DIA 03
Vamos lá:
08) Há pouco tempo, comentei em uma rede social como estava farto de cinebiografias – especialmente de músicos e outros artistas -, já que de modo geral todos os exemplares do gênero tendem a aderir às mesmas fórmulas, soam episódicos e acabam se tornando mais hagiografias do que retratos de uma vida complexa. Pois um ótimo exemplo do potencial desperdiçado deste tipo de produção é O Século 20, longa canadense dirigido por Matthew Rankin que conta a história de um ex-primeiro-ministro canadense, William Lyon Mackenzie King, através do surrealismo, da sátira e do absurdo ao mesmo tempo em que oferece elementos suficientes para que o espectador possa compreender as várias facetas do protagonista.
Interpretado por Dan Beirne como um homem cuja capacidade de empatia é suficiente para levá-lo a dedicar parte do seu tempo a animar uma órfã tuberculosa, mas não a ponto de fazê-lo manter a atenção nesta quando a mulher de seus sonhos surge em seu campo de visão, Mackenzie King é um político convencido pela própria pretensão (e pela mãe) de estar destinado a ocupar o posto mais importante de seu país (abaixo da rainha Vitória, claro) – uma ambição prestes a se concretizar, já que as “provas” para o cargo terão início em breve. Hostilizado pelo ainda mais arrogante Arthur Meighen (Brent Skagford) e tratado com simpatia pelo também “competidor” Bert Harper (Mikhaïl Ahooja), o sujeito ainda se vê forçado a lidar com a chantagem de um médico (?) que conhece seu mais embaraçoso segredo: seu fetiche por calçados feminino (mais especificamente, de tocá-los e cheirá-los enquanto se masturba).
Embora nada que eu tenha lido sobre Mackenzie King depois de assistir a este filme tenha apontado para a veracidade do fetiche em si, o roteiro de Rankin demonstra uma curiosa fidelidade a diversos fatos de sua vida e daqueles que o cercavam mesmo acrescentando um ou outro detalhe obviamente fantasioso (como no que diz respeito ao destino de Harper, por exemplo). Ao mesmo tempo, a própria abordagem visual do longa não deixa margem para dúvidas com relação às intenções do realizador, já que combina cenários minimalistas e influenciados pelo expressionismo a cores básicas (azul, branco e vermelho, na maior parte do tempo) para criar um mundo no qual é natural que pássaros sejam representados por fantoches, elementos de animação substituam os atores à distância e triângulos onipresentes evoquem um forte sentimento de rigidez, disciplina e claustrofobia. Para completar, a razão de aspecto reduzida, os riscos na “película” e os grãos grossos ressaltam a impressão de estarmos assistindo a um filme do início do século passado (que é justamente o período do qual a história se aproxima e que dá título ao projeto).
Dotado de um humor que vai do físico ao verbal com o mesmo conforto, O Século 20 é, por outro lado, recheado de passagens que claramente dependem de alguma familiaridade com a história, a cultura e os costumes canadenses para que as piadas fiquem claras – e embora fosse capaz de reconhecer que algo estava sendo alvo de ridículo em vários momentos, nem sempre consegui discernir exatamente que alvo era este. (Daí minha curiosidade pós-filme de ler algo sobre os personagens.) Há, por exemplo, um esforço óbvio de retratar Winnipeg como um lugar abandonado (ou, no mínimo, totalmente entregue ao hedonismo), mas, além do fato de o diretor ter nascido ali, não posso precisar o motivo dos “ataques” (creio que um canadense ficaria igualmente perdido caso eu fizesse referências a estereótipos/preconceitos regionais brasileiros). Em contrapartida, não é preciso ser originário do Canadá para entender o que Rankin está ironizando na sequência que traz os testes para o posto de primeiro-ministro, já que o patético e masculinizado sentimento patriótico é algo que, como sabemos, parece ser universal.
Sem receio de apelar para o grotesco em cenas como a que envolve um cacto ejaculando (hum-hum) ou a intimidade... hum... excessiva entre Mackenzie King e a mãe (um excelente Louis Negin), O Século 20 traz até mesmo uma versão do tipo de tortura condicionadora que Kubrick retratou em Laranja Mecânica, mas que aqui, em vez de envolver os olhos do protagonista, é aplicada em seu pênis quando este fica ereto (hum-hum).
Funcionando de maneira surpreendente como estudo de personagem, O Século 20 é a comprovação de que as cinebiografias não precisam se resumir a um compêndio dos “melhores momentos” da vida de alguém, já que a essência das pessoas costuma ser mais visível não nos extremos, mas entre estes.
09) O gato parecia faminto e abandonado quando foi adotado pela família da imigrante búlgara Irina, que se mudou para Londres com o irmão e o filho pequeno para tentar uma vida melhor, mas conseguiu emprego apenas em um pub apesar de ser uma arquiteta experiente. Exausta e revoltada por receber uma cobrança de 25 mil libras por obras feitas no edifício em que mora – e sobre as quais não foi consultada -, ela descobre ter arranjado mais um problema quando seus raivosos vizinhos a acusam de ter roubado seu gato de estimação. Para piorar a situação, o animal, assustado com os gritos, se esconde em um buraco na parede atrás da geladeira e se recusa a sair.
E é neste ponto que percebemos que Gato na Parede enxerga, na situação, uma metáfora muito interessante.
Mas de quê, exatamente? Das condições sufocantes dos imigrantes na Europa? Da mãe solteira que tem que cuidar de uma criança e do irmão adulto, cujo mestrado de nada vale na Inglaterra? Do abandono da classe proletária pelos governantes? O fato é que as diretoras e roteiristas Vesela Kazakova e Mina Mileva jamais conseguem articular de modo eficaz como aquela imagem – que dá título ao filme! – se relaciona ao retrato que constroem da protagonista e de suas dificuldades, talvez apostando que os espectadores projetariam ali o que bem entendessem. O que, devo apontar, não seria problema caso percebêssemos que ao menos o longa tem uma ideia sobre o assunto.
O mais triste é que, com exceção do peso dado ao bichano, as cineastas se saem muito bem na tarefa de dar vida àquelas pessoas, sendo auxiliadas pela excelente estreante Irina Atanasova, que interpreta sua homônima com um misto de frustração e cansaço que fortalecem nossa percepção acerca de todo o peso que carrega sobre os ombros. Além disso, a comunidade em torno de Irina é retratada por uma galeria de rostos comuns que eu não me surpreenderia se pertencessem a não-atores escalados para viver versões de si mesmos – em especial os vizinhos que se reúnem para discutir a situação do prédio e acabam em um debate sobre o Brexit. E, aliás, o longa ganha pontos por tratar os dois lados com respeito, ouvindo o que têm a dizer sem tentar julgá-los.
Ou talvez isto tenha menos a ver com uma tentativa de encontrar um território em comum e mais com a própria falta de posicionamento do filme, já que, em outros momentos, as diretoras parecem defender pontos de vista contraditórios: ao mesmo tempo em que aponta com aprovação como o governo oferece cursos regulares para que cidadãos sem emprego possam ganhar novas habilidades que facilitem sua contratação, em diversos outros momentos a protagonista surge criticando os benefícios oferecidos pelo Estado, repetindo o mais tolo e reacionário discurso sobre como “quem paga impostos tem que sustentar parasitas que não querem trabalhar” (estou parafraseando). A mulher, diga-se de passagem, trata como uma questão de orgulho preferir passar dificuldades do que aceitar “esmolas” do governo – e se esta postura refletisse algo sobre como ela se enxerga, sendo imigrante, ao menos serviria a algum propósito em vez de soar apenas como uma repetição de bordões neoliberais que não encontram reflexo nos demais elementos temáticos da obra, que ao menos captura bem como a classe trabalhadora muitas vezes é levada a brigas internas (neste caso, com os imigrantes sendo racistas e os vizinhos negros sendo xenofóbicos), facilitando o trabalho das elites para dominá-la.
No final das contas, acabei enxergando, no gato na parede, um símbolo das cineastas tentando encontrar uma saída satisfatória sem muito sucesso.
10) Apesar de todos estes problemas, porém, Gato na Parede ao menos tem o mérito de não tentar aparentar ser mais relevante do que é na realidade – algo que, lamentavelmente, o filme seguinte que vi, Meu Coração Só Irá Bater Se Você Pedir, faz sem qualquer pudor (a começar pelo título pretensioso).
Dirigido e roteirizado pelo estreante Jonathan Cuartas, o longa nos apresenta a Dwight (Patrick Fugit), que, quando a projeção tem início, oferece comida, bebida e carona a um indigente apenas para matá-lo em seguida, levando-o para casa e ajudando sua irmã Jessie (Ingrid Sophie Schram) a cortar seu pescoço e coletar seu sangue a fim de alimentar o irmão caçula, Thomas (Owen Campbell), que sofre de uma “condição misteriosa” (spoiler: ele é obviamente um vampiro, com direito a se queimar com a luz do sol).
Ah, sim: Dwight é nosso protagonista e o filme tenta ativamente despertar nossa simpatia por sua triste situação.
Mas por que deveríamos nos importar com ele? Qual seria a característica redentora que faria jus ao nosso “perdão” por seus crimes brutais? A resposta: ele se sente mal e culpado, continuando a exercer a tarefa graças à pressão da irmã.
Pobre serial killer.
Sem sequer se preocupar em esclarecer as circunstâncias que servem de premissa ao filme, Cuartas aparentemente julga irrelevante desvendar há quanto tempo Dwight mantém aquela rotina (somos levados a acreditar que há anos), o que houve com os pais do trio, se sempre moraram naquela casa e se nunca se questionaram – até aquele momento – se a vida do irmão vale o que suponho serem no mínimo várias dúzias de mortes. Especialmente se considerarmos que, mesmo quando alimentado, Thomas mal consegue se mover pela casa (vê-lo atirar a tigela de sangue no chão, por birra, é a cereja do bolo).
Além disso, mesmo que ignoremos a flagrante misoginia no emprego do clichê da mulher fria, manipuladora, ladymacbethiana, que leva um homem bom a cometer atrocidades, como podemos ignorar também o fato de que pessoas em condição de rua, imigrantes e prostitutas são tratados como a escolha “natural” para o sacrifício? Claro, alguém generoso poderia sugerir que este é justamente o ponto do filme - servir como um comentário sobre o sacrifício de minorias no altar do homem branco -, mas em nenhum instante o longa parece sequer sugerir uma leitura deste tipo. Ao contrário: o tom solene da montagem, os lentos movimentos de câmera e os inúmeros closes do rosto angustiado de Dwight sugerem que este é a verdadeira vítima da história e que os cadáveres que deixa em seu encalço são meras muletas dramáticas para ressaltar seu sofrimento. Afinal, ele pode ter matado dúzias de inocentes, mas seu coração estava no lugar certo.
No entanto, qualquer paciência que eu pudesse ter com esta aberração saiu pela janela no instante em que Cuartas se atreve a indicar que Thomas jamais suspeitou da origem do sangue que consumiu durante toda a vida. Ver o rapaz horrorizado ao perceber que sua existência só é possível graças ao que sugou dos desafortunados é hilário – o oposto do sentimento que o diretor queria provocar -, o que é escancaradamente uma forma de simbolizar o privilégio branco que lhe permitiu ignorar as condições em que viv...
Mentira. O único “privilégio branco” que podemos extrair da experiência foi o que permitiu que o diretor fizesse este filme.
29 de Outubro de 2020
(Leia também sobre os filmes dos dias #01 e #02.)
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