O longa chinês Have a Nice Day é o que acontece quando um animador influenciado por Quentin Tarantino decide brincar de Pulp Fiction. Com um design expressivo que retrata uma cidade não identificada da China, mas que é uma combinação entre um vilarejo em que tudo parece próximo e um grande centro urbano barulhento e poluído, o filme traz uma galeria de personagens cujos caminhos se cruzam enquanto todos perseguem uma sacola cheia de dinheiro que pertence a um mafioso local e foi roubada por um de seus subalternos menos importantes.
Com um excepcional desenho de som que se destaca especialmente em sua edição de efeitos sonoros e na maneira como a ótima trilha (criada por um coletivo chamado The Shanghai Restoration Project) atua na composição de uma atmosfera que oscila entre o humor e o melancólico, Have a Nice Day é uma produção que se orgulha de sua contemporaneidade, trazendo menções à eleição de Trump (incluindo trecho de seu discurso de vitória) e ao Brexit. Ao mesmo tempo, o roteiro faz tangentes frequentes ao focar em conversas entre personagens que nada têm a ver com a trama principal, como quando dois amigos discutem a melhor forma de escolher um deus para seguir ou a natureza da liberdade (como se a inspiração em Tarantino já não fosse óbvia o bastante, o diretor Jian Liu inclui um plano no qual a câmera – ou “câmera” - se encontra dentro de um porta-malas que se abre).
Destacando a dominação do cinza no design ao ressaltar pontualmente a intensidade de outras cores (como o vermelho do sangue e o amarelo do casaco de um gângster), a animação estabelece bem seus diversos personagens, empregando estratégias curiosas para que nos importemos até mesmo com os menos relevantes – como ao trazer um interlúdio musical no qual um casal se fantasia vivendo uma existência feliz graças ao dinheiro roubado.
Ágil (apesar de uma problemática quebra no ritmo graças à decisão inexplicável de incluir um longo plano que exibe o oceano) e divertido, Have a Nice Day não é uma produção especialmente memorável, mas é irreverente o bastante para merecer atenção.
A seguir, vi meu filme favorito da competição.
A depressão só é romântica para quem não sofre da doença nem convive com que sofre. A ideia do artista atormentado, que alterna períodos de imensa e rica produtividade com outros de prostração e pensamentos suicidas, é sedutora como conceito narrativo, mas a realidade é bastante diferente, envolvendo sofrimento intenso e contínuo para quem a experimenta e um terrível sentimento de impotência (e também sofrimento) para quem vê uma pessoa amada passando por aquilo.
O romeno Ana, Mon Amour é uma obra que entende isso maravilhosamente bem. Dirigido por Cãlin Peter Netzer (do excelente Instinto Materno) a partir de roteiro co-escrito com Cesar Paul Badescu Iulia Lumânare, ele acompanha vários anos na vida do casal Toma (Mircea Postelnicu) e Ana (Diana Cavallioti) desde que os dois se conhecem num dormitório da faculdade. Vítima de constantes ataques de pânico, a moça se torna cada vez mais reclusa e deprimida, sendo amparada pelo namorado, que a incentiva a buscar ajuda profissional e se mantém ao seu lado em momentos devastadores – algo pelo qual é criticado por seus pais, que o julgam explorado pela companheira.
Observação delicada da dinâmica emocional e psicológica entre Toma e Ana, o filme ancora a trajetória dos dois em uma estrutura narrativa complexa que começa a se revelar de maneira inesperada quando, numa elipse abrupta, vemos o protagonista sem sua vasta cabeleira e conversando com um psicanalista (Adrian Titieni, que considero o Ricardo Darín romeno e que esteve em obras como A Morte do Sr. Lazarescu, Ilegítimo e Graduation). A partir daí, a excepcional montagem de Dana Bunescu conduz o espectador a vários pontos da vida do casal, permitindo que nos situemos sem que, para isso, precise tornar a cronologia óbvia: aqui, surge um ferimento sob o olho do rapaz que, deduzimos, será explicado em outro instante (e é); ali, a mudança no estilo do figurino sugere uma condição profissional distinta. (E, claro, o design de produção auxilia o trabalho de Bunescu.)
Esta falta de linearidade não é mera questão de estilo, porém, exercendo uma função fundamental: quando um momento especialmente difícil do namoro é contraposto pela imagem, anos depois, do casal com o filho pequeno, compreendemos ao mesmo tempo como a perseverança na relação trouxe frutos felizes e lembramos de que, mesmo com dificuldades no casamento, eles têm uma história antiga que não se descarta facilmente. Além disso, esta contraposição constante entre passagens diferentes da história da dupla inspira paralelos interessantes que muito revelam sobre aquela relação: é curioso, porém, como a primeira transa de Ana e Toma ocorre quando ela tenta acalmá-la durante uma crise de pânico, o que, de certa forma, já estabelece toda a dinâmica de codependência que se formará nos anos seguintes.
Fortalecido por duas performances fabulosas, Ana, Mon Amour é uma apresentação e tanto para o desconhecido Mircea Postelnicu, que, com um olhar sempre gentil, vive Toma como um homem que jamais hesita em correr em auxílio à amada – e a forma preocupada com que a observa durante uma ida à ópera é tocante por indicar como ele já a conhece o suficiente para antecipar a chegada de uma crise e como isto inspira cuidado, não impaciência ou frustração. Além disso, Postelnicu é hábil ao retratar o envelhecimento do sujeito, que aos poucos vai se tornando mais seco e irritadiço. Enquanto isso, Diana Cavallioti é o puro retrato da ansiedade que toma conta de alguém não só durante as crises emocionais, mas antes destas por temê-las. Enriquecendo a trajetória de Ana ao incluir, por exemplo, sutis tiques em uma das fases mais intensas da doença, a atriz vai da vulnerabilidade completa a uma força inesperada, soando sempre convincente e jamais cedendo a muletas de interpretação ou a elementos caricaturais tão comuns em composições envolvendo personagens depressivos.
Com um olhar apurado para detalhes que contribuem para ancorar suas narrativas na realidade (ou no “naturalismo”, que se aplica melhor ao Cinema), o diretor Cãlin Peter Netzer traz uma dimensão extra ao longa em cenas como aquela que retratam a conversa de uma ginecologista com Ana (e cujas pausas e hesitações dizem muito), no ruído de moedas que caem de um casaco quando Toma o veste ou de como este reclama das pernas adormecidas ao assumir uma posição desconfortável enquanto se confessa para um padre (e mais tarde, quando ele esfrega as pernas em outra cena, já deduzimos o que havia acabado de fazer).
Profundamente comovente e humano, Ana, Mon Amour é um dos melhores filmes sobre depressão que já tive a oportunidade de ver – e, como alguém que tem sua parcela de experiência com a doença, devo acrescentar que também é um dos que a melhor compreende.
O terceiro filme do dia foi Logan, cuja crítica pode ser lida aqui. Já a quarta sessão do dia foi a do longa brasileiro incluído na mostra competitiva:
Joaquim não tem este título por acaso: ao contrário do que sugeriria caso se chamasse apenas Tiradentes, o interesse deste novo trabalho do cineasta Marcelo Gomes não é falar da figura histórica, mas do homem que nela se transformaria. Se a versão dirigida por Oswaldo Cadeira e estrelada por Humberto Martins em 1999 trazia o inconfidente como um mito, cavalgando em câmera lenta ao som de “Blowin’ in the Wind” (suspiro), esta nova – e infinitamente superior – produção aborda o papel de Joaquim José da Silva Xavier na Inconfidência Mineira apenas em seu prólogo, quando vemos sua cabeça fincada em uma estaca diante de uma igreja, já que o restante da projeção se dedicará a acompanhar a formação de sua consciência política.
Ou, o que torna Joaquim tão instigante, “consciência política”.
Mas me adianto. Escrito pelo próprio diretor, o roteiro traz o alferes Joaquim José (Júlio Machado) trabalhando em um posto de cobrança de pedágio e perseguindo contrabandistas de ouro. Frustrado por ser constantemente ignorado por seus superiores em suas requisições de promoção, ele é destacado para buscar novos veios de ouro, comandando, na missão, um pequeno grupo formado por seu subordinado Januário (Rômulo Braga), pelo escravo João (Welket Bungué), pelo índio Inhambupé (Karay Rya Pua) e pelo português Matias (Nuno Lopes). Convencido de que o sucesso da jornada lhe traria reconhecimento e a promoção a segundo-tenente, o personagem-título também pretende usar sua parte do ouro para mandar procurar a escrava fugida Preta (Isabél Zuaa), por quem se apaixonara.
Retratando a época (o final do século 18) sem romantismo e sem buscar cosmetizá-lo, Gomes, o diretor de arte Marcos Pedroso e a figurinista Rô Nascimento apresentam o período como um lugar sujo e hostil; um mundo de dentes apodrecidos, cabelos cobertos de piolhos, peles marcadas por carrapatos e, no caso dos escravos, ainda por roupas imundas e rasgadas. Enquanto isso, a fotografia de Pierre de Kerchove carrega nas grandes angulares que exploram as locações e na instabilidade da câmera, que busca trazer um aspecto moderno à linguagem e evitando a abordagem clássica, rígida, que filmes de época normalmente empregam – e mesmo que falte a estes elementos fotográficos uma lógica que sugira algum arco narrativo coeso (a estratégia não muda muito ao longo da projeção), aprecio sua concepção básica.
Vivendo seu primeiro papel de destaque no Cinema (e que, num mundo justo, o lançaria imediatamente ao estrelato), Júlio Machado compõe o protagonista como um homem menos racista do que seus contemporâneos, mas longe de ser perfeito: ambicioso e rancoroso, ele tenta envenenar o superior contra um colega de farda e não hesita em arriscar os companheiros em sua jornada obsessiva por ouro. Com um olhar cada vez mais ensandecido, Joaquim é um indivíduo cuja solidão se torna cada vez maior à medida que afasta todos que o cercam e cujo envolvimento na luta contra a Coroa portuguesa se dá mais por frustração pessoal e profissional do que por princípios ideológicos. Além disso, se como alferes ele é visto como um nada, entre os revolucionários é visto com distinção – algo que, logo sentimos, talvez seja tão atraente para o protagonista quanto a independência do Brasil. Ou mais.
Por outro lado, ainda que as ironias constantes presentes no roteiro tenham suas virtudes, há momentos nos quais se tornam óbvias demais, o que revela uma falta de confiança incômoda na capacidade do espectador de enxergá-las – cenas como aquela na qual Joaquim diz “Você sabe que não suporto traição!” ou outra na qual começa a discutir a independência dos Estados Unidos como sinal de uma nação mais evoluída e acaba pesando a mão ao completar com a observação de que aquele é um país que jamais colonizaria outros. Já em outros aspectos, Joaquim se sai melhor ao se manter mais sutil, como ao transformar em sons animalescos, de forma discreta, os gemidos do chefe do (anti-?)herói ao estuprar Preta.
No entanto, o ponto forte do filme reside mesmo em sua habilidade ao expor as contradições de indivíduos que lutavam contra o domínio português, mas não viam qualquer problema em possuir escravos (em certo instante, a esposa de um dos líderes do movimento surge deitada numa rede balançada por uma escrava. Da mesma forma, Marcelo Gomes deixa clara a hierarquia inata àquela sociedade: se os brasileiros eram inferiores aos portugueses, ainda mais discriminados eram os índios e os negros – e há uma cena belíssima na qual João e Inhambupé cantam juntos, em suas línguas nativas, criando uma harmonia dos excluídos enquanto seus superiores brancos se embebedam ao lado de uma fogueira.
Mas Gomes vai além ao ressaltar que Joaquim é visto pelos burgueses que o atraem para a revolução como um inferior, um bruto útil aos seus propósitos. “Talvez eu tenha sido o único a perder a cabeça porque era o mais pobre”, ele diz nos primeiros minutos do filme numa narração vinda do além-túmulo cinematográfico. E é este o brilhantismo de Joaquim: o fato de se encerrar onde a maioria das obras sobre o sujeito iniciaria, já que, para seu realizador, ainda mais importante que ilustrar a formação de “Tiradentes” é apontar como o Brasil já deu início à sua independência sem se preocupar com os erros estruturais mais graves de sua sociedade, cuja desigualdade manteve-se intocada, mas que sempre teve um talento particular para convencer os menos favorecidos de que os interesses da elite eram os mais importantes.
E o olhar de desprezo lançado na direção do protagonista por aqueles que este julga seus iguais é, de uma forma trágica, um símbolo atualíssimo do país mesmo quase dois séculos após alcançar sua independência.
O que me traz ao último filme que vi no Festival de Berlim 2017 e que acabou formando uma sessão dupla interessante com Joaquim.
Quando Vazante, novo filme da cineasta Daniela Thomas tem início, vemos um parto malsucedido que, no interior de Minas Gerais em 1821, custa as vidas da mãe e do bebê. Enquanto isso, o viúvo, o tropeiro português Antônio (Adriano Carvalho, um Gregório Duvivier lusitano), retorna de viagem trazendo o enxoval do bebê sem saber que não terá a quem vestir, sendo recebido pela sogra (Juliana Carneiro da Cunha), que acaba entrando em estado quase catatônico em função da perda. Algum tempo depois, porém, Antônio se interessa pela sobrinha da esposa, Beatriz (Luana Nastas), casando-se com esta.
Ainda uma pré-adolescente que nem sequer começou a menstruar, Beatriz parece demonstrar curiosidade pelo protagonista quase como uma brincadeira, como se a ideia de atrai-lo fosse um pequeno jogo sem consequência – e, portanto, acaba recebendo um choque de realidade quando se descobre casada com um homem bem mais velho e que se encontra ansioso para consumar o matrimônio, não vendo qualquer problema em transar com uma noiva cuja pouca idade o leva a presenteá-la com uma boneca.
Sim, é claro que estamos falando de uma outra época, com valores e costumes bastante distintos dos nossos, mas Vazante não busca – acertadamente – normalizar a natureza repugnante daquele acerto apenas por ocorrer no início do século 19 – e, assim, constantemente nos vemos desconfortáveis diante da postura casual de Antônio enquanto basicamente força Beatriz a acolhê-lo em sua cama.
Contudo, este elemento é apenas parte da história contada pelo roteiro de Thomas e Beto Amaral, que cria uma narrativa difusa e que encontra dificuldades para identificar seu verdadeiro protagonista, que basicamente percebemos ser Antônio quase que por exclusão. Ao longo do filme, por exemplo, passamos um tempo considerável acompanhando os pais de Beatriz, Bartholomeu e dona Ondina (Roberto Audio e Sandra Corveloni), que lidam com a falta de dinheiro e com a frustração por ver a fortuna da família indo parar nas mãos de Antônio, de quem se tornam dependentes – um enredo abandonado quando o casal simplesmente desaparece da trama. Aliás, algo bastante similar ocorre com Jeremias (Fabrício Boliveira), um escravo liberto que agora oferece seus serviços para donos de terra interessados em cultivá-las: hostil aos escravos da fazenda, ele acaba por tomar uma atitude extrema ao surpreender Beatriz e o jovem Virgilio (Vinicius dos Anjos), filho da escrava Feliciana (Jai Baptista), quando então... também deixa o longa sem maiores explicações. Se múltiplas narrativas enriquecem um projeto quando bem desenvolvidas, aqui acabam soando como resultado de um roteiro sem foco, o que é uma pena.
Já a fotografia de Inti Briones, concebida em um preto-e-branco elegante que traz peso e certa crueza a Vazante, é digna de aplausos por também criar quadros belos e evocativos que se mantêm vivos mesmo depois que o longa chega ao fim – quadros como aqueles que trazem dona Zizinha em sua cadeira e com o olhar perdido ou aquele no qual Beatriz surge sentada na beira da cama e com Antônio adormecido ao fundo. Além disso, a própria fazenda é icônica por si mesma, ressaltando o isolamento emocional daqueles personagens ao aparecer cercada por montanhas e vegetação.
Brutal ao expor o sadismo inerente ao escravagismo e corajoso ao trazer um protagonista lacônico e desprezível, Vazante talvez não faça jus aos trabalhos que Daniela Thomas dirigiu com Walter Salles (Terra Estrangeira, O Primeiro Dia e Linha de Passe), mas é certamente um imenso avanço com relação ao seu longa anterior, Insolação, de 2009. Só espero que ela não leve outros oito anos para lançar seu próximo filme, pois estou bastante curioso para descobrir para onde ela está caminhando.
E assim encerro a cobertura da Berlinale 2017. Foram 44 filmes vistos e criticados, somando um total de quase 22 mil palavras escritas em nove dias. Agradeço a companhia de vocês e, para finalizar, listo abaixo os vencedores dos prêmios distribuídos pelo júri oficial com links diretos para os artigos nos quais os comentei (lembrando que o brasileiro Pendular levou o da FIPRESCI como melhor da mostra Panorama, oferecido por um júri formado pela crítica internacional).
Urso de Ouro: On Body and Soul
Urso de Prata, Grande Prêmio do Júri: Félicité
Urso de Prata, Prêmio Alfred Bauer: Pokot (Spoor)
Urso de Prata de Direção: Ari Kaurismäki, por The Other Side of Hope
Urso de Prata de Atriz: Kim Minhee, por On the Beach at Night Alone
Urso de Prata de Ator: Georg Friedrich, por Helle Nächte
Urso de Prata de Roteiro: Una mujer fantástica
Urso de Prata por Contribuição Artística: Dana Bunesco pela montagem de Ana, Mon Amour
Um grande abraço e bons filmes!
18 de Fevereiro de 2017