Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
18/11/2021 | 22/10/2021 | 5 / 5 | 4 / 5 |
Distribuidora | |||
Disney | |||
Duração do filme | |||
107 minuto(s) |
Dirigido e roteirizado por Wes Anderson. Com: Benicio Del Toro, Léa Seydoux, Tilda Swinton, Bill Murray, Adrien Brody, Mathieu Almaric, Jeffrey Wright, Frances McDormand, Timothée Chalamet, Owen Wilson, Bob Balaban, Henry Winkler, Tony Revolori, Christoph Waltz, Cécile de France, Denis Ménochet, Lois Smith, Steve Park, Lyna Khoudri, Larry Pine, Guillaume Gallienne, Edward Norton, Willem Dafoe, Liev Schreiber, Winsen Ait Hellal, Alex Lawther Saoirse Ronan, Hippolyte Girardot, Jason Schwartzman, Griffin Dunne, Fisher Stevens, Elisabeth Moss e a voz de Anjelica Huston.
Em certo momento de A Crônica Francesa, novo trabalho do cineasta Wes Anderson, dois atores trocam de lugar diante da câmera para ilustrar o envelhecimento de um personagem: encarcerado numa prisão/hospício depois de decapitar duas pessoas, o pintor Moses Rosenthaler surge em sua versão jovem com o rosto do ator Tony Revolori, que, depois de olhar para a câmera por alguns segundos, é substituído por Benicio Del Toro quando dez anos se passam – e o gesto de carinho que este exibe para com aquele antes de assumir seu lugar é emocionante por sugerir compreensão e perdão diante de sua imaturidade, mas também tristeza por saber o que o futuro lhe reserva. É uma decisão narrativa que pode soar a princípio como mero artifício do diretor, mas que é linda por entender algo óbvio e, ainda assim, profundo: embora tenhamos em essência a mesma identidade durante toda a vida, quem somos é um conceito fluido, em constante transformação. Não sou, aos 47 anos, quem era aos 18 ou aos 30 – e em certos aspectos a mudança ocorreu de modo tão completo que custo a me identificar ao ler textos escritos há 15 anos ou mais. Cada desapontamento, frustração, amor, perda, vitória, desilusão, sonho, esperança e dor deixou marcas que se acumularam e resultaram nas transformações que fazem de mim quem sou hoje e que continuarão a ocorrer até que, se vivo estiver, me tornarei um septuagenário que eu talvez não conseguisse reconhecer agora.
A história do pintor encarcerado, diga-se de passagem, é apenas uma daquelas contadas pelo longa, que usa como base de sua estrutura uma revista ficcional chamada The French Dispatch (baseada na The New Yorker) e três artigos contidos em sua última edição (além de um breve guia turístico apresentado por Owen Wilson). Inicialmente narrado por Anjelica Huston, que explica a origem da publicação e discute a personalidade do editor Arthur Howitzer Jr. (Murray), o filme troca de narradores a cada novo “artigo”/segmento, quando o jornalista que o escreveu assume a tarefa: além da estilosa J.K.L. Berensen (Swinton), que expõe a trajetória de Rosenthal, há o relato da melancólica Lucinda Krementz (McDormand) sobre uma revolta de estudantes (inspirada na de maio de 68) encabeçada por Zeffirelli (Chalamet) e Juliette (Khoudri) e, finalmente, o incidente testemunhado por Roebuck Wright (Wright), que se propôs a escrever uma matéria sobre o chef Nescaffier (Park) e acabou acompanhando as ações de um comissário (Amalric) para salvar o filho sequestrado (Ait Hellal).
Talvez a mais wesandersoniana de todas as obras do diretor (a esta altura, é praticamente uma tradição incluir esta observação em meus textos sobre seus filmes), A Crônica Francesa não representa surpresa para quem está habituado às suas composições tão centralizadas e simétricas que satisfazem o transtorno obsessivo-compulsivo até de quem não sofre deste mal. Além disso, há as alterações na razão de aspecto, os saltos entre o preto-e-branco e as cores intensas, as panorâmicas rápidas em eixos de 90 graus (ainda que menos frequentes) e o design de produção que traz cenários e figurinos em paletas bem definidas que transformam cada ambiente em um diorama com tons próprios e marcantes. Aliás, não é por acaso que uso a palavra “diorama”, já que Anderson com frequência desenvolve suas narrativas através de tableaux vivants que distribuem os atores cuidadosa e elegantemente pelos espaços construídos com uma atenção notável para cada elemento (outra obsessão de Anderson é representada pelo arranjo milimétrico de objetos em planos-detalhe).
Substituindo Paris por uma cidade estilizada e com o divertido nome “Ennui-sur-Blasé”, A Crônica Francesa é, de várias maneiras, o projeto que Wes Anderson se preparou a carreira toda para fazer, já que com frequência suas obras parecem sugerir um desejo de ser francês e de fazer filmes franceses – e se coloco estas palavras em itálico, é porque a francofilia do diretor evoca não o país real e seu Cinema, mas uma versão caricatural destes, uma interpretação filtrada por estereótipos, gracejos e clichês (e juro que estou fazendo um elogio). De forma similar, A Crônica Francesa exala, como toda a filmografia de Anderson, uma nostalgia curiosa por um passado que existiu apenas – ou primordialmente – nas telas, não sendo coincidência que logo no início da projeção, ao acompanhar o começo do dia na cidade, ele faça uma homenagem clara à maravilhosa sequência de introdução de Ama-me Esta Noite, dirigido por Rouben Mamoulian em 1932.
Não deixa de ser curioso, vale dizer, como o estilo característico de Anderson tende ao mesmo tempo a destacá-lo de seus contemporâneos e a mantê-lo limitado na visão de parte do público e da crítica, que por vezes se deixam distrair pelas idiossincrasias estéticas do diretor e ignoram como estas enriquecem e servem às histórias e aos temas que ele desenvolve. A “narração-dentro-da-narração” (ocasionalmente, há ainda uma terceira camada de narração) é um exemplo: se é tentador considerá-la uma gracinha narrativa, a verdade é que ela diz muito sobre a ideia central de A Crônica Francesa e seu carinho pela arte da escrita e pelo jornalismo. Focados no talento e no processo criativo de seus artistas (sejam estes representantes da pintura, da culinária ou da revolução), os “artigos” apresentados no filme são definidos pela visão e pela personalidade de cada jornalista, que, ao seu próprio modo, se insere e molda a história que está contando por mais que tente manter uma suposta “neutralidade”.
E é isto que torna este longa tão… humano: sua capacidade de empatizar e de enxergar a beleza em cada uma daquelas pessoas, seja na impulsividade e no idealismo da juventude, na autossabotagem de alguém que enfrenta uma doença mental (“A necessidade dele de fracassar é mais poderosa que nossos desejos mais fortes de ajudá-lo a ser bem sucedido” é uma fala que me provocou um engasgo de autorreconhecimento) ou no prazer surpreendente da descoberta de um novo sabor/amor, mesmo reconhecendo se tratar de um veneno (é a segunda vez que Stephen Park me arranca lágrimas com uma participação minúscula; a primeira foi em sua cena tocante como o velho colega de escola da protagonista de Fargo). Mas não só: A Crônica Francesa também emociona por compreender como é impossível escrever e não ser transformado pela escrita, que força seu praticante a uma autoanálise constante independentemente de sua área ou de seu foco – e também como muitas vezes podemos demorar a (ou jamais conseguir) entender a razão para termos escrito, mesmo que esta soe óbvia ao eventual leitor.
O que o filme de Anderson conseguiu – ao menos em meu caso – foi despertar um sentimento que a depressão e o mundo vinham sufocando há tempos: o amor pelo ato de escrever, que experimentei ainda criança, abracei como adulto e tenho esquecido na meia-idade. Não, não sou mais o jovem que ambicionava se tornar famoso pelo que produzia e que acreditava arrogantemente que sua voz era mais significativa ou interessante do que a de escritores muito, muito melhores. Mas aos poucos tenho tentado me sentir confortável com a ideia de que, como a versão do pintor vivida por Benicio Del Toro parece sugerir, há liberdade em se reconhecer envelhecido, exausto e amarrado por uma camisa de força (não importa do que esta seja feita).
No mínimo, há o alívio da autoexpressão e, com sorte, alguma Arte a ser extraída de cada ferida.
31 de Dezembro de 2021
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