Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
25/01/2024 | 23/08/2023 | 4 / 5 | 5 / 5 |
Distribuidora | |||
Diamond | |||
Duração do filme | |||
151 minuto(s) |
Dirigido por Justine Triet. Roteiro de Justine Triet e Arthur Harari. Com: Sandra Hüller, Swann Arlaud, Milo Machado-Graner, Samuel Theis, Antoine Reinartz, Jehnny Beth, Saadia Bentaïeb, Camille Rutherford.
Em sua superfície, Anatomia de uma Queda é um exercício de gênero – ou melhor, de gêneros: um drama de tribunal que reconhece a força da ambiguidade e que acaba funcionando também como um instigante estudo de personagem. Dirigido por Justine Triet a partir de um roteiro escrito por esta ao lado de seu companheiro Arthur Harari, o filme nos apresenta à escritora Sandra Voyter (Hüller), que abre a narrativa dando uma entrevista para uma jovem estudante enquanto seu marido Samuel Maleski (Theis) insiste em ouvir música em altíssimo volume no andar superior. Logo a conversa é suspensa em função da interrupção; quando o filho do casal, Daniel (Machado Graner), sai para passear com seu cão-guia, o casal fica sozinho em casa. Pouco tempo depois, Samuel é encontrado morto, tendo despencado da janela do sótão por acidente, por vontade própria ou por ação da esposa.
Figura reservada e enigmática cuja natureza já é sinalizada em seus esforços para fugir de quaisquer perguntas pessoais na conversa que abre o filme, Sandra é uma mulher inteligente, bem sucedida e de personalidade forte – e, assim, não é surpresa quando os policiais, todos homens, passam a considerá-la suspeita. Ciente do risco que corre, a protagonista contrata o advogado Vincent Renzi (Arlaud), um amigo do passado, envolvendo-se na construção de sua defesa ao descartar, em uma atitude que ao menos soa legítima, várias possíveis linhas de argumentação sobre sua inocência, sugerindo, assim, convicção de que a “verdade” a absolverá.
Se “verdade” encontra-se entre aspas no parágrafo anterior, é porque Triet faz questão de mantê-las ao longo de toda a projeção – especialmente durante a longa sequência do julgamento na qual promotoria e defesa argumentam com veemência a partir de testemunhos, registros em áudio e evidências circunstanciais. Aqui, por sinal, Anatomia de uma Queda já se diferencia de boa parte dos clássicos do gênero – na maioria norte-americanos – em função das características próprias do sistema judicial francês, que estrutura o julgamento sem a rigidez esperada na inquirição das testemunhas, já que os embates entre as partes são constantes, não importando de quem seja a vez de comandar o depoimento (ou mesmo de oferecê-lo, já que as perguntas saltam entre testemunhas e ré frequentemente). Assim, muitas vezes a impressão é a de um debate apaixonado, não de uma dissecação fria, o que acrescenta ao drama do que vemos na tela.
O centro deste julgamento, aliás, é uma passagem que, durando dez minutos, envolve a gravação de uma discussão entre Sandra e Samuel feita por este último sem que a esposa soubesse e que, descoberta pelos investigadores, é reproduzida durante a audiência: envolvendo ressentimentos antigos que dizem respeito ao sucesso da escritora, à paralisia criativa do marido, ao acidente que tirou a visão do filho do casal e a inúmeros outros desentendimentos que se acumulam ao longo de qualquer relacionamento, a briga é vista na tela em sua maior parte, voltando a ser apresentada apenas em áudio em seu desfecho, quando o que estamos ouvindo se torna ambíguo, podendo refletir uma altercação física ou um ato de autoagressão movido pela raiva. Seja como for, é nesta cena que a composição de Sandra Hüller, que já impressionava até então, se torna sublime, retratando uma mulher racional que trata as insatisfações (muitas vezes juvenis) do marido com mais paciência do que talvez devesse por amá-lo, finalmente atingindo um ponto de ruptura quando as afeições do filho são usadas como arma por Samuel (e Theis também merece aplausos pela convicção que seu personagem manifesta acerca das injustiças que acredita sofrer).
Em essência, porém, Sandra se encontra no banco dos réus por ser mulher – e isto independe do fato de ser culpada ou não; o que a torna um alvo é sua força, sua sexualidade e sua dominância familiar (e ser estrangeira não ajuda muito neste sentido, obrigando-a a saltar entre línguas dependendo da precisão com que deve se explicar em cada momento).
Tropeçando ao sentir a necessidade de criar algum clima romântico entre a protagonista e o advogado, Anatomia de uma Queda (o título é uma referência clara ao Anatomia de um Crime, de Otto Preminger) também se fragiliza ao depositar seu centro moral nos ombros do jovem Daniel, cuja cegueira se torna uma metáfora óbvia e tola da própria Justiça. A ideia, claro, é oferecer alguma resolução através do veredito ao qual o garoto chega e que é mais importante que aquele alcançado pelo judiciário, mas isto sugere apenas um receio por parte dos realizadores de deixar a questão central sem uma conclusão clara – sem perceberem que esta era absolutamente desnecessária.
Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Festival de Cannes 2024
21 de Maio de 2023
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