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Ano 02, Filmes 1 e 1/2 The Winner Is...

Algo inédito – e cada vez mais raro, dadas as regras proibitivas adotadas pelos grandes festivais nos últimos anos – abre o segundo ano da nossa coluna: um empate. Em 1985, o Urso de Ouro do Festival de Berlim foi dividido entre o longa inglês Sombras do Passado (Wetherby) e A Mulher e o Estranho (Die Frau und der Fremde), única produção da extinta Alemanha Oriental a vencer o prêmio.

São dois filmes que, embora essencialmente clássicos, transitam em universos temáticos e propostas narrativas bastante diversas – deixando claro o racha no júri presidido pelo roteirista alemão Wolfgang Kohlhaase. O elemento comum mais forte entre eles, porém, é a qualidade de suas dramaturgias, com roteiros sofisticados e espacialmente contidos que, enquanto eu os assistia, me levaram a pensar que os dois renderiam ótimas peças de teatro – de forma alguma por uma ausência de méritos cinematográficos, mas pela pura densidade dramática de seus textos.

Não por acaso, Sombras do Passado foi a estreia do dramaturgo David Hare (roteirista de As Horas e O Leitor) na direção. O filme começa com uma anedota sobre Richard Nixon e sua esposa Pat, contada pela professora Jean Travers (Vanessa Redgrave) ao amigo Stanley (Ian Holm, vulgo Bilbo Baggins), advogado. Ao final, ela pergunta o que a história diz sobre Nixon, e ele retruca shit, I ask you what does that tell you about Pat? (“Eu te pergunto o que ela diz sobre Pat”).

E esta é a essência da história narrada nas próximas duas horas. O filme acompanha a repercussão na vida de Jean – uma jovial e simpática professora de Wetherby (título original da produção), distrito universitário de Essex – após um estranho jovem, John (Tim McInnerny), infiltrar-se insuspeitamente em um jantar dela para os amigos e, no dia seguinte, retornar a sua casa e se suicidar na sua frente. Sombras passa, então, a alternar entre flashbacks e presente para, na superfície, tentar entender os motivos do trágico rapaz. Só que Hare usa essa trama como mera desculpa para fazer, na verdade, um estudo de personagem sobre a professora vivida por Redgrave.

Look to her, Moor, if thou hast eyes to see. She has deceived her father, and may thee é a citação de Othelo no quadro da aula de Jean logo no início do longa. Pouco depois, numa conversa com uma aluna, a protagonista vai ter seus princípios liberais e sua postura intelectual colocados em xeque pela garota. E a proposta do filme é essa: colocar a fachada jovial de Jean contra a parede e forçá-la a mostrar as rachaduras por trás de uma pintura aparentemente perfeita e intocável.

A produção quer revelar a sombra por trás de toda a luz da professora. E para isso, Hare faz uso de uma referência interessante para um estudo de personagem: o noir. A fotografia de seu filme é marcada por muitas, muitas sombras (pouco sutis, inclusive), especialmente nos planos com a presença de Jean. E nos flashbacks da juventude da protagonista – em que ela é vivida por Joely Richardson, filha de Redgrave, estreando no cinema –, esta comenta com a mãe sobre O Terceiro Homem, clássico do gênero. Aliás, o cineasta carrega essa referência com a insegurança de um dramaturgo fazendo sua estreia no cinema; uma sequência em que Jean vai a um restaurante chinês em Essex, por exemplo, é uma clara homenagem às caminhadas de Orson Welles pelas ruas de Viena no longa de Carol Reed.

Com uma montagem que vai e volta no tempo o filme inteiro – com direito a algumas interessantes rimas visuais e sonoras –, Hare vai montando esse quebra-cabeça para construir um quase-noir inglês. O resultado, aos poucos, desmonta as defesas da personagem de Redgrave e revela como, às vezes, nos encerramos tanto em nós mesmos que achamos que ninguém é capaz de nos ver ou nos entender – e, quando isso acontece, é algo profundamente perturbador.

E o curioso é que essa trama, que lembra muito um romance de Ian McEwan, de um homem (Hare) tentando desvendar uma mulher (Jean) é, na verdade, uma história de vários homens sofrendo com a incapacidade de entender suas parceiras: o desgraçado John; Jim (Robert Hines), o namorado da protagonista nos flashbacks; e o detetive Arthur (Christopher Fulford). O elenco conta ainda com um semi-iniciante Tom Wilkinson e uma sempre competente Judi Dench.

Mas não tenha dúvida: Sombras do Passado pertence a Vanessa Redgrave. Aos 48 anos, provavelmente no auge da beleza e do talento, o rosto forte e enigmático da atriz inglesa contém, em suas expressões mínimas e precisas, toda a luz e sombra que Hare busca em Jean. Um encontro complexo de solidão e sexualidade, fortaleza intelectual e uma profunda fragilidade e calor humanos. Mais do que a realização estreante de Hare, ou os malabarismos da montagem de Chris Wimble, sua performance, carismática sem jamais subir um tom acima do necessário, é o que torna a protagonista tão hipnótica e intrigante – uma esfinge que vale a pena decifrar, ainda que ela mesma nunca te desafie a isso.

Quando Redgrave profere frases carregadas, como no matter how locked up we are, sometimes we have to let people inou now everywhere the darkness beckonscom a naturalidade e a verdade sem afetação de quem enumera uma lista de compras, você entende o que é uma Grande Performance Cinematográfica. Para os fãs da atriz, especialmente, Sombras é imperdível.

 

Amigos, amigos...

Se sombras são a marca registrada de Sombras (um dos clássicos títulos brasileiros desnecessariamente explicativos), o que mais chama a atenção no visual de A Mulher e o Estranho é sua janela clássica, em 1:33:1. Junto com várias sequências (um tanto aleatoriamente) em um sépia monocromático, similar às viragens (uma espécie de tingimento) do cinema mudo, ela tem uma função igualmente referencial – lembrando imageticamente os primórdios do cinema e localizando temporalmente a produção em 1918, no fim da Primeira Guerra.

Além disso, o recurso serve para acentuar a sensação de aprisionamento – muito importante à narrativa – dos personagens no quadro. Logo na sequência inicial, os soldados alemães Karl (Joachim Lätsch) e Richard (Peter Zimmermann) se encontram em um campo bastante vasto e aberto, mas o enquadramento restritivo deixa clara a situação dos dois ali, de prisioneiros de guerra. Enquanto executam trabalhos forçados, Richard conta em detalhes seu romance e sua devoção pela idolatrada Anna (Kathrin Waligura) – e o grau “too much information” de intimidade a que esses relatos chegam é que os dois amigos-parceiros-comparsas se masturbam juntos ao pensar nela.

O resultado disso é que, quando os russos decidem realocar os prisioneiros para o Oriente Médio e Karl consegue escapar, deixando o colega ser levado a contragosto, ele parte atrás de Anna. E diz a ela que é Richard. Ele sabe todos os detalhes do relacionamento dos dois, as coisas que precisam ser consertadas na casa, o nome dos vizinhos, as histórias de infância que ela contou ao seu amado. E o mais interessante de A Mulher e o Estranho é que Anna sabe, o tempo todo, que Karl não é seu Richard, mas... ainda que ele realmente fosse, ainda seria seu marido? Seria o mesmo?

Nesse sentido, o longa do diretor Rainer Simon é uma reflexão sobre os efeitos de um conflito traumático como a Primeira Guerra sobre noções de moralidade, intimidade, amor e direito à felicidade – temas que, coincidentemente, esta coluna discutiu na semana passada. Mais do que O Ano do Sol Tranquilo, porém, A Mulher é precursor de longas como os excelentes Phoenix e Em Trânsito, de Christian Petzold, e o muito bom Frantz, de François Ozon, obras que pensam identidade em tempos de guerra: como quatro anos podem não apenas parecer décadas em um conflito, mas podem representar também morte e renascimento. Duas vidas diferentes, antes e depois. E quais as implicações éticas e morais disso, como julgar essas pessoas?

Anna recebeu uma carta equivocada do exército e acredita que Richard morreu no primeiro ano da guerra. Mas Karl é insistente, sabe coisas impossíveis e... quando os dois fazem amor pela primeira vez, é um sexo sôfrego, desesperado, entre duas pessoas tentando sobreviver – ou mais, ressuscitar. Anna e Karl precisam viver, se sentir vivos, então eles se entregam.

Mas não é algo fácil ou rápido, especialmente para ela. E a forma como o cineasta e seu diretor de fotografia, Roland Dressel, usam a profundidade de campo para ampliar o quadro espacialmente restrito do 1:33, não apenas incluindo mais informação, mas criando distanciamento e separação entre os personagens, é uma aula de exploração narrativa do recurso. Essa interpelação entre a vida possível de um pós-guerra porvir, e a morte representada por um conflito em seus últimos suspiros, mas ainda em curso, é reforçada ainda pela alternância entre a lavagem monocromática já citada e sequências em cores naturalistas, com a presença de um verde vivo e azuis mais fortes.

Curiosamente, apesar de certa (boa) teatralidade na dramaturgia – com várias cenas de dois ou três personagens numa locação única, lembrando um palco (o confronto-clímax é eletrizante), e a presença do “coro” dos vizinhos – A Mulher é adaptado de um romance: Anna e Frank, do alemão Leonhard Frank. E daí veio seu maior drama: após o Urso de Ouro em Berlim, a produção teve problemas com os direitos autorais da obra e sua distribuição foi suspensa, só sendo finalmente relançada mais de 20 anos depois.

 

A Competição

Sombras do Passado e A Mulher e o Estranho são dois ótimos filmes, mas nenhum chega a ser uma obra-prima inquestionável. E o empate entre eles é sintomático da competitiva da Berlinale de 1985, sem uma grande produção desse nível, que se destacaria das demais nos anos seguintes.

Além da dupla, o festival daquele ano contou com o Eu vos Saúdo, Maria, de Godard, a comédia Les Enfants, de Marguerite Duras, e o lacrimoso Um Lugar no Coração, que rendeu a Robert Benton o Urso de Prata de direção – e a Sally Field seu segundo Oscar de melhor atriz, poucas semanas depois.

 

Onde ver: Sombras do Passado está disponível na íntegra no YouTube (confira aí embaixo). Já A Mulher e o Estranho é um pouco mais difícil de achar, mas foi exibido em cópia restaurada na Mostra de São Paulo do ano passado (2018) e, se você fuçar com vontade, pode achá-lo, com legenda em português, nos recônditos da internet.

14/08/2019

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Sobre o autor:

Daniel Oliveira é crítico de cinema desde 2004. Foi freelancer para veículos como Folha de S. Paulo e, entre 2012 e 2018, foi repórter e crítico do jornal O Tempo. É formado em Comunicação Social pela UFMG, com especialização em História da Cultura e da Arte, e pós em Roteiro para Cinema e TV, pelo Humber Institute, de Toronto. No Canadá, trabalhou como leitor e analista de roteiros. Criou o site Pílula Pop e foi seu editor de 2004 a 2011. É mestrando em Cinema pela Universidade da Beira Interior, em Portugal, e membro da Abraccine.
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