Poucas semanas depois de Amantes sair de Berlim com o Urso de Ouro nas mãos, outro estudo de uma família WASP (branca, anglo-saxã e protestante) disfuncional, Laços de Ternura, também levaria o Oscar em 1984. Apesar desta proximidade temática, no entanto, os filmes de John Cassavetes e James L. Brooks (o mesmo de Melhor É Impossível) não poderiam ser mais diferentes. Na verdade, os dois talvez ocupem polos opostos numa escala de estilos e abordagens cinematográficas – ainda que executem aquilo a que se propõem de forma similarmente competente.
O longa de Brooks (fazendo sua estreia na direção) é um daqueles exemplares canônicos dos fundamentos da narrativa clássica hollywoodiana: o roteiro tem alguns diálogos afiados, com duplos sentidos que lembram Billy Wilder, elevados por um elenco bonito e talentoso comandado por uma direção enxuta e ágil que condensa cerca de 30 anos de história em pouco mais de duas horas. Não por acaso, a produção quase arrebanhou o grand slam do Oscar – venceu melhor filme, direção, roteiro adaptado, atriz (Shirley MacLaine) e ator coadjuvante (Jack Nicholson, levando o segundo de seus três para casa).
Os minutos iniciais de Laços de Ternura já deixam todas essas qualidades bem claras. O primeiro plano sintetiza a história: a relação entre uma mãe sufocante e um tanto codependente, Aurora (MacLaine), e sua filha Emma (Debra Winger), destinada a sofrer. Logo em seguida, Brooks sumariza 20 anos em pouco menos de sete minutos, saltando rapidamente para o casamento de Emma. Nessa breve montagem, porém, ele não perde a chance de definir a filha como uma mulher sem medo de se expor – com a breve cena da saia em frente aos carregadores da mudança. E basta a primeira aparição do marido dela, Flap Horton (Jeff Daniels, desde sempre interpretando muito bem um cara branco escroto), para o cineasta deixar bem claro quem ele é: um sujeito que diz “eu amo a sua aparência” (“I love the way you look”), em vez de eu “eu te amo”.
O longa acompanha essa jornada de mãe e filha guiado menos por uma trama carregada de reviravoltas do que por uma ideia de vida ordinária observada a partir do ponto de vista de duas mulheres - e é isso que talvez mais defina Laços de Ternura como um produto de seu tempo. Em 1983, ele foi um dos grandes lançamentos (e sucessos) da Paramount: arrecadou mais de 100 milhões de dólares com um orçamento de oito milhões. Em 2019, muito provavelmente não seria produzido por nenhum estúdio; se fosse feita hoje, a adaptação do romance de Larry McMurtry (que, 20 anos depois, ganharia o Oscar de roteiro pela adaptação de O Segredo de Brokeback Mountain) seria uma minissérie da HBO ou de alguma plataforma de streaming – algo como Big Little Lies.
Nas mãos de Brooks, porém, Laços é muito cinema. O que mais impressiona, provavelmente, é a competência com que o diretor lida com a passagem do tempo: não há letreiros com datas e cada cena dura apenas o suficiente para passar sua informação, desenvolver a relação entre os personagens e mover a história adiante. Num piscar de olhos, Emma tem três filhos, Aurora tem um flerte chove-não-molha de dez anos com o vizinho astronauta, Garrett (Nicholson, transbordando seu talento de fazer qualquer diálogo soar como uma piada imunda), e o espectador não sente que perdeu absolutamente nada na trajetória delas. É possível que o filme passe mais tempo com mãe e filha ao telefone (fixo, hoje um objeto de época), mostrando a força do laço das duas, do que desenvolvendo a trama.
E se o longa não envelheceu tão mal - e não faz feio em tempos de #MeToo - é graças à humanidade cativante dessas duas mulheres. O roteiro confere toda a agência da história a elas – mesmo na infidelidade mútua do casamento de Emma, o caso dela com Sam (John Lithgow) tem bem mais espaço, impedindo que a protagonista seja retratada como uma vítima. Para um filme escrito e dirigido por um homem, baseado no romance de outro, Laços apresenta uma visão muito honesta do feminino – especialmente quando se leva em conta que acompanha duas personagens texanas e razoavelmente conservadoras, o que fica claro no choque de Emma com os comentários sobre aborto e carreira das amigas de Patsy (Lisa Hart Carroll) em Nova York. É um momento que mostra como ela é mais parecida com a mãe do que supõe e como Brooks e McMurtry enxergam Aurora e a filha com muito respeito, sem nunca ignorar que são duas mulheres que optaram por uma existência doméstica dedicada aos filhos.
No mais, os figurinos podem ter envelhecido, mas dizem muito de cada um dos personagens – dos vestidos “belle dame” de Aurora à deterioração do visual de Emma com o passar dos anos. A trilha de Michael Gore, porém, não tem a mesma desculpa: soa hoje datada e óbvia, bem aquém do seu trabalho em Fama (1980).
E por mais que se lembre hoje de Laços de Ternura como um melodrama lacrimoso, o longa é bastante contido e livre de dramalhão (vide a sutileza da cena do término do relacionamento de Aurora e Garrett) – pelo menos até a chegada do câncer no ato final, que parece hoje algo quase desnecessário à história. Os “grandes momentos” decorrentes da doença são bem menos interessantes do que os pequenos detalhes, menos óbvios, da realização de Brooks – como o paralelo entra a cena inicial e a final, com Aurora pedindo que a neta se aproxime mais, ainda codependente, ainda superprotetora. É essa economia e elegância narrativa que faz do longa uma produção que cumpre o que promete para um público específico: quem quiser ver Amantes provavelmente vai odiar Laços e vice-versa. Tem gente branca disfuncional para todos os gostos.
A Competição
A vitória de Laços de Ternura é um daqueles momentos quase sui generis na história do Oscar: uma ocasião em que a Academia preferiu uma história sobre a vida interior de duas mulheres a uma narrativa épica do feito de “grandes homens” – no caso, Os Eleitos: Onde o Futuro Começa. E caso haja alguma impressão de que a aventura espacial do diretor Philip Kaufman envelheceu melhor, ou é mais respeitada hoje, isso é mais um reflexo de como certa ideia de “masculinidade” – e inclua-se aí ação, efeitos visuais, escala, espetáculo técnico – ainda é considerada “maior” ou “mais importante” no universo do cinema do que o intimismo, a complexidade emocional e outros valores associados a uma ideia de “feminino”.
Em termos de qualidade dentro do que se propõem, e de longevidade, os dois filmes são quase equivalentes – e, na verdade, a capacidade de síntese narrativa de Brooks pode ter algo a ensinar às mais de três horas de Eleitos. Para quem quiser fugir dessa disputa entre os clubes do Bolinha e da Luluzinha, porém, a melhor opção em 1984 era O Reencontro. O longa de Michael Shamberg é um daqueles clássicos “filmes de uma geração”, com um grande apelo jovem, que a Academia – sempre mais velha e de cabeça branca – raramente reconhece. Some ainda A Força do Carinho (que rendeu o Oscar de melhor ator a Robert Duvall) às três produções, e a seleção do Oscar de 1984 não foi das piores.
Onde ver: Laços de Ternura chegou a ser lançado em blu-ray no Brasil, numa edição atualmente esgotada. Mas é um favorito da TV paga e não é difícil esbarrar com ele em um dos Telecines da vida
24 de julho de 2019
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