Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
31/05/2025 | 31/05/2025 | 3 / 5 | 4 / 5 |
Distribuidora | |||
HBO Max | |||
Duração do filme | |||
108 minuto(s) |
Dirigido e roteirizado por Jesse Armstrong. Com: Steve Carell, Ramy Youssef, Cory Michael Smith e Jason Schwartzman.
O objetivismo, filosofia criada pela escritora Ayn Rand e manifestada em seus romances mais célebres – "A Nascente" (“The Fountainhead”) e "A Revolta de Atlas" (“Atlas Shrugged”) –, se baseia na justificação constante de que o mais importante para o ser humano é buscar a própria felicidade. Trata-se de uma defesa sistemática do individualismo sobre a coletividade, uma posição que seus adeptos descrevem como "egoísmo racional", mas que, na prática, significa simplesmente a liberdade para ser um completo babaca.
Esta filosofia não apenas é referenciada no título de Mountainhead, estreia na direção de longas de Jesse Armstrong, criador da fantástica Succession, como também é explicitamente mencionada por um dos personagens em determinado momento da narrativa - e não poderia ser mais apropriado, já que o filme, assim como a série sobre a família encabeçada por Logan Roy, gira em torno de bilionários, de sua visão distorcida do mundo e o sentimento de superioridade que nutrem em relação ao resto da humanidade, convictos de que seus atos não devem ter quaisquer consequências além da expansão de suas fortunas.
Neste sentido, os quatro magnatas retratados em Mountainhead poderiam ser vistos como expansões ou variações do personagem interpretado por Alexander Skarsgård em Succession, Lukas Matsson – síntese perfeita dos chamados tech bros de Silicon Valley: há o veterano Randall Garrett, vivido por Steve Carell e encarado como uma espécie de inspiração pelos demais (sendo um avatar óbvio do investidor Peter Thiel); o programador Jeff Abredazi (Youssef), criador de uma tecnologia de inteligência artificial vista com hostilidade pelo establishment de Silicon Valley (e que, em teoria, poderia ser uma versão de Sam Altman - embora na prática saibamos que este não difere em nada dos outros tech bros); o CEO Venis Parish (Smith), “homem mais rico do mundo” e amálgama evidente de Elon Musk e Mark Zuckerberg; e, finalmente, Hugo Van Yalk (Schwartzman), que, diferentemente dos demais, ainda não conseguiu alcançar seu primeiro bilhão e que por esta razão ganhou o apelido de “Souper” - referência ao termo "Soup Kitchen" (cozinha comunitária), que na percepção daqueles indivíduos equivale a associá-lo à pobreza. Trata-se de um universo de homens que viajam em jatinhos particulares e saltam destes para helicópteros igualmente exclusivos, não sendo acaso que boa parte do filme acompanhe estes personagens enquanto estão numa mansão isolada no alto de uma montanha, vendo o mundo de cima e completamente distanciados da realidade comum.
E como poderiam não experimentar este isolamento e desenvolver um extremo senso de autoimportância se são constantemente cercados por bajuladores? Logo no início do filme, por exemplo, quando Venis comete um erro de digitação que encara como "piada", rindo da própria tirada acidental, imediatamente seus funcionários se certificam de convencê-lo da “genialidade” do que fez - uma cena que remete diretamente a figuras como Musk, cujas gracinhas juvenis no Twitter são celebradas por seus seguidores como dignas de um prêmio Mark Twain quando na realidade representam apenas manifestações de um pensamento adolescente, tolo, preconceituoso e egocêntrico. Tomados por um sentimento de superioridade despertado por suas fortunas, estes indivíduos se julgam especialistas em tudo e insultam a inteligência alheia como se fossem reencarnações de Einstein ou Marie Curie, mas na prática não compreendem a necessidade de usar água para ferver um ovo.
Esta falta de conexão com o cotidiano das pessoas comuns (leia-se: aquelas que precisam trabalhar para sobreviver) é refletida também por suas discussões absurdas sobre “upload da consciência para o mundo digital” e “pós-humanismo” – e se citam filósofos que supostamente estudaram, estas menções logo se revelam deturpações que buscam remoldar as ideias originais para que justifiquem suas ações mais reprováveis. Longe de ser tão brilhantes quanto acreditam, eles frequentemente usam jargões que apenas disfarçam sua falta de inteligência – uma deficiência cognitiva escancarada, por exemplo, no momento em que mencionam o nome do jornalista saudita Jamal Khashoggi (assassinado a mando do líder de seu país dentro de um consulado em Istambul) sem aparentemente compreenderem a implicação do que estão dizendo naquele contexto. E é divertido que, na mesma cena, os bilionários façam referência à Conspiração de Catilina, comprovando como a piada sobre a obsessão de homens brancos com o Império Romano certamente possui um grau de verdade quando aplicada a eles.
Assim, é assustador constatar como pessoas como estas podem deter tanto poder em um mundo no qual (como retratado no filme) o lançamento de novos recursos em uma rede social leva à produção em massa de deepfakes que espalham fake news produzidas com o uso de inteligência artificial, tornando impossível a distinção entre o que é real e o que é inventado por grupos interessados em semear o caos, acentuando tensões, polarizações e praticamente fomentando guerras raciais e ataques a imigrantes e outras minorias. Para piorar, são justamente estas figuras que determinam a propagação destas tecnologias sem qualquer preocupação com suas consequências, já que tratam os efeitos de suas decisões como um jogo que só afetará segmentos da sociedade que consideram descartáveis de alguma maneira (em determinado instante do filme, dois dos personagens chegam a sugerir que os oito bilhões de habitantes do planeta não são tão “reais” quanto eles). Esta absoluta falta de empatia não é surpresa quando percebemos como a identidade destes indivíduos é definida pelo valor que acumularam - algo literalmente representado no longa quando escrevem no próprio peito a fortuna exata que possuem.
E se já é terrível reconhecer a concentração excessiva de poder nas mãos de poucos, isto se torna ainda mais apavorante diante do caráter destes, já que se tratam de homens que enxergam países inteiros como bens a serem adquiridos e discutem golpes de Estado como meras estratégias financeiras. Aliás, se estas discussões inicialmente podem soar como sátira, não demora até que Mountainhead nos lembre de que há muito de realidade em sua premissa, já que bilionários como Musk se infiltraram de tal maneira nos sistemas governamentais que o fornecimento e o controle de equipamentos, softwares, folhas de pagamento, comunicações e satélites lhe conferem um poder incalculável – e não é à toa que, por mais tóxico que Musk se revele, há uma enorme dificuldade por parte de vários países de cortarem laços comerciais com o sujeito, já que estão presos, por exemplo, aos serviços viabilizados por seus satélites.
Outro acerto do roteiro de Armstrong, diga-se de passagem, reside no modo como seus personagens imaginam a divisão do controle dos países que fazem parte de sua investida estratégica: enquanto os dois mais ricos debatem quem poderia assumir o comando dos Estados Unidos, os países do hemisfério sul são instintivamente concedidos ao mais “pobre" entre eles, expondo o desprezo com que encaram uma região do planeta que historicamente é marcada justamente pela exploração constante por parte de europeus e norte-americanos.
Convencidos de que o mundo deve ceder a seus caprichos, Venis e Randall são, como não é difícil imaginar, defensores radicais do “livre mercado”, da liberdade completa para que expandam suas fortunas sem qualquer preocupação com os impactos sobre o meio ambiente e sobre aqueles que não possuem contas bancárias contendo mais de dez dígitos – e o simples conceito de “regulamentação” é recebido como um insulto, uma traição. Porém, esta mentalidade não é exclusiva da dupla; mesmo Jeff, supostamente mais humanista, exibe uma hipocrisia profunda (ecoando melhor o Sam Altman real), já que sua demora em agir resulta na ampliação do valor de sua empresa.
Filme de câmara em sua essência, Mountainhead é, de um ponto de vista narrativo, um desafio considerável para um diretor estreante em longas-metragens como Jesse Armstrong, que, mesmo tentando conferir dinamismo visual e interesse estético ao filme, consegue apenas replicar a câmera nervosa tão característica (e eficaz) de Succession. Além disso, o realizador superestima nosso interesse em permanecer presos às figuras que retrata – principalmente considerando como já somos forçados a acompanhá-las e a reconhecer seu poder continuamente em nosso cotidiano. Além disso, se os personagens de Succession, mesmo repugnantes, contavam com carisma suficiente para que torcêssemos por seu sucesso apesar de sabermos que mereciam apenas a prisão, aqui este apelo não existe: Venis, Randall, Jeff e “Souper” são apenas figuras profundamente desagradáveis – e acompanhá-las por 108 minutos acaba se tornando uma experiência desgastante e frustrante. Para piorar, a partir de certo ponto o componente satírico do filme cede lugar à comédia aberta (inclusive com alguns momentos genuinamente divertidos); o problema é que este humor acaba por resultar em certa normalização das canalhices que os personagens cometem e das ideias que representam, castrando o comentário ácido da sátira para substituí-lo pelo riso explícito.
O que é uma pena, pois Armstrong acerta ao identificar a importância deste comentário; afinal, em um mundo no qual não podemos acreditar em nada, os donos do poder se tornam invulneráveis, desviando a atenção de sua responsabilidade pelas desigualdades crescentes e pelo colapso do planeta enquanto as vítimas de suas ações se distraem culpando umas às outras, passando a acreditar que o problema não reside nos bilionários e na acumulação de riqueza, mas no imigrante pobre que não detém poder algum.
E se a premissa do filme – a de que estamos caminhando rapidamente para um momento no qual já não poderemos acreditar em nossos próprios olhos – pode parecer um conceito de ficção científica, lembre-se de que esta semana, pouco mais de dois anos desde o lançamento do ChatGPT, o Google lançou seu Veo 3, que em questão de minutos cria vídeos altamente realistas a partir de qualquer prompt inserido pelo usuário.
Levando este fato em consideração, é impossível ignorar como a distopia retratada em Mountainhead já é a nossa realidade.
01 de Junho de 2025
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