Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
27/11/2014 | 01/01/1970 | 4 / 5 | 5 / 5 |
Distribuidora | |||
Diamond Films |
Dirigido por Dan Gilroy. Roteiro de Dan Gilroy. Com: Jake Gyllenhaal, Rene Russo, Bill Paxton, Riz Ahmed, Ann Cusack.
Lou Bloom é um homem solitário. Usando a Internet para se educar, ele memoriza textos sobre todo tipo de assunto, mas isto não o torna mais hábil ao lidar com outras pessoas quando sai de casa, já que parece não saber se comportar apropriadamente, entregando-se a monólogos que parecem sugerir um leve grau de autismo associado a uma preocupante tendência sociopata. Neste sentido, Bloom é uma mistura perigosa de Rain Man e Norman Bates – e ele logo adiciona Travis Bickle à combinação ao decidir passar as noites percorrendo as ruas de sua cidade (Los Angeles no lugar de Nova York) enquanto analisa e, eventualmente, toma parte da violência que a marca. Lou Bloom é, em suma, um personagem fascinante que Jake Gyllenhaal vive com sua habitual intensidade.
Escrito e dirigido por Dan Gilroy (irmão do também realizador Tony, que produz o longa, e de John, responsável pela montagem), O Abutre nos apresenta a Lou enquanto este, um ladrão barato, rouba pedaços de cerca de arame para revender – e sua reação ao ser surpreendido por um segurança já é um indício claro de sua psicopatia ainda inexplorada. Sempre sonhando em se tornar respeitado e bem-sucedido financeira e profissionalmente, o sujeito descobre sua verdadeira vocação ao testemunhar a ação de um câmera (Paxton) que registra um acidente de carro com o propósito de vender as imagens para telejornais – e não demora muito até que o próprio Bloom passe a documentar e lucrar com os piores momentos da vida alheia.
O mercado para este tipo de vídeo é amplo, como poderia dizer qualquer um que já ouviu Datena solicitar as “ibagens” ou mudou de canal rapidamente ao perceber que estava prestes a ver algo pavoroso (sim, sou do tipo que foge de registros sanguinolentos). Claro que o que muitos chamariam de “jornalismo” não passa, em última análise, do mais puro sadismo oportunista, já que não é preciso mostrar alguém morrendo para noticiar seu falecimento. O objetivo daqueles que comercializam a desgraça alheia (como a personagem vivida por Rene Russo nesta produção) não é a divulgação da “verdade”, mas faturar através da audiência criada pela espetacularização do desastre. Para isso, criam uma narrativa não a partir da imagem obtida, mas para esta, recontextualizando-a em uma história que busca transformar em entretenimento o que deveria ser apenas motivo de lamento. Vemos isso todos os dias nos canais abertos e em todos os horários: jornalistas que pincelam detalhes de uma história maior a fim de criar e alimentar a paranoia de um público cuja “revolta” resultante passa a ser retroalimentada sem que jamais se tenha uma compreensão real acerca dos fatos.
E Lou Bloom, como logo descobrimos, é a figura perfeita para a profissão: encarnado por Gyllenhaal como um tipo magro, de cabelos oleosos, olhos sempre arregalados e um sorriso fácil, mas vazio de sentimento, Bloom jamais permite que o conceito de “escrúpulos” limite seus sonhos de grandeza. Assim, é quase inevitável que ele logo deixe apenas de enfiar sua câmera no rosto das vítimas que encontra e passe a produzir as cenas trágicas que documenta, como ao mover as fotos de uma família na geladeira de uma casa atingida por balas apenas para criar uma rápida – e eficiente – narrativa dramática ao justapor os retratos aos buracos provocados pelos disparos. E isto é só o começo, claro.
Pois Bloom, como tantos profissionais similares, conhece e compreende perfeitamente bem o produto que está vendendo. O que talvez não entenda é como o que faz é degradante do ponto de vista humanista. Isto, porém, não é de se estranhar, já que sua mente foca sempre no resultado, independentemente do que precisará fazer para atingi-lo: ao manifestar desejo pela produtora executiva Nina Romina (Russo), por exemplo, ele não hesita em barganhar por um lugar em sua cama, já que reconhece ter como convencê-la a se entregar mesmo que a atração não seja recíproca. Nina, por sua vez, parece enxergar a estratégia do sujeito com um misto de indignação e fascinação, posto que ela mesma vive de negociar a desgraça alheia sem se preocupar com os sentimentos envolvidos – e, portanto, não deixa de ser uma ironia curiosa que Bloom misture suas relações profissionais e pessoais para forçar a outra a aceitá-lo, já que, para as pessoas cujas vidas Nina expõe na tevê, nada poderia ser mais pessoal do que a postura profissional adotada pela jornalista.
A visão de Dan Gilroy, diga-se de passagem, é igualmente pessimista no que diz respeito ao restante da galeria de personagens enfocados, que, em maior ou menor grau, não hesitam em sacrificar princípios em prol de vantagens profissionais e financeiras – e é preciso reconhecer a habilidade do cineasta em retratar a maneira com que o crescimento do protagonista naquele meio é inevitavelmente acompanhado por um colapso de qualquer restrição moral que poderia encontrar no caminho.
Tenso e angustiante como o mundo que retrata, O Abutre é um estudo de personagem notável – mas, acima de tudo, é uma condenação eficaz de um tipo de jornalismo que, mesmo longe de representar novidade, persiste em apelar para o lado mais animalesco de seus consumidores, apostando em nossa morbidez em vez de buscar recompensar nossa humanidade.
18 de Dezembro de 2014