Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
30/03/2023 | 11/11/2022 | 4 / 5 | / 5 |
Distribuidora | |||
Imovision | |||
Duração do filme | |||
143 minuto(s) |
Dirigido e roteirizado por Kirill Serebrennikov. Com: Alyona Mikhailova, Odin Lund Biron, Filipp Avdeev, Ekaterina Ermishina, Natalya Pavlenkova, Miron Fedorov, Aleksandr Gorchilin, Varvara Shmykova.
O cineasta russo Kirill Serebrennikov dirigiu, nos últimos anos, dois de meus filmes favoritos exibidos inicialmente em grandes festivais: O Estudante, em 2016, e Verão, em 2018. Embora não possa dizer o mesmo sobre este A Esposa de Tchaikovsky, que integra a competição de Cannes em 2022, há elementos suficientes para demonstrar a sensibilidade particular e a inteligência do diretor, embora a verdadeira força do projeto resida na performance excepcional de Alyona Mikhailova como a personagem-título.
Buscando investigar – com claros toques de imaginação – o desastroso casamento entre o célebre compositor (Biron) e Antonina Miliukova que durou na prática apenas três meses, mas condenou ambos a um martírio até o fim de suas vidas, o roteiro do próprio Serebrennikov tem início com a morte de Tchaikovsky e a chegada da viúva (ou, como perceberemos, “viúva”) ao velório, quando é recebida com choque e ressentimento pelos presentes. A partir daí, voltamos no tempo até o momento em que a moça vê o músico pela primeira vez e se dedica a conquistá-lo, transcrevendo cartas de amor presentes em antologias, jurando lealdade absoluta e oferecendo sua herança como parte do processo de convencê-lo (algo que acaba selando o acordo). Porém, como o longa faz questão de sugerir através de simbolismos óbvios como a vela que se apaga durante o casamento e a aliança que custa a entrar no dedo do noivo, aquele era um matrimônio destinado ao fracasso desde sua raiz, já que, além de valorizar sua solidão para compor, Tchaikovsky oferece tantos indícios de sua homossexualidade que chamá-los de “indícios” é em si um eufemismo.
O curioso é que, ao menos de acordo com o filme, não se pode dizer sequer que a motivação do artista tenha sido manter as aparências (ainda que isto seja, sim, sugerido rapidamente em certo ponto), já que sua orientação sexual parece ser um segredo que apenas Antonina insiste em não perceber e com a qual o sujeito parece conviver com certa naturalidade, cercando-se de amigos e amantes que só o julgam quando ele insiste em se casar – e esta, sim, é fonte de imensa angústia para o personagem, que demonstra verdadeira repulsa ao ser tocado pela esposa. Aliás, o jantar de celebração do casamento é fotografado por Vladislav Opelyants quase como uma cerimônia fúnebre, não demorando também para que Antonina seja abandonada já no trem rumo à lua-de-mel, quando Serebrennikov cria uma composição de quadro ilustrativa que emprega o espelho da cabine para expor e ressaltar o vazio em torno da mulher. Neste sentido, é igualmente forte o instante em que, depois de finalmente perder a virgindade para um outro homem, a protagonista toca as teclas do piano usado por Tchaikovsky com os dedos sujos de sangue, quase como se manchando o marido com o que ele se recusou a aceitar.
De modo geral, porém, o que A Esposa de Tchaikovsky retrata é um exercício de tortura mútua e de egoísmo reciprocado quase na mesma intensidade; em última análise, Antonina e Tchaikovsky viram, um no outro, algo que lhes interessava possuir (o dinheiro dela; a presença dele) mesmo que às custas do sacrifício da(o) parceira(o) – ou talvez eles genuinamente tenham se recusado a ver o óbvio, que era o sofrimento colossal que causariam e experimentariam quando o casamento inevitavelmente fracassasse. Assim, se torna difícil ter muita pena da dupla, o que compromete a eficácia dramática do longa.
O mais problemático, contudo, é constatar como o filme revela, em suas entrelinhas, um subtexto tanto homofóbico quanto misógino: se Antonina é retratada como louca e obcecada pelo homem que a recusou, mostrando-se disposta a infernizar sua vida ao não poder tê-lo para si, praticamente todos os personagens gays da obra são concebidos como caricaturas absurdas ou vistos como criaturas mentirosas e cruéis.
Já de um ponto de vista formal, é necessário reconhecer o ótimo trabalho de recriação de época (e os figurinos em particular) e, claro, as fabulosas elipses executadas através de planos-sequência inventivos em seus movimentos de câmera simples (mas excelentes) e de mudanças na luz, como no instante em que vemos Antonina na estação de trem se despedindo do marido e, em seguida, esperando seu retorno e – meu favorito – aquele em que testemunhamos a morte e o velório do advogado com o qual ela acaba se relacionando e que culmina com a perda de seu precioso piano.
Amarrado por um plano final que usa movimentos de dança para completar o arco da protagonista, A Esposa de Tchaikovsky talvez não evoque o peso da tragédia que retrata tão bem a ponto de sofrermos pelo casal, mas é ambicioso o suficiente para apreciarmos o exercício que resulta deste esforço.
Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Festival de Cannes 2022.
20 de Maio de 2022
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