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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
06/02/2020 25/10/2019 3 / 5 4 / 5
Distribuidora
Disney
Duração do filme
108 minuto(s)

Jojo Rabbit
Jojo Rabbit

Dirigido e roteirizado por Taika Waititi. Com: Roman Griffin Davis, Thomasin McKenzie, Scarlett Johansson, Taika Waititi, Rebel Wilson, Stephen Merchant, Alfie Allen, Archie Yates e Sam Rockwell.

Não existe nazista bom.


Não existe nazista bom.

Não existe nazista bom.

Bons nazistas há aos montes, o que é inacreditável em 2020, mas nazista bom nunca existiu, não existe e nunca existirá.

Este é um fato simples e óbvio, mas que Jojo Rabbit parece esquecer às vezes. Não que retratar Adolf Hitler sob uma luz cômica seja proibido ou impossível – basta testemunhar o que fizeram Chaplin em O Grande Ditador e Mel Brooks no clipe da música “To Be or Not to Be”, para citar apenas dois exemplos. Ou mesmo o que o ator, roteirista e diretor Taika Waititi faz ao transformar sua versão de Hitler em uma figura por vezes hilária em seu ódio extremo. Não, o problema de seu filme não reside em sua irreverência, mas – e é chocante constatar isso – em sua generosidade.

Adaptado a partir do livro “Caging Skies”, de Christine Leunens, Jojo Rabbit acompanha as desventuras do jovem personagem-título (Davis), que ganha o apelido de “coelho” depois de se recusar a matar um destes animaizinhos durante as atividades da juventude hitlerista, da qual é integrante. Apoiador entusiasmado do Führer e seguro de que a Alemanha vencerá a Guerra, Jojo mantém longas conversas com uma versão imaginária deste (Waititi), que, como todo bom amigo fictício, o apoia em todos os seus esforços. “Você é o melhor nazistinha que já conheci!”, afirma o líder nazista ilusório, em certo momento. O envolvimento do garoto com a ideologia fascista, porém, representa uma imensa decepção para sua mãe Rosie (Johansson), que, cuidando sozinha do filho enquanto o marido se encontra no campo de batalha, acaba por dar abrigo a Elsa (McKenzie), uma garota judia que era amiga de sua falecida filha.

Contando com uma das melhores sequências de introdução produzidas em 2019, Jojo Rabbit anuncia o tom de sua narrativa já em seus primeiros minutos em uma montagem repleta de energia que traz o protagonista saltitando alegre pela cidade enquanto distribui animados “Heil, Hitler!” ao som de uma versão alemã de “I Wanna Hold Your Hand” (“Komm, gib mir deine Hand”) que também se justapõe a imagens de arquivo de Hitler sendo idolatrado por milhares de correligionários que poderiam ser confundidos com os fãs histéricos dos Beatles. Trata-se de um conceito simples que Waititi e o montador Tom Eagles executam com maestria e que reflete o ponto de vista juvenil e inocente de Jojo.

Ao mesmo tempo, o cineasta explora a mentalidade fascista e o antissemitismo nazista para ridicularizá-los através de seus próprios absurdos, que normalmente já flertam com a autoparódia e aqui precisam apenas de um empurrãozinho para que cruzem esta fronteira. Assim, o acampamento frequentado por Jojo e seus amigos oferece aulas de incineração de livros e outras que “revelam” a natureza monstruosa dos judeus (literalmente; as crianças “aprendem” que estes são “filhotes de Satanás e sugam sangue cristão durante seu bar mitzvah”); já mais tarde, alguém aponta a necessidade de levar os “clones do Führer” para passear e vemos um grupo de crianças idênticas num eco bem-humorado de Meninos do Brasil. Aqui e ali, Waititi tropeça em gags fracas (como a dos pastores alemães), mas estas acabam sendo equilibradas por outras que extraem graça do excesso – e é bastante possível que este seja o filme com o maior número de “Heil, Hitlers!” da História do Cinema, chegando um momento em que a repetição em si se torna engraçada.

É claro que o ótimo timing cômico do pequeno Roman Griffin Davis facilita o trabalho do diretor, bem como sua habilidade de retratar a confusão crescente de Jojo diante de seus sentimentos conflitantes com relação a Elsa, à mãe e ào próprio Hitler (ainda assim, todos – até os adultos – empalidecem diante do garotinho Archie Yates, que vive Yorki, melhor amigo do protagonista, e é a coisinha mais adorável da produção). Enquanto isso, a jovem Thomasin McKenzie encarna Elsa com a dose esperada de melancolia e desilusão, o que não a impede de se divertir com a atenção de Jojo e também à custa deste e de sua cegueira ideológica. Já Scarlet Johansson, em mais uma grande performance em 2019, traz firmeza a Rosie, que, navegando sozinha por um mundo cada vez mais hostil e ensandecido, se esforça para manter algum resquício de lar para o filho, tentando resgatá-lo de sua obsessão pelo líder alemão não através de sermões ou castigos, mas do amor. De certo modo, sua personagem funciona também como o centro emocional da trama – e a cena na qual simula um diálogo com o marido é simultaneamente tocante e curiosa.

O que nos traz ao Adolf Hitler concebido por Taika Waititi: ator cômico talentoso (o modo como seu vampiro em O Que Fazemos Nas Sombras arqueja o corpo e as mãos para trás ao confrontar um amigo no ar é um exemplo de seu gênio para o humor físico), o neozelandês suaviza uma das figuras mais odiosas da História justamente ao salientar sua personalidade repugnante, encontrando, no extremo, um espaço seguro para torná-lo infantilizado e, consequentemente, permitir que o espectador ria de suas ideias e de seus discursos inflamados. Esta abordagem também é justificada pelo fato de estarmos vendo não o Hitler real, mas uma releitura a partir dos olhos de uma criança incapaz de perceber sua toxicidade e de compreender completamente as consequências de suas ações.

Mas se o trabalho do sujeito como ator é tão notável, por que foi ignorado por praticamente todas as premiações enquanto os demais integrantes do elenco acabaram sendo reconhecidos em algum momento com indicações em eventos maiores ou menores? A resposta a esta questão é também um sintoma dos problemas mais complexos do projeto como um todo: porque ninguém ficaria à vontade de celebrar (mesmo indiretamente) a figura de Hitler na tela – e a prova mais evidente disso é o fato de Bruno Ganz, que praticamente viveu a versão definitiva do nazista em A Queda!, não ter sido sequer indicado aos troféus mais relevantes da indústria. Ora, que chance teria então uma interpretação cômica do asqueroso Führer? E esta deveria ser laureada?

A verdade é que, mesmo que este efeito não seja intencional, os aspectos humorísticos de Jojo Rabbit enfraquecem o horror e o drama da realidade, já que o ódio representado pelo nazismo se faz tão ridículo que quase acaba por se converter em um conceito inócuo que ninguém levaria a sério - é difícil temer a polícia política do Estado, por exemplo, quando estamos ocupados rindo do contraste entre as alturas de Stephen Merchant e Sam Rockwell. Aliás, o próprio capitão retratado por Rockwell é um dos equívocos do longa, sendo simpático demais para alguém que é, na prática, o principal rosto nazista da narrativa – além de, claro, ter seus próprios segredos que nos fazem enxergá-lo como mais uma vítima do sistema.

E se esta generosidade do filme diante da natureza dos personagens já seria grave, a coisa se torna ainda pior quando Waititi retrata a chegada dos Aliados a partir da perspectiva dos nazistas, ou seja: como um momento de terror absoluto (o que inclui - spoiler - o sacrifício de um personagem que deveríamos reprovar e que acaba soando como um herói). Ao que parece, a empatia excessiva também pode ser um erro.

No entanto, eu consigo compreender as boas intenções de Jojo Rabbit, que, no fundo, tenta defender a ideia de que o grande problema dos nazistas foi deixar de enxergar o Outro como ser humano e que o amor seria a solução mais eficaz. Em outras palavras: a melhor maneira de lidar com os fascistas seria ensinando-os a amar e a se colocarem no lugar do próximo. É um sentimento nobre, mas, como a própria História insiste em comprovar (inclusive nas últimas eleições brasileiras e no primeiro ano do desgoverno de Jair Bolsonaro), irreal. Para estes indivíduos, a diferença é um pecado mortal – e como “diferente” é tudo aquilo que foge de sua compreensão limitada do mundo e de sua percepção “moralista”, a política se converte em uma arma para reprimir, controlar e punir quem não tem a cor de pele, a orientação sexual, a identidade de gênero ou a classe econômica “certas”.

O que Jojo Rabbit esquece, em suma, é que a essência do nazismo hoje se apresenta sob variados disfarces e siglas políticas.

E que não existe nazista bom.

31 de Janeiro de 2020

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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