Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
13/01/2022 | 09/07/2021 | 4 / 5 | 3 / 5 |
Distribuidora | |||
Imovision | |||
Duração do filme | |||
131 minuto(s) |
Dirigido por Paul Verhoeven. Roteiro de Paul Verhoeven e David Birke. Com: Virginie Efira, Charlotte Rampling, Daphne Patakia, Louise Chevillotte, Olivier Rabourdin, Hervé Pierre, Clotilde Courau, David Clavel, Guilaine Londez, Elena Plonka e Lambert Wilson.
Paul Verhoeven escreveu um livro sobre Jesus Cristo. Sim, o diretor de RoboCop, Instinto Selvagem, Showgirls e Elle publicou “Jesus de Nazaré” em 2010, discutindo, ao longo de mais de 300 páginas, como este era um homem que deveria ser admirado por sua ética e por sua humanidade, não por uma suposta ascendência divina que o colocaria ao lado de figuras como Hércules, Afrodite e Palas Atena. No entanto, este fato não deveria surpreender: embora mais conhecido pela violência e pelo eroticismo de suas obras, o cineasta holandês frequentemente inclui simbolismos católicos em seus filmes, como a ressurreição do policial Murphy em RoboCop, o martírio de Rico em Tropas Estelares e, claro, a cena em que o protagonista de O Quarto Homem tem uma visão envolvendo Cristo crucificado que se parece muito com outra que ocorre neste seu novo trabalho, Benedetta.
Baseado em fatos reais narrados em um livro de Judith C. Brown, o longa conta a história de uma freira, Benedetta (Efira), que acredita ser esposa de Jesus e tem visões frequentes envolvendo o amado, apresentando também estigmas em seu corpo que comprovariam a autenticidade de seus relatos. Atraída por Bartolomea (Patakia), uma recém-chegada à abadia localizada em Toscana, a protagonista se envolve sexualmente com a garota ao mesmo tempo em que os fenômenos que vive são explorados pelo líder religioso local (Rabourdin), que vê nestes sua chance de atrair a atenção do papa – um plano que é seguido mesmo a contragosto pela abadessa Felicitá (Rampling), que nutre dúvidas sobre a jovem.
Fotografado com cores quentes e vivas por Jeanne Lapoirie – especialmente durante as alucinações da personagem-título -, Benedetta é um filme que foge da estética dessaturada e fria que tomou conta de boa parte do Cinema nos últimos anos (mainstream ou não) e compreende que o tom de uma narrativa melancólica não exige um visual desinteressante para funcionar. Assim, mesmo tendo o cuidado de retratar as condições higiênicas primitivas da época (a primeira metade do século 17), o longa cria planos belíssimos que envolvem o cotidiano das freiras, dos ensaios de coral às missas em altares iluminados pelos raios de sol que atravessam os vitrais da igreja. Trata-se, além de tudo, de uma decisão inteligente por parte de Verhoeven, que ilustra, com isso, como a entrega religiosa é, para aquelas pessoas, algo visto como uma benção, não uma maldição. De modo similar, quando Bartolomea se posiciona ao lado da cama de uma Benedetta adoecida, seu perfil é ressaltado em contraluz pelo sol que entra pela janela e forma um halo em torno de sua cabeça, indicando, assim, sua importância para a outra.
Aliás, mais do que isso: estabelece uma similaridade entre Bartolomea e a figura do próprio Cristo – não como símbolo religioso, mas como objeto de desejo de Benedetta. Esta correspondência, diga-se de passagem, é iniciada logo que Bartolomea entra em cena pela primeira vez, sendo precedida por um rebanho de ovelhas – exatamente como havia ocorrido há pouco numa das visões da protagonista em que Jesus se aproximava cercado por aqueles animais. Tampouco parece ser coincidência que a cor dos cabelos de Bartolomea sejam escuros como os de Cristo e, longos, desçam em torno de seu rosto como no retrato eurocêntrico que a Igreja criou de seu messias. Esta elegância narrativa de Verhoeven pode ser vista também na rima visual criada entre o instante em que uma estátua da Virgem Maria cai sobre Benedetta ainda criança (Plonka) e aquele, anos depois, em que Bartolomea se posiciona sobre o corpo da amante – e em ambos os casos a personagem abocanha um dos seios da figura acima de si.
A representação da sexualidade feminina, por sinal, é central em Benedetta – como deve ser em qualquer obra que aborde, mesmo que tangencialmente, um conceito como “concepção imaculada”, que associa o desejo feminino a uma mancha, uma impureza. Esta, claro, é uma das contradições mais presentes e mais nocivas na dinâmica social entre homens e mulheres e que foi sedimentada ainda mais pelas religiões: a ideia de que dar à luz, de gerar e carregar a vida, é um dom divino concedido às mulheres, mas o ato necessário para produzi-la é corruptor, reprovável, feio; o desejo que atrai o macho para a fêmea se converte em repugnância ao ser saciado. Em outras palavras: a sexualidade masculina é um imperativo; a feminina, um serviço a ser prestado – sem prazer! – à humanidade. Neste sentido, ver o Cristo-herói de Benedetta decepando as cabeças das cobras que a atacam em suas visões representa uma salvação não só física, mas espiritual, já que a o simbolismo fálico é óbvio (mas não menos divertido por isso). E nem é preciso apontar como uma estatueta da Virgem Maria se torna um objeto perfeito para causar orgasmos, já que, para Benedetta, o êxtase é tanto sexual quanto religioso.
Porque a verdade é que, forjados ou não (claro que são forjados; o filme é baseado em fatos reais, não em contos da carochinha), os estigmas exibidos por Benedetta partem de um lugar autêntico, de fé profunda: se ela os cria, não é puramente por narcisismo ou para receber determinados benefícios, mas por acreditar que, de algum modo, seus objetivos são sinceros. Já de um ponto de vista político, o que Verhoeven retrata é uma mulher fazendo o necessário para sobreviver no mais patriarcal, sexista e repressivo dos mundos: o religioso. (E, assim, as ações da abadessa vivida brilhantemente por Charlotte Rampling no clímax da narrativa são movidas tanto por uma suposta epifania espiritual quanto por pura sororidade.)
Chocante e “profano” apenas para o tipo de espectador que jamais o veria, mas que frequentemente se julga no direito de determinar o que os outros podem consumir ou não, Benedetta comprova como Verhoeven é um cineasta cujas ambições temáticas, embora frequentemente subestimadas por quem vê apenas a superfície de suas obras, são características de um artista maduro que compreende que o sagrado está não num plano metafísico, mas em cada ação e desejo que nos tornam humanos.
15 de Janeiro de 2022
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