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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
29/08/2024 11/07/2024 4 / 5 5 / 5
Distribuidora
Diamond
Duração do filme
101 minuto(s)

Longlegs - Vínculo Mortal
Longlegs

Dirigido e roteirizado por Osgood Perkins. Com: Maika Monroe, Blair Underwood, Alicia Witt, Michelle Choi-Lee, Dakota Daulby, Lauren Acala, Kiernan Shipka, Carmel Amit, Ava Kelders e Nicolas Cage.

Não há nada de particularmente original em Longlegs: Vínculo Mortal: em sua superfície, o novo filme de Osgood Perkins é mais um filhote da dupla O Silêncio dos Inocentes e Se7en, que representaram uma dobradinha tão poderosa na primeira metade dos anos 90 que até hoje qualquer longa que gire em torno de um serial killer acaba por ser graduado em comparação aos trabalhos de Jonathan Demme e David Fincher (também responsável por outro exemplar primoroso do gênero: Zodíaco). Porém, como Roger Ebert costumava dizer, “não importa sobre o que é um filme, mas como ele é sobre o que é” – e neste sentido Longlegs mais do que compensa a trama simples (e com problemas que abordarei ao fim deste texto) ao construir uma atmosfera opressiva que mantém o espectador refém em um universo tomado pelo prenúncio constante de desapontamento, dor e tragédia.


No centro deste universo encontra-se a jovem agente do FBI Lee Harker (Monroe), que a princípio parece combinar os dois heróis criados por Thomas Harris ao exibir a rigidez precoce de Clarice Starling e a capacidade de Will Graham de praticamente “sentir” as tragédias que investiga (embora no caso daquele esta habilidade venha da experiência e de uma sensibilidade particular, não de fontes possivelmente sobrenaturais). Recrutada pelo exausto agente William Carter (Underwood) para auxiliar em uma investigação antiga depois de demonstrar possuir certa “vidência/intuição”, Harker passa a estudar tragédias familiares que vêm ocorrendo há décadas e têm algumas características em comum: pais que massacram esposa e filhos, cometendo suicídio a seguir, e em cujas residências é sempre descoberta uma carta cifrada assinada por um certo “Longlegs”. Ao mesmo tempo, a protagonista lida com a mãe, Ruth (Witt), uma acumuladora que se preocupa com os horrores que a filha testemunha, mas demonstra um grau de dissociação talvez associado a traumas antigos.

Abrindo a projeção com uma sequência rodada em uma razão de aspecto reduzida que acentua a claustrofobia da sequência e que simula as características de um registro em 16mm (ancorando-a temporalmente graças às associações que costumamos fazer diante do formato), o diretor já estabelece algumas estratégias que empregará ao longo da narrativa, como os zooms in lentos, o uso de planos subjetivos, o silêncio que constantemente cerca a heroína e a utilização do inverno para reforçar o mundo hostil e solitário habitado pelos personagens. Além disso, quando o quadro se expande aos poucos durante os créditos iniciais, a tela é tomada pelo vermelho como um prenúncio da violência e do horror que dominarão a experiência de Harker e do espectador, deixando evidente que a abertura do campo não trará respiro, mas sim a ampliação das possíveis origens de ameaças.

Aliás, se as cenas externas são dominadas pelo céu nublado (seja dia ou noite) e pelos galhos finos e tortuosos das árvores, as internas são situadas em cômodos escuros cujas luminárias parecem existir mais com o propósito de criar sombras duras capazes de esconder monstros do que em clarear os espaços. Do mesmo modo, as paredes de madeira das salas ocupadas pelo FBI se combinam com os tapetes vermelhos para sugerir recintos que exalam severidade e refletem a violência que neles costuma ser discutida – um tom sufocante que se mantém nos corredores estreitos e nos tetos frequentemente incluídos no campo (atributos também presentes na cabana na qual vive a protagonista).

Enquanto isso, Perkins e o diretor de fotografia Andrés Arochi criam composições que frequentemente guiam o olhar do espectador para os cantos e para o fundo do campo, insinuando presenças ocultas que mantêm a tensão mesmo quando nada parece estar acontecendo – especialmente quando estes pontos são ocupados por portas. Já os zooms in constantes (há zooms outs ocasionais, mas bem mais raros) ecoam a perspectiva de Harker, como se as paredes se fechassem ao seu redor, seu mundo se encolhesse e as possibilidades de escapar se reduzissem rapidamente.

Encarnada por Maika Monroe (Corrente do Mal) como uma jovem cuja rigidez é espelhada em seus modos secos, no andar duro e na postura ereta mesmo quando está sentada no quarto da filha pequena do chefe e poderia relaxar um pouco, Harker parece alguém que só existe quando desempenhando alguma função específica e que não saberia sequer oferecer a definição da palavra “lazer” – e não é à toa que, em certo momento, os montadores Graham Fortin e Greg Ng fazem uma transição brilhante entre a figura da agente e uma árvore seca, apontando seu vazio interior (e que ganha conotações adicionais à medida que a trama se esclarece). Alicia Witt, por sua vez, faz um trabalho preciso como Ruth, equilibrando-se com inteligência entre a sugestão de depressão e fanatismo religioso, evidenciando o afeto e a preocupação daquela mulher em relação à filha ao mesmo tempo em que estabelece um incômodo distanciamento. E se Blair Underwood compõe o agente Carter como um homem obviamente afetado pelas décadas de constatações constantes sobre o que há de pior na natureza humana, o fato é que Longlegs é ambientado em um mundo desprovido de qualquer sinal de alegria – e até o rosto magro e anguloso do agente Fisk (Daulby), parceiro de Harker na sequência inicial, denuncia a falta de calor humano entre aqueles indivíduos.

O que nos traz, claro, ao personagem-título, que Perkins tem a inteligência de manter fora da tela na maior parte do tempo, já que a informação-chave sobre sua identidade é exposta nos créditos iniciais: o fato de ser vivido por Nicolas Cage. Ao nos lembrar deste fato ao mesmo tempo em que se recusa a revelar o rosto do vilão, o cineasta cria uma expectativa que confere um ar quase mítico ao sujeito, levando o público a sentir sua presença/ausência em cada frame do filme. Toda esta preparação poderia resultar em um anticlímax decepcionante caso Cage não fizesse jus à estratégia, mas o ator abraça mais uma vez sua predileção por performances expressionistas – deslocadas em alguns projetos, mas acertadíssima aqui – ao transformar Longlegs em um dos grandes monstros do cinema contemporâneo. Recitando cada fala com inflexões que conseguem simultaneamente evocar júbilo e uma imensa dor interna (um feito notável), Cage nos leva a imaginar como aquele homem já se via à parte do resto do mundo antes mesmo de iniciar sua trajetória de horrores – e como foi justamente este sentimento que o tornou perfeito para sua missão. Há, em suas tentativas de interação com outras pessoas (como na cena no mercadinho), uma vulnerabilidade que inspira pena, que revela toda uma vida marcada por bullying e solidão, o que o torna ainda mais fascinante como elemento dramático.

Remetendo também ao Buffalo Bill interpretado por Ted Levine em O Silêncio dos Inocentes – e aqui sou forçado a discutir determinadas passagens que representam spoilers (repetindo: SPOILERS!) -, Longlegs divide com este seu esconderijo subterrâneo e uma oficina diretamente relacionada aos assassinatos que comete (além do cabelo longo e a obsessão – ainda que passada – com a própria aparência, o que aqui resultou em cirurgias plásticas que o deformaram). Em contrapartida, se há uma influência inquestionável sobre o filme, esta é representada por Se7en, já que Perkins (também autor do roteiro) segue até a estrutura daquele jovem clássico ao levar o vilão a se entregar ao fim do segundo ato por saber que de algum modo seus objetivos só serão concretizados com as ações que sua prisão levará a heroína a realizar (e o fato de os créditos finais rolarem em sentido contrário, exatamente como no longa de Fincher, não é surpresa).

Infelizmente, se o roteiro de Andrew Kevin Walker funcionava com a precisão de um relógio, aqui Perkins permite algumas lacunas que comprometem a coesão da trama: como, por exemplo, o FBI pode ter deixado de encontrar qualquer indício da presença de pessoas estranhas nas cenas dos crimes se fica patente que havia, sim, alguém presente? E como é possível que em nenhum instante o agente Carter (ou Harker) sequer mencione a data de aniversário da filha, já que este é um dado essencial dos crimes que investigam? É plausível que a coincidência não tenha despertado qualquer preocupação no sujeito? Já a transição entre uma narrativa focada em uma investigação criminal realista para outra tomada por elementos sobrenaturais pode soar brusca e irritante para alguns espectadores, mas particularmente identifico na abordagem de Perkins elementos suficientes que justificam e nos preparam para esta mudança – o que inclui o primeiro plano da projeção, que sugere o ponto de vista subjetivo de alguém/algo que se encontra sob um véu escuro no banco de passageiro do carro guiado por Longlegs. De forma similar, com o estabelecimento do significado do triângulo branco invertido, é satisfatório reparar como Harker o associa à palavra “pai” em seu teste no início do filme (algo que vem logo depois de “mãe”) e como o lustre situado no corredor de sua cabana se transforma naquela figura quando a personagem ouve um chamado e olha na direção do corredor (quando Perkins novamente assume o que parece ser um plano subjetivo).

Mas bem mais importante do que quaisquer furos ocasionais no roteiro é a atmosfera angustiante criada pelo filme – uma atmosfera que não cede em momento algum, negando ao espectador qualquer alívio, por mais breve que pudesse ser. Sugerindo ao público um universo no qual qualquer um pode ceder a influências destrutivas e se revelar capaz de atos de crueldade pavorosos, Longlegs trata todos os seus personagens como monstros potenciais, indicando que temer o próximo é mais recomendável do que amá-lo.

Uma visão de mundo tristemente preponderante nos dias de hoje.

24 de Agosto de 2024

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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