter seu amor de volta entre os vivos, Orfeu cedeu ao impulso, virou-se em sua direção e a condenou novamente à morte, perdendo-a para sempre. Mas por que ele desobedeceu a ordens tão explícitas? Estupidez? Arrogância? Displicência?
“Ele preferiu viver com a memória da amada”, teoriza a jovem Héloïse (Haenel) em certo momento do maravilhoso Retrato de uma Jovem em Chamas, completando: “Ele fez a escolha não do amante, mas do poeta”. Mesmo inexperiente no amor, a garota parece compreender a atração da idealização no romance, que, se por um lado é fruto da dor causada pela distância e pela saudade, por outro é doce e invejável por beirar a perfeição. Uma perfeição que, retroalimentando o ciclo, torna a dor da saudade ainda maior.
Escrito e dirigido pela francesa Céline Sciamma, o longa acompanha a jovem pintora Marianne (Merlant), que, contratada por uma condessa (Golino) para retratar sua filha Héloïse, viaja para a ilha na qual estas residem e lá descobre que deverá cumprir a tarefa em segredo, já que a moça se recusa a posar por saber que seu retrato será enviado para um pretendente em Milão que a tornará sua esposa caso aprove sua aparência. Assim, nos dias seguintes Marianne se passa por uma acompanhante contratada pela condessa para fazer companhia a Héloïse enquanto busca memorizar os detalhes de seu rosto para completar o quadro durante a noite.
Fotografado magistralmente por Claire Mathon, que compreende como o filme deve fazer jus plasticamente ao talento da protagonista como pintora, Retrato de uma Jovem em Chamas adota uma abordagem narrativa contemplativa, quieta, que contrasta com o tumulto interno crescente das duas jovens à medida que se tornam próximas e desenvolvem uma atração mútua, empregando bem as belezas naturais das locações para criar espaços que surgem ideais para despertar ideias românticas. Da mesma maneira, o design de produção de Thomas Grézaud e os figurinos de Dorothée Guiraud refletem as diferenças entre as personalidades das garotas ao envolvê-las em cores que destoam e se complementam na mesma medida: vermelho para Marianne, verde (e, pontualmente, azul) para Héloïse. Além disso, a fotografia explora bem os elementos da mise en scène para criar quadros memoráveis como aquele no qual vemos as duas personagens acompanhadas da criada Sophie (Bajrami) atrás da mesa da cozinha e diante do fogo e outro que inspira o retrato do título. E, claro, o plano plongée que enfoca Sophie deitada em uma cama ao lado de um bebê que insiste em chamar sua atenção enquanto ela passa por um aborto.
Aliás, esta é outra passagem essencial do longa ao estabelecer o apoio imediato dado à moça em sua decisão de abortar, já que em nenhum momento o ato é contestado ou condenado pelas outras. Neste aspecto, mesmo ambientado no final do século 18, Retrato de uma Jovem em Chamas não poderia ser mais contemporâneo: Marianne, por exemplo, explica como as mulheres não têm permissão para pintar homens nus e insiste que esta é uma forma de limitar o sucesso das artistas ao impedi-las de estudar a anatomia masculina. Do mesmo modo, a harmonia alcançada na ausência de figuras masculinas logo se torna incontestável – e quando finalmente vemos um homem em cena, a sensação é a de invasão de um espaço antes seguro.
A maior beleza da obra, no entanto, reside na delicadeza com que desenvolve a atração crescente entre as duas mulheres e o relacionamento que surge como resultado: do suspense inicial para revelar o rosto de Héloïse à sensualidade presente no simples ato de Marianne analisar os detalhes de suas feições, pescoço e mãos, a diretora Céline Sciamma leva o espectador a experimentar cada sobressalto de reconhecimento de que algo especial está ganhando vida. É fascinante, por exemplo, notar como Héloïse se solta pouco a pouco, indo da insistência em manter o cenho fechado à pura incapacidade de deixar de sorrir ao olhar para a amada – e o próprio processo de criação do retrato por Marianne se torna um símbolo de seu amor crescente, que lhe permite enxergar com mais clareza e profundidade sua modelo-musa.
O que nos traz de volta à ação fatal de Orfeu e que ganha um paralelo na observação de Héloïse sobre como Marianne acabará visualizando mentalmente o retrato sempre que se lembrar dela, que, assim, se tornará menos carne e mais ícone. E este, afinal, é o dilema que vivem: desesperadas diante da separação iminente, que as deixa com a sensação de terem desperdiçado o pouco tempo que tiveram juntas (e, quando amamos, todo segundo distante do objeto de afeto é um desperdício), as duas sabem que a memória do que viveram se consolidará como o bem mais precioso e também o mais excruciante que possuem. Algo sintetizado no magnífico e inesquecível plano que encerra a projeção e que nos lembra de como esta é uma contradição que todos – ao menos, os mais felizardos entre nós – aprenderemos um dia.
Texto originalmente publicado durante a cobertura do Festival de Cannes 2019.
19 de Maio de 2019
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