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#04 - INSIDE: A Luta pela União Grotesca Em Fases

(Spoilers)

Por entre as silhuetas sombrias de árvores altas, revelando as partículas de poeira perdurando no ar e fazendo brilhar as folhas secas caídas das árvores, dançando ao vento, há um tímido raio solar. Ele passa entre os galhos, marcando seu trajeto dourado pela escuridão azulada e fria da floresta densa e recai em uma rocha, ao fim de um morro íngreme. Pela parede de pedras, desliza um garoto. Ele aterrissa no pequeno ponto iluminado. Seu cabelo é escuro, sua camisa é vermelha, sua pele é pálida. Sua respiração é aguda, delicada.

Em sua face, não há um rosto.

Desde seu primeiro minuto, INSIDE se esforça para deixar claro que estamos sozinhos.

O jogo nos deixa no silêncio dessa paisagem por alguns momentos, apenas assistindo aos poucos movimentos da natureza vazia. O garoto, o personagem que controlamos, cai no canto da tela, à esquerda, sem nada dizer. A falta de feição e de palavras lhe impedem de nos fazer sentir acompanhados. O jogo em si não nos dá a mão, não nos ajuda, não explica quais são seus controles (levemente incomuns, na versão para Windows), ou o que podemos e devemos fazer.

Ele nos insere em um mundo sombrio, gélido, morto, que ilustra bem com pequenos detalhes que lhe concedem vida - como as sujeiras espalhadas pelo chão, flutuando no ar, impregnando e escurecendo a água; o constante movimento (mesmo que sutil) de suas paisagens; a ambientação sonora calma, quieta, mas preenchida com ruídos, rangidos, estalos, ecos e mudezes orgânicas, efetivas em sugerir solidão e perigo. Um mundo no qual o jogo se certifica de nos manter presos, exibindo elementos em silhueta em primeiro plano, nós em segundo e o resto do espaço em terceiro - mas um mundo pelo qual, mesmo sendo claramente estabelecido como tridimensional, podemos viajar apenas em movimentos bidimensionais, como um jogo de plataforma básico. Esta é uma limitação que favorece a atmosfera opressora e angustiante do jogo, permitindo que vejamos espaços bonitos, caminhos seguros, imagens curiosas ao fundo, mas não possamos ir até elas, sendo forçados a continuar em nosso caminho limitado, complicado e perigoso.

Essa limitação também gera um sentimento de determinação, certeza em nossa viagem, mesmo que não saibamos para onde estamos indo: o jogo não nos diz nossa missão e nosso personagem mudo também não a expõe; outro elemento que, como a falta de instruções para os controles e a falta de um menu antes do começo do jogo, nos faz sentir despreparados, abandonados, como a criança viajando sozinha nesse mundo perigoso deve se sentir. Mas, devido à limitação de nossos movimentos, mesmo que não saibamos para onde estamos indo, há apenas um caminho para seguir; mesmo que tenhamos que subir, descer, e voltar para trás para vencer os obstáculos que nos atrapalham, sabemos em que direção fica nosso objetivo (a mesma direção da qual a luz do sol era projetada, no início do jogo, e a partir da qual continua a brilhar pelo resto da narrativa, sempre que estamos em ambientes abertos ou em cômodos com janelas).

Não há uma narrativa clara em INSIDE. Apenas seguimos em frente. Somos atacados por figuras em máscaras brancas e roupas pretas, cachorros, criaturas na água; nosso caminho é impedido por experimentos científicos perigosos, construções em ruínas, portas trancadas; devemos solucionar quebra-cabeças para liberar nosso caminho, para fugirmos de inimigos, de máquinas assassinas, de porcos famintos. Mas tudo o que fazemos, fazemos em silêncio, sem sabermos exatamente por quê, sem termos certeza de como. Quase sempre sozinhos.

Os breves momentos nos quais nossa solidão é quebrada, em que estamos acompanhados por seres que não nos desejam mal, são um estranho alívio. Ao longo do jogo, temos apenas três tipos de companheiros: no início, quando atravessamos uma fazenda, pequenos pintinhos, de uma cor amarelada destoante com o ambiente sempre cinzento; quando viajamos por laboratórios inundados, nadando na escuridão, cardumes de peixes azuis; e, em vários momentos ao longo dos jogo, nos auxiliando na solução de quebra-cabeças e em travessias perigosas, há nossos mais estranhos companheiros: mortos-vivos que podemos controlar quando nos conectamos a um dispositivo circular brilhante. Estes mortos-vivos são como nosso personagem: pessoas comuns, com vestimentas normais e estruturas físicas humanas e sem rosto, eles não falam, emitindo apenas gemidos ocasionais, e tampouco se movem por conta própria, apenas quando há alguém os controlando - quando nos conectamos a estes dispositivos circulares (usando-os em nossa cabeça) qualquer um desses mortos-vivos que estiver por perto se move em conjunto conosco.

E todos esses três grupos de companheiros não só nos seguem, mas também, quando paramos de nos mover, nos cercam, se agrupando ao nosso redor. Há algo de confortável em estarmos cercados dessa forma, depois de tanto tempo fugindo, sozinhos, ameaçados. Sempre que nos afastamos desses grupos ou nos desconectamos dos dispositivos e somos deixados sozinhos e o piar delicado dos pintinhos, os ruídos das caudas dos peixes e os gemidos de nossos companheiros desaparecem, há um horrível silêncio deixado para trás.

Mas continuamos seguindo em frente, sós. Continuamos nossa longa viagem, permeada por intermináveis (e completamente inevitáveis) mortes de nosso personagem: caímos de alturas imensas, quebrando no chão com um estalo áspero; somos baleados e enforcados; somos mordidos, nossas gargantas perfuradas e mastigadas pelos cachorros pretos; somos afogados, e explodidos, eletrocutados e empalados, até que, depois da tortuosa viagem, chegamos ao fim do jogo: invadimos um laboratório, nos escondemos e fugimos das figuras que o guardam, vencemos os obstáculos causados por seus experimentos bizarros, até que chegamos em um tanque de água em que há um experimento sendo acompanhado por um número grande de cientistas de jaleco, do outro lado de um vidro.

No centro desse tanque, há uma massa viva de membros, carne e pele rosada, pulsando, respirando. Um experimento; a fusão de diversos corpos vivos em um único ser nojento, consciente.

Então, nadamos na água até esse ser.

Nos movemos por entre suas várias pernas, pés, braços e mãos.

Nós a libertamos, arrancamos os tubos que a mantêm presa.

E somos consumidos por ela.

De forma rápida, silenciosa e inesperada, somos agarrados pela massa e puxados para seu interior. Não gritamos, não resistimos. De um momento para outro, o garoto que acompanhamos e controlamos deixa de existir, se tornando apenas parte desse emaranhado orgânico.

Depois, esse ser parte o vidro do tanque e foge. Nós o controlamos enquanto vaga pelo vasto laboratório à procura de uma saída.

O que antes eram obstáculos imóveis em nosso caminho agora são simplesmente quebrados pela nossa força conjunta.

Mesas, máquinas, portas explodem ao pesarmos contra e sobre elas. Portões são retorcidos e arrancados de seus trilhos por nossos vários braços. Viajamos rapidamente, determinadamente, com nossas inúmeras pernas. Caímos, sangramos, ardemos, mas continuamos. Juntos, com nossas vozes graves, agudas, jovens, velhas, fracas, fortes, tímidas e furiosas, gritamos, gememos e rimos, enquanto tentamos fugir.

Os cachorros, que antes nos atacavam furiosamente, arrancando sangue e pedaços e facilmente tirando nossas vidas, com seus latidos assustadores acompanhados na trilha do jogo por ruídos altos e graves, agora se acovardam ao nos ver. Latem saltitando à distância (os ruídos graves ausentes), sem atrever a nos tocar, patéticos e fracos. As figuras mascaradas, vestidas de preto, fogem ao nos ver, são esmagadas por nosso corpo pesado. Os cientistas, responsáveis por experimentos horríveis e violentos, nos servem, nos ajudam em nossa fuga, aterrorizados, desesperados para nos deixar ir embora, para que possamos deixá-los em paz sem feri-los.

Através de nossa jornada solitária, pontuada por companhias ocasionais, efêmeras, e concluída num conjunto poderoso, corajoso, eterno, INSIDE nos demonstra o poder da união. Nos mostra como, juntos, lutamos contra aqueles que nos oprimem, que nos atacam e nos controlam e vencemos. E o jogo não se acovarda a ponto de nos mostrar a união como algo belo e simples: ele nos mostra uma união grotesca, mas imbatível.

Eventualmente, encontramos a parede externa do laboratório. Rindo, juntos, a rompemos.

Pelas nuvens cinzentas que se contorcem no céu escuro, atravessa um raio solar quente e gentil. Ele viaja pela atmosfera densa e recai na orla, na extremidade de uma praia. O mar se estende, azul e infinito. Um coletivo grotesco de membros, vozes e consciências desce pelo morro e aterrissa na areia dourada, sob o brilho quente da manhã e respira calmamente.

Livre.

21 de Julho de 2021

 

Leia também as edições #01#02 e #03 da coluna.

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Sobre o autor:

Autor, ator, diretor e eterno odiador de borboletas
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